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Milton Cunha: 'Cresci ouvindo sobre combate ao pecado, e eu era o pecado'

O carnavalesco Milton Cunha, num barracão da Cidade do Samba, no Rio - Ricardo Borges/UOL
O carnavalesco Milton Cunha, num barracão da Cidade do Samba, no Rio
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Valmir Moratelli

Colaboração para o TAB, do Rio

13/02/2022 04h00

É cumprimentando quem vê pela frente que Milton Cunha, 59, atravessa o longo corredor do terceiro andar de um barracão na Cidade do Samba, no Centro do Rio. Puxa uma cadeira e a posiciona no meio de protótipos de fantasias do próximo carnaval. Sugere conceder a entrevista ali. Milton se dirige, organiza o espaço e atrai os olhares como se estivesse num palco.

Da mesma forma, quebra o silêncio com sua expressividade, na escolha de palavras certeiras e no jeito expansivo de se comunicar.

Desde 2013 como comentarista de Carnaval da TV Globo — detentora dos direitos de transmissão dos desfiles das escolas de samba do Rio e de São Paulo — Milton fala sobre os bastidores de uma festa que conhece como poucos: de 1994 a 2010, assinou desfiles em nove agremiações entre Rio e São Paulo. Se faltou o título de campeão, coleciona títulos acadêmicos. Fez mestrado, doutorado e já conta com dois pós-doutorados pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), com foco em Narrativas de Carnaval.

"O Carnaval sempre foi o primo escondido da cultura. É coisa de pobre, preto, favelado e bêbado. O cânone elitista da universidade não quer que se estude narrativas de escola de samba. O racismo estrutural sempre segurou o reconhecimento dessa procissão festiva. Só que isso ganhou o mundo. Aceita que dói menos, é a maior expressão do que é o Brasil para o mundo!", defende ele que, no resto do ano, viaja, assina projetos de cenografia e participa de simpósios acadêmicos.

É nesse tom, de quem não foge de uma briga, que o ex-carnavalesco e hoje pesquisador conversa com o TAB. Por vezes, quase grita de tão efusivo que fica em suas colocações; em outras, faz pausas demoradas para se recuperar das lembranças de uma infância repleta de traumas. "Não sou a bichinha delicada. Sou o 'Senhor dos Anéis', conheço todas as trovoadas. Nasci gay, afeminado, da pá virada. Fui expulso de muitos colégios, perseguido a vida toda. Aos 4 anos, fazia a Carmen Miranda em casa. Imagina a vida em Belém do Pará da década de 1960, com pais tacanhos. Não era fácil!", afirma.

O carnavalesco Milton Cunha em barracão da Cidade do Samba - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
O carnavalesco Milton Cunha em barracão da Cidade do Samba
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Infância difícil

Milton mistura as lembranças de sua origem na Ilha de Marajó (PA) entre alusões a um cenário pitoresco e, ao mesmo tempo, agressivo. Foi o terceiro de quatro filhos de pai mecânico de automóveis e mãe do lar. "Meus dois irmãos mais velhos, héteros, iam pro jogo de futebol com meu pai. O mais novo não era assumido, ao contrário de mim, que sempre fui para a porrada, com pé na porta. Por isso apanhei muito, era castigo físico todo dia", diz.

Estudou em colégios de freiras, sempre sendo expulso de um e realocado em outro. "Só tinha medo de morrer, medo deles [meus pais] me matarem antes de eu conseguir ir embora. Mata-se muito menino gay no interior, criança viada é um problema para certas famílias. O estudo me salvou. Era bom aluno, mas endiabrado na sala de aula."

Seus olhos lacrimejam, mas ele controla a emoção. Fala da convivência em casa com ar de superação. "Todo dia era uma porrada dos irmãos ou do meu pai. Os dois mais velhos me agrediam muito! O mais novo me chantageava. Eu tinha transado com o vizinho e ele vivia naquilo de 'vou contar'. Foi uma clausura que enfrentei com deboche. Até porque a outra opção era morrer, não tinha negociação."

O paraense revela que também sofreu agressões sexuais do pai. "Tinha rolado umas bolinações sexuais na infância, eu me lembro claramente. Era muito criança, no colo, ele sentava na calçada comigo e ficava pegando no meu pau. Só adulto entendi que aquilo tinha conotação sexual."

O carnavalesco Milton Cunha, 59 - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
O carnavalesco Milton Cunha, 59
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Pau-de-arara

Quando completou os estudos, aos 19 anos, decidiu se mudar de vez do Pará e tentar a sorte no desconhecido Rio de Janeiro. Colocou o diploma debaixo do braço e anunciou sua decisão. Ainda teve que ouvir do irmão mais velho: "Todos que vão voltam". Foi quando respondeu: "Querido, não sou todo mundo! Já deviam saber disso".

Acordou às cinco da manhã, saiu do quarto com uma mala de papelão duro e, para seu espanto, encontrou seu pai na porta. "Logo pensei: 'Vai ter a última surra'. Mas ele queria me levar na rodoviária".

Despediu-se sem abraços ou um desejo de "boa sorte". Nunca mais voltaria a vê-los. "Minha mãe ficou me ligando seis anos depois pra falar: 'Eu te perdoo'. 'Louca, quem não te perdoa sou eu! Não espero seu perdão!'. Aí eu já era carnavalesco famoso do Rio. Morreu ela, morreu meu pai, abriu-se um buraco oceânico de dor. Não sei o que é amor de mãe. Falam que é fabuloso, mas nem toda mulher ama seu filho", diz.

O carnavalesco Milton Cunha em barracão da Cidade do Samba - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
O carnavalesco Milton Cunha em barracão da Cidade do Samba
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Utopia Indígena

Ainda em Marajó, para se proteger das agressões, criou para si um mundo de imaginação. Foi esse mundo que, mais tarde, ele pôde acessar para carnavalizar a vida.

"Eu tinha uma capacidade de me imaginar em outros lugares. Minha imaginação foi quem me levou para longe dali. As árvores eram altas, as bromélias lindas, os pássaros coloridíssimos, os índios de pele pintada de urucum e vestidos de tangas e cocares. Eu queria ser um índio!", diverte-se ele, entre altas gargalhadas.

São essas imagens que ele carrega com saudosismo. "Quando virei a galinha do arco-íris, cheia de penas coloridas na Sapucaí, era homenagem aos índios da minha infância. Eu me identificava mais com os índios do que com os engravatados de Belém, que diziam levar uma vida santa. Cresci ouvindo discurso de combate ao pecado, e eu era o pecado! Tudo que diziam que não se podia fazer, sendo livre, eu me identificava", diz.

No caminho do arco-íris

Milton tentou a sorte no Rio com o que hoje seria o equivalente a cem reais no bolso. Foi um anúncio de vaga para homens num orelhão da rodoviária que o impediu de dormir na rua. O ano era 1982. "Éramos dez rapazes numa casa com dois quartos de seis beliches. A proprietária, dona Meire, reconheceu em mim um artista, era bordadeira de grifes grandes", recorda.

Foi quando surgiram seus "mecenas". O primeiro deles foi o empresário da noite Chico Recarey, dono de famosas boates da cidade à época. "Foi a primeira vez que me senti livre, enfim ninguém me batia. Eu era a Judy Garland (como Dorothy Gale) cantando 'Over the rainbown' ao encontrar o Mágico de Oz".

Foi assim, dormindo numa vaga de beliche em quarto compartilhado no Centro e se apresentando com ternos "escalafobéticos" na lendária e já extinta boate Circus, no Leblon, que Milton começou a carreira.

Depois, outro mecenas surge em sua vida: Anysio Abrahão David, contraventor e patrono da Beija-Flor de Nilópolis, lhe propõe assinar o enredo de 1994. Milton criou uma homenagem a Margaret Mee, botânica inglesa especializada em plantas amazônicas e pouco falada no país. Sua estreia o colocou de imediato entre os cinco melhores do carnaval do Rio.

"Foi um luxo criar cinco mil roupas, sapatos e ombreiras com tecidos vindos de Hong Kong e de Jacarta. A escola era tão rica, tão maior que eu, que isso me acalmava. Era só me deixar levar. Meu sonho desaguou na avenida", diz.

O carnavalesco Milton Cunha em barracão da Cidade do Samba - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
O carnavalesco Milton Cunha em barracão da Cidade do Samba
Imagem: Ricardo Borges/UOL

'Viado demais para a Globo'

Milton planejou a transição para a função de pesquisador e comentarista aos poucos. Seu último trabalho como carnavalesco foi o de 2010, na Acadêmicos do Cubango, no grupo de Acesso. Usou os anos como profissional de barracão para ser uma voz respeitada nos desfiles. "Enquanto alguns me metiam críticas, fui crescendo. Aprendi francês e inglês enquanto eles latiam", diverte-se.

Foi colunista do jornal O Dia, trabalhou com Leda Nagle no Sem Censura, fez transmissão do Festival de Parintins na Band, apresentou o Carnaval do Povão na CNT, até chegar um convite do Boninho para a TV Globo. "Tinha virado uma notícia positiva isso de 'Milton com doutorado', mas não achava que a Globo me chamaria, eu era viado demais pra eles! Mas já estou lá desde 2013. O figurinista nem tem trabalho comigo. Eu sou o meu melhor figurino", afirma.

A Sapucaí também lhe deu o marido. Ele é casado com o preparador físico Eduardo Costa, com quem divide um apartamento em Copacabana, no Rio. "Passo descalço na avenida com a Viradouro, em 2009, e ele está sentado no setor 11. Eduardo se apaixona, e me manda uma cantada na internet. A gente engata e nunca mais se separa", diz ele, assim mesmo, com verbos no presente, como se tudo acontecesse agora.

Carnaval em abril

Tal como todos que amam o Carnaval, Milton segue apreensivo com a realização dos desfiles em 2022, após a suspensão em fevereiro por causa da pandemia. A nova data será nos dias 22 e 23 de abril. "Sou a favor, desde que a ciência também seja."

Sobre a presença de Jair Bolsonaro na Sapucaí, Milton diverge de Gabriel David, diretor de marketing da Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba). Ao TAB, Gabriel defendeu a presença do presidente. "Bolsonaro não tem nada a fazer lá. Ele demoniza a manifestação da negritude, debocha do país de maricas. E nós, maricas, fazemos a Sapucaí. Por que sua presença seria importante? Vamos raciocinar pela cabeça do Gabriel. Ele acha que o símbolo máximo da nação referenda o Carnaval. Só que aquilo não precisa de legitimação de ninguém! A narrativa é grande, porque é a força do povo enquanto estrutura de cultura".

E como Milton sonha que serão os dias de folia deslocados para abril? Ao seu estilo, ele dá o recado: "As pessoas vão se pendurar nos lustres, se vestir de papel crepom, vão mostrar a perereca, o pau, vão abrir o cu, vai ser uma loucura. Vai ficar todo mundo nu! Ninguém segura. Eu serei o líder, vou como baliza, puxando a Avenida de salto alto com todos os loucos do mundo!".