Topo

Órfão na pandemia, menino autista de 9 anos ganha família em Pernambuco

Luiz Filipe e seus pais, Estefanny e Filipe - Ricardo Iabá/UOL
Luiz Filipe e seus pais, Estefanny e Filipe Imagem: Ricardo Iabá/UOL

Jorge Cosme

Colaboração para o TAB, em Vitória de Santo Antão (PE)

11/02/2022 04h00

Luiz Filipe, 9, tem dificuldade na fala, possivelmente decorrente do autismo leve com o qual foi diagnosticado. Mesmo sendo de poucas palavras, já chegou a repetir algumas vezes o nome "João Murilo", como é abreviado o Hospital João Murilo de Oliveira, em Vitória de Santo Antão, Zona da Mata de Pernambuco. Foi nessa unidade que o pai do menino morreu de covid-19 em maio de 2020.

Luiz Filipe é o primeiro órfão da pandemia de Pernambuco que se tem registro. Ele era criado apenas pelo genitor, um homem de 75 anos. É também o pioneiro em casos de adoção de órfãos da pandemia no estado pela ferramenta Busca Ativa -- por meio da divulgação de fotos nas redes sociais. Agora, é o primeiro filho da fisioterapeuta Estefanny Nazário, 24, e do frentista Filipe Lopes, 30.

Desde setembro de 2021 a residência do casal, em Olinda, Região Metropolitana do Recife (RMR), está mais colorida. Os tons sóbrios dos cômodos contrastam agora com as mãos pintadas na parede do quarto da criança em verde, vermelho, amarelo e azul. Papéis com as letras do alfabeto foram dispostos no quarto para incentivar o aprendizado.

Já o carrinho de mão nos fundos da casa deixou de ser só um equipamento de construção: tornou-se um brinquedo em que a criança coloca os cocos verdes e sai anunciando que cada um custa 2 reais.

Luiz Filipe e o hamster da família - Ricardo Iabá/UOL - Ricardo Iabá/UOL
Luiz Filipe e o hamster da família
Imagem: Ricardo Iabá/UOL

Com a chegada de Luiz Filipe, a casa também ficou menos silenciosa. O som estridente de um aviãozinho de pilha, atual brinquedo preferido de Luiz, quebra o silêncio constantemente. "A gente gostava muito de estar em casal, mas quando eu olho para o momento atual, penso 'era bom, mas agora está melhor'", diz o pai.

O namoro começou em maio de 2017, quando Filipe tocou na mão de Estefanny durante o trajeto de ônibus. Não demorou muito para a fisioterapeuta revelar a vontade que sempre teve de adotar uma criança. Ela gosta de contar seus planos de vida logo no início do relacionamento, para evitar a descoberta de uma incompatibilidade futura. Filipe não se contrapôs. "Passou a ser o meu desejo também", conta.

Do namoro para o noivado foi um curto salto de cinco meses. O casamento foi marcado para 2020. E então veio a pandemia.

O quarto do Luiz Filipe - Ricardo Iabá/UOL - Ricardo Iabá/UOL
O quarto do Luiz Filipe
Imagem: Ricardo Iabá/UOL

Vidas paralelas

Filipe perdeu o emprego que conquistara havia apenas duas semanas. Dois pacientes de Estefanny contraíram a covid-19 e precisaram de um atendimento com outro especialista. Com isso, a fisioterapeuta viu R$ 600 semanais irem embora.

Enquanto a pandemia impactava o casal financeiramente e os alimentava de incertezas, Luiz Filipe, na época com 7 anos, era deixado em um abrigo de Vitória de Santo Antão. Ainda em luto pela perda do pai biológico, o garoto também estava com covid-19 e tinha um diagnóstico de deficiência intelectual grave. Era o começo da pandemia e não havia uma estrutura preparada para esse tipo de acolhimento. Os primeiros dias de Luiz Filipe sem o pai foram também de isolamento, longe de todas as crianças.

A partir dos primeiros tratamentos que começou a receber na instituição, o garoto foi apresentando significativo desenvolvimento e teve o diagnóstico reavaliado para autismo leve, mas não tinha parente interessado ou em condições de assumir sua guarda.

Estefanny conta que a mãe biológica do menino sofreu um AVC (acidente vascular cerebral) e possui a saúde bastante debilitada, sem condições de criá-lo. A irmã da mãe biológica, que já cuida de alguns dos filhos dela, alegou não ter condições de assumi-lo. Luiz Filipe, então, foi inserido no Projeto Família, em que são divulgadas imagens de crianças e adolescentes aptas à adoção e que vivem em uma das 77 instituições de acolhimento em Pernambuco.

Luiz Filipe, 9, e os pais Estefanny e Filipe - Ricardo Iabá/UOL - Ricardo Iabá/UOL
Luiz Filipe, 9, e os pais Estefanny e Filipe
Imagem: Ricardo Iabá/UOL

O renascimento de um filho

Em 4 de junho de 2020, no dia do aniversário de Filipe, enquanto ele e Estefanny escolhiam as alianças de casamento, o rapaz recebeu um telefonema. Era uma proposta de emprego, um suspiro em tempos difíceis.

O casamento ocorreu duas semanas depois, em 18 de junho. O formato foi videoconferência, com o juiz celebrando de casa a união.

O assunto 'filhos' surgiu bem mais rápido do que o casal imaginava. "Desde que a gente começou a namorar a gente já falava de filhos, sendo que meu pensamento era 'vamos passar cinco anos curtindo o casamento antes disso", diz o frentista. "O meu pensamento era de passar um ano ou dois", emenda Estefanny. "Depois que a gente casou, foi crescendo o desejo em mim e diminuindo o tempo que eu queria esperar", completa Filipe, aos risos.

Os cinco anos de curtição planejados por Filipe foram encurtados para quatro meses, já que em outubro eles decidiram que queriam uma criança. Tentaram inicialmente a gestação natural, sem descartar uma adoção.

Era junho de 2021 e a gravidez ainda não havia ocorrido quando a fisioterapeuta decidiu pesquisar sobre adoções. Encontrou no Instagram o perfil da Ceja (Comissão Estadual Judiciária de Adoção), que exibe fotos de crianças e adolescentes aptos para adoção por Busca Ativa -- método considerado pelo TJPE (Tribunal de Justiça de Pernambuco) uma quebra de paradigma, pois não visa buscar crianças para preencher o perfil desejado pelos pretendentes, mas encontrar famílias para crianças e adolescentes que estão privados de convivência familiar.

A página fala de crianças que não se enquadram no padrão escolhido pela maioria dos adotantes, como aquelas portadoras de alguma deficiência. Segundo o TJPE, a ferramenta foi utilizada de forma pioneira pelo Judiciário do estado, e é fundamental para o sucesso de adoções fora do padrão escolhido pela maioria dos pretendentes. Ali, Estefanny se deparou com a publicação sobre Luiz Filipe.

Havia um vídeo em que o menino aparecia sorridente empurrando um caminhão de brinquedo e brincando em um piano. Ela se apaixonou naquele instante. Disfarçando a empolgação que começava a sentir, Estefanny passou o celular para o companheiro. Pediu que ele observasse todas as crianças. "E aí, gostou de alguma?", perguntou após observá-lo manusear o telefone por um tempo. "Eu disse a ela que me encantei por uma das crianças. Mostrei e era a mesma que ela havia se apaixonado", recorda.

A família de Luiz Filipe, 9, adotado após perder o genitor na pandemia - Ricardo Iabá/UOL - Ricardo Iabá/UOL
A família de Luiz Filipe, 9, adotado após perder o genitor na pandemia
Imagem: Ricardo Iabá/UOL

Beijo na barriga

Foi no primeiro contato com a Vara da Infância que Estefanny e Filipe souberam do diagnóstico de autismo do menino. Foram informados das crises dele. "A gente não viu problema porque já conhece o autismo. Quando olho para ele, não vejo a necessidade especial dele, vejo o meu filho", afirma o frentista, que tem um sobrinho com a mesma condição.

Na primeira vez que se viram, ainda no abrigo, Luiz Filipe não sabia que a visita era de possíveis pretendentes, mas correu e abraçou Estefanny, tascando-lhe um beijo na barriga. "Isso teve um impacto muito grande. Nesse dia, saímos de lá nos sentindo pais dele", conta a mãe.

Como marido e mulher não tinham cadastro no SNA (Sistema Nacional de Adoção), começaram um curso de pretendentes à adoção, momento em que receberam a visita da equipe técnica do Judiciário. Em seguida, veio o processo de aproximação, com encontros recorrentes ao abrigo, passeios à praça, ao shopping e visitas do garoto à casa dos futuros pais.

A Vara Regional da Infância e Juventude de Vitória de Santo Antão emitiu um relatório ao final do estágio de convivência confirmando que o garoto estava recebendo todo o incentivo e amor necessários para seu desenvolvimento. No final de dezembro de 2021, em audiência de forma virtual, foi dada a sentença definitiva confirmando a formação da família.

O garoto, então, foi pioneiro mais uma vez: foi a primeira adoção de uma criança com necessidades especiais realizada pela Vara Regional da Infância e Juventude da 4ª Circunscrição.

Luiz Filipe tem conseguido se expressar cada vez melhor, falando mais e gesticulando menos. Era dependente de fraldas no abrigo. Hoje, o pacote de fraldas que os pais compraram está sem uso — e cada vez que o garoto usa o banheiro é uma celebração na casa.

Luiz Filipe, 9, em casa - Ricardo Iabá/UOL - Ricardo Iabá/UOL
Luiz Filipe, 9, em casa
Imagem: Ricardo Iabá/UOL

Em 2 de fevereiro chegou a nova certidão de nascimento, com os sobrenomes dos pais e a sutil alteração na grafia do nome composto -- antes, era Luiz Felipe. As aulas começaram um dia antes, em 1º de fevereiro. O menino nunca havia frequentado a escola durante a convivência com os pais biológicos. Nem chora ao ser deixado na escola -- ao contrário da mãe. A família também comemora a diminuição das crises e birras.

"Luiz trouxe alegria para casa. É uma criança super, mega, hiper, extremamente amorosa e carinhosa. De abraçar, de beijar, de cumprimentar pessoas que nunca viu", diz Filipe. "As pessoas se espantaram quando eu disse que iria adotar, como se fosse uma coisa ruim. Aí eu pergunto: 'por que você quis ser mãe, quis ser pai?' Você quis ser mãe porque tinha o amor de mãe para dar. Eu queria ser mãe e Luiz precisava de uma, então simplesmente encaixou", conclui Estefanny.

O quarto de Luiz Filipe - Ricardo Iabá/UOL - Ricardo Iabá/UOL
O quarto de Luiz Filipe
Imagem: Ricardo Iabá/UOL