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Brasil é 2º no mundo em hanseníase, doença milenar carregada de preconceito

Antonia da Costa Pereira, 32, faz tratamento contra hanseniase na UBS Jardim São Carlos, em Guaianazes, na zona leste de São Paulo - Reinaldo Canato/UOL
Antonia da Costa Pereira, 32, faz tratamento contra hanseniase na UBS Jardim São Carlos, em Guaianazes, na zona leste de São Paulo
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Felipe Pereira

Do TAB, em São Paulo

11/02/2022 04h01

Na hora do almoço, Eridania Ferreira Moreira, 32, recebe a carne cortada no prato. Não é capricho, mas consequência da hanseníase, doença que deixou suas mãos sem força e dormentes. A condição impede o corte de carnes e cabelos, atrapalhando a vida da funcionária de salão de beleza de Juazeiro do Norte (CE).

Eridiana, que chora e sente dores físicas e sociais, está na fase final do tratamento, iniciado em 2019. Ela sabia que haveria preconceito. Aos 8 anos, foi diagnosticada com a doença pela primeira vez. A professora a proibiu de ir à escola, afirmando que a menina ia infectar a todos na sala de aula. Os caroços que apareceram na cabeça a obrigaram a raspar o cabelo e as colegas de classe foram tiranas. Eridiana passou a ser chamada de menino.

As dores no corpo aumentaram e levaram à internação. Esse tempo, somado às ausências nos dias em que preferiu ficar chorando em casa a ser hostilizada na escola, fizeram a menina repetir de ano. Mais madura após o segundo diagnóstico de hanseníase, Eridiana reagiu melhor.

A doença, que obriga a aprender a conviver com a dor, também é reveladora. Leonardo Santos Oliveira, 31, morador de São Paulo, foi abandonado pela mulher logo depois do diagnóstico. Precisou processar essa realidade numa cadeira de rodas porque a hanseníase impedia os joelhos de dobrarem.

Terminado o tratamento, Leonardo recuperou a mobilidade. Hoje, lida com as reações hansênicas, conjunto de moléstias que incluem manchas, dores, caroços, perda de força e de sensibilidade. Se a doença é curada em até 12 meses, essas intercorrências podem perdurar anos e até décadas.

Eridiana e Leonardo resumem a situação dos enfermos no segundo país com mais casos no mundo, conforme pesquisa realizada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) em 2017. No levantamento, o Brasil reunia 26.875 casos — atrás apenas da Índia. O dado nacional mais atualizado é do Boletim Epidemiológico de Hanseníase do Ministério da Saúde, e aponta 15.155 diagnósticos em 2021.

O próprio documento ressalta que deve haver subnotificação. "A redução mais acentuada nos últimos dois anos pode estar relacionada à menor detecção de casos ocasionada pela pandemia de covid-19", informa um trecho da introdução.

Leonardo - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
Leonardo foi abandonado pela mulher ao descobrir que tinha hanseníase
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Marcador de desigualdade

A hanseníase é repleta de aspectos negativos, mas também proporciona revelações positivas. Mardson Bezerra, 28, viu a família da mulher pregar a separação. A situação piorou no momento de enfrentar as reações hansênicas, o que exigiu uso da talidomida, medicamento que grávidas não podem tomar por causar má formação do feto.

Mardson jamais gestará um bebê, mas a família da mulher se apegou ao fato para carregar nos apelos pela separação. "Falavam para minha esposa se era isso mesmo que ela queria. Mas minha mulher foi cabeça forte."

A hanseníase está cercada de pobreza de espírito e de baixo poder aquisitivo. Ela é classificada pela OMS como uma doença tropical negligenciada. As enfermidades incluídas nesse grupo têm maior incidência em pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade social, explica Alice Cruz, Relatora das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Contra as Pessoas Afetadas pela Hanseníase.

Entre as carências que afetam os doentes está o atendimento de saúde precário. Francilene Carvalho de Mesquita, 45, morava em uma casa de pau a pique numa invasão em Teresina (PI), quando começou a sentir amortecimentos no corpo. Isso foi em 1999. Visitas a postos de saúde continuaram à medida que a faxineira sentia choques nas mãos, ao torcer pano de chão.

Encaminhada a uma reumatologista, fez tratamento para artrite reumatoide. Os caroços que surgiram nas pernas sugeriam que os remédios não estavam fazendo efeito e ela voltou à médica. Na lista de novos exames, constava um teste de hanseníase.

Chegando ao laboratório, o técnico olhou para Francilene e começou uma inspeção. Logo, descobriu manchas no cotovelo e no dedo mínimo do pé esquerdo. As evidências apontavam para hanseníase e a paciente imaginou seus dedos caindo. Mas ela também percebeu que o funcionário do laboratório fazia o melhor exame que já havia recebido. "Foi a primeira vez que alguém levantou da cadeira e examinou o meu corpo."

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Mardson quer se livrar das reações hansênicas para ter ser pai. Ele só não sabe se serão um ou dois filhos
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

O descaso com pacientes, os preconceitos e a relação entre a doença e a vulnerabilidade social são bem conhecidos de Artur Custódio, coordenador nacional do Morhan (Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase). Ele conta que existe um ciclo que torna as pessoas carentes mais suscetíveis à infecção e inclui má alimentação, associada à falta de saneamento básico, o que reduz a capacidade do sistema imunológico de combater ou impedir a doença.

A hanseníase tem causa bacteriana e se transmite pelas vias aéreas, mas não é como a covid-19. Precisa de contato muito íntimo durante bastante tempo. Essa condição pode ocorrer em famílias pobres, em que muitas pessoas dividem imóveis pequenos. A especialista da ONU para hanseníase afirma que, mesmo com a vulnerabilidade social, há condições para a erradicação da doença, mas falta vontade política e econômica.

"É preciso reconhecer que doenças como a hanseníase continuam a existir porque são ativamente negligenciadas pelos governos e pela indústria farmacêutica, uma vez que, por um lado, não incidem em grupos que detêm poder econômico e político e, por outro lado, não são lucrativas para a indústria farmacêutica", declarou Alice Cruz.

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Os pacientes recebem comprimidos e o tratamento é feito em casa
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Cem mil anos de preconceito

A hanseníase é uma doença para lá de antiga. Há vestígios em civilizações milenares, como Índia e Egito, onde foram encontrados esqueletos com sinais da doença. Existem também muitas referências na Bíblia. O Velho Testamento traz os relatos de preconceito, com o uso do termo pejorativo "leproso" sendo aplicado a pessoas envoltas em panos velhos e vivendo afastadas da sociedade por serem "impuras".

São cenas comuns em filmes de época, incluindo o sucesso "Ben-Hur" (1959). No Novo Testamento, há menção de passagens de Jesus mostrando compaixão por doentes e curando indivíduos. Num país de maioria cristã como o Brasil, há mais atitudes copiando o Velho Testamento do que a de Cristo.

Tanto que o regramento jurídico do país tratava de segregar os doentes. A política de isolamento compulsório ficou vigente até 1976. Quando os pacientes foram liberados das colônias de tratamento, não sabiam para onde ir. Abandonados pela família, não tinham laços com a sociedade.

Nesse mesmo período, o termo "lepra" também foi alterado para hanseníase. Mas o novo vocabulário é desrespeitado com frequência, inclusive pelo presidente Jair Bolsonaro (PL). Em dezembro de 2021, ele usou as palavras "lepra" e "leproso" durante um discurso. A situação levou a Justiça a proibir que ele e qualquer outro integrante da União repitam a terminologia.

O preconceito é ainda mais inexplicável, dado que a hanseníase tem cura. O tratamento é feito pelo SUS e está ao alcance de todos, afirma José Eduardo de Oliveira, Interlocutor de Hanseníase e Tuberculose do Centro de Vigilância Epidemiológica Estadual de São Paulo. "O tratamento é gratuito e geralmente há unidades de referência em cada cidade para obter o kit de medicamentos e atendimento ambulatorial."

José Eduardo relata que a doença existe há cem mil anos. A bactéria causadora, Mycobacterium leprae, fica incubada de cinco a 20 anos. Os primeiros sintomas são manchas que vão do esbranquiçado ao avermelhado e perda de sensibilidade. "Se alfinetar, a pessoa não sente dor."

Ele ressalta que as manchas não acumulam poeira e nem suam. O diagnóstico é feito com uma avaliação clínica e raspagem da borda das manchas para análise laboratorial. Em caso de a dúvida persistir, é providenciada uma biopsia. A duração do tratamento depende de cada paciente e vai de seis meses a dois anos.

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Os sintomas de hanseníase incluem manchas, formigamento, perda de força e de sensibilidade
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

O especialista da Secretaria Estadual de Saúde ressalta que a hanseníase não é fatal e a transmissão acaba logo no começo do tratamento. Logo, não há motivo para o paciente ser segregado. Ainda assim, o médico ressalta que o estigma é muito forte e causa problemas emocionais e psicológicos muito sérios.

Criada pelas tias, Antônia Islânia da Costa Pereira, 32, foi colocada num quartinho isolado depois do diagnóstico da doença. Havia copo, pratos e talheres separados para seu uso exclusivo. As dores físicas eram tamanhas que ela passou duas semanas levantando da cama apenas para tomar água.

Em nenhum momento as tias quiseram saber se ela estava bem. Antônia perdeu tanto peso que foi do manequim 44 para o 36. Abandonada e com o corpo cheio de manchas e dores, tentou se matar. Hoje, trata das reações hansênicas e da depressão.