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Escolas e blocos se preparam para o Carnaval: 'Agora não tem mais volta'

Alexandre Vicente, diretor da Rosas de Ouro: desfile metade pronto para 2022 - Iwi Onodera/UOL
Alexandre Vicente, diretor da Rosas de Ouro: desfile metade pronto para 2022
Imagem: Iwi Onodera/UOL

Tiago Dias

Do TAB, em São Paulo

04/11/2021 04h01

O clima na quadra da Rosas de Ouro na segunda-feira (1º) era de ressaca. O boneco do eterno presidente e cofundador da escola de samba, Eduardo Basílio, sentado num banco, ainda segurava um cigarro de verdade, deixado entre seus dedos inanimados durante a festa de 50 anos da escola.

A julgar pelo chão grudento, cheio de confetes, a celebração que varou a madrugada de sábado (30) para domingo contou com muito samba, suor e cerveja. E também lágrimas. A última vez que aquela quadra esteve cheia foi no último ensaio antes do desfile de 2020. "Agora começamos de vez. Não adianta vir e olhar isso vazio todo dia. Isso sim dói", enfatiza o diretor da escola, Alexandre Vicente, 51, enquanto empilha cadeiras de plástico.

O evento teste foi um aperitivo para a grande volta da Rosas, que fará o primeiro ensaio presencial após a pandemia no próximo dia 5. O público se restringiu à lotação máxima (50%) e à exigência de máscara e comprovante de vacinação na entrada. "Teve os teimosos que vieram sem, os que disseram que não pretendiam tomar [vacina]. Falei: 'tudo bem, mas também não samba'", diz Vicente. Depois da festa, ele não tem outra resposta quando questionado se haverá mesmo Carnaval ano que vem: "Dia 26 [de fevereiro] vamos estar lá desfilando", garante.

A escola já tem enredo escolhido e 50% do novo desfile pronto. No ateliê e no barracão, 50 pessoas dão formas e detalhes às fantasias e alas, que estarão em menor número no "novo normal". De acordo com as orientações da Liga Independente das Escolas de Samba de São Paulo pós-pandemia, Rosas de Ouro vai entrar na avenida com um carro e 1500 componentes — 500 a menos em relação à quantidade obrigatória de componentes antes da pandemia. Um desfile ligeiramente menor, mas nem por isso econômico. O preço do quilo do ferro, como muitas outras matérias-primas, mais do que dobrou no período.

Euler Alfaia, 34, voltou a trabalhar há quatro meses no barracão da Rosas de Ouro - Iwi Onodera/UOL - Iwi Onodera/UOL
Euler Alfaia, 34, voltou a trabalhar há quatro meses no barracão da Rosas de Ouro
Imagem: Iwi Onodera/UOL
Jair Faria, 50, vem de Parintins para dar vida ao desfile das Rosas de Ouro - Iwi Onodera/UOL - Iwi Onodera/UOL
Jair Faria, 50, vem de Parintins para dar vida ao desfile das Rosas de Ouro
Imagem: Iwi Onodera/UOL

Naquela tarde, 20 homens trabalhavam nas esculturas. A grande maioria vem de Parintins, no Amazonas, onde a experiência na famosa Festa Folclórica da região é artigo indispensável em quase todas as escolas. Para ter ganhos maiores, é comum passarem seis meses em São Paulo para trabalhar na produção do Carnaval e depois voltarem a Parintins para fazer a disputa do Boi Caprichoso com o Boi Garantido.

Euler Alfaia, 34, teve que arrumar bicos durante a pandemia. "Foi um período difícil, não teve nem como praticar a parte criativa, porque fazer o que a gente gosta é se divertir também", explica, enquanto cola adereços. "Estamos adiantando tudo que dá, porque o Carnaval tem que acontecer."

Para Jair Faria, 50, usar máscara nunca foi um problema. É com um tipo bem revestido que ele passa a camada de resina num molde com fibra de vidro. O cheiro é forte — e fazia tempo que ele não o sentia. Também de Parintins, Jair conta que havia acabado de se fixar em São Paulo quando tudo parou. Passou um ano sem pensar em Carnaval. O filho adotivo morreu de covid-19. "Eu adoro, mas não tinha clima, foram muitas perdas. A gente aceita, mas não se conforma [com a morte]. Ano que vem vai ser uma mistura de emoções", desabafa.

De olho no Carnaval 2022, Rosas de Ouro volta a preparar desfile

No ateliê, dez pessoas (na maioria jovens) usam cola quente para replicar as fantasias-piloto, todas prontas. Entre elas, uma novidade: as baianas vão desfilar com uma saia quadrada. É a ala mais animada para a volta, confirma os dirigentes. Maria Inês, a Nena, 54, trabalha há oito anos no setor e é a mais experiente. "A gente sentiu falta do trabalho, de ver a fantasia surgir." A prática não se perde, ela afirma. "É como sambar."

É com o samba que a Rosas pretende encerrar de vez seu período mais sombrio. O enredo escolhido fala sobre rituais de cura. Na última ala, uma homenagem aos profissionais de saúde da linha de frente, para lavar as dores que passaram por ali. O caseiro da quadra, único a andar livremente na escola no período de maior restrição, morreu no pico da segunda onda. "Foi o enterro mais triste da minha vida", diz Vicente. "Rezamos um Pai-Nosso e enterrou. Três minutos, acabou." Na letra do samba, uma ideia fixa compartilhada na comunidade: "O samba tem o dom de curar".

Cordão da Bola Preta no Carnaval de 1919, o primeiro após a Gripe Espanhola - Reprodução - Reprodução
Cordão da Bola Preta no Carnaval de 1919, o primeiro após a Gripe Espanhola
Imagem: Reprodução
Pedro Ernesto, presidente do bloco mais antigo do Carnaval do Rio de Janeiro - José Luricci/Divulgação - José Luricci/Divulgação
Pedro Ernesto, presidente do bloco mais antigo do Carnaval do Rio de Janeiro
Imagem: José Luricci/Divulgação

Bloco de outras pandemias

O Cordão do Bola Preta, bloco de rua centenário do Rio de Janeiro, nasceu com a ideia de remediar uma outra pandemia, a da gripe espanhola, em 1918. A estreia se deu no primeiro Carnaval após a chegada do vírus, no ano seguinte, definido pelo escritor e historiador Ruy Castro como o "Carnaval da Revanche".

O fundador Álvaro Gomes de Oliveira, conhecido como Caveirinha, ganhou a alcunha por ter pego a doença e sobrevivido a duras penas, só "pele e osso", lembra Pedro Ernesto, presidente do bloco.

É a mesma sensação de escassez sentida mais de 100 anos depois. O Bola Preta estava prestes a reformar o telhado da sede quando a pandemia chegou. Sem as apresentações em eventos, o bloco se viu sem dinheiro para pagar as contas, atrasadas desde maio. Por conta disso, o bloco tem se mantido quieto a respeito da volta do Carnaval, e só nas últimas semanas voltou a tocar em eventos, na esteira dos ensaios das escolas de samba que já estão a todo vapor na cidade.

"A gente fica alegre com a possibilidade, mas esse vírus é renitente, quando você pensa que a coisa controlou... Isso assusta a gente", observa Ernesto.

Aos 69 anos, ele torce para que os números continuem em queda e que as pessoas passem a ver o lado da economia da festa. "Esse Carnaval deve ser a da recuperação criativa. A gente precisa acreditar na ciência, tomar as vacinas, a primeira, a segunda, a terceira, e torcer. O Carnaval no Brasil não gera só alegria, mas renda para muitas famílias."

Apesar de avançado o debate sobre a festa em São Paulo, o bloco Tarado Ni Você, dedicado ao cancioneiro de Caetano Veloso, se mantém no mesmo compasso do Bola Preta. "Estamos engatinhando nos preparativos. A gente ainda tenta entender o que será, resolver questões internas da retomada, acompanhando as notícias", diz o vocalista do bloco, Zé Ed.

Já o bloco Agrada Gregos, que na última saída às ruas de São Paulo reuniu 700 mil foliões, está com os preparativos em dia, não apenas para o desfile mas também para as tradicionais festas pré-folia. Nos últimos meses, a publicitária Nathalia Takenobu, uma das criadoras, tem corrido atrás de marcas e patrocínios, esse ano mais escassos.

Além de botar o bloco na rua, ela trabalha em paralelo um evento fechado que deve acontecer na segunda-feira de Carnaval. O CarnaBloco vai reunir outras festas, blocos e artistas numa programação paralela, lugar fechado e controle de público. "Tem gente que mesmo vacinada talvez queira um lugar que tenha limite de lotação, que vai olhar vacinação. Pensamos, como alternativa, criar um evento com algum tipo de controle para as pessoas se curtirem com menos medo", diz.

Quinta do Galo, evento que antecede a folia do Galo da Madrugada. Abaixo, o presidente do bloco, Romulo Meneses, e a esposa Ana Nery - Fazemos.art/Divulgação - Fazemos.art/Divulgação
Imagem: Fazemos.art/Divulgação
Romulo Meneses, presidente do Galo da Madrugada, e a esposa, Ana Nery, na Quinta do Galo, semana passada - Fazemos.art/Divulgação - Fazemos.art/Divulgação
Romulo Meneses, presidente do Galo da Madrugada, e a esposa, Ana Nery, na Quinta do Galo
Imagem: Fazemos.art/Divulgação

O Galo acordou

O Carnaval em Pernambuco ainda não foi confirmado pelas autoridades, mas em setembro o maior bloco de rua do Estado (e do mundo) anunciou os preparativos e o tema da grande volta, "Viva a Vida, Viva o Frevo". "Eu não garanti que haveria desfile", diz o presidente do Galo da Madrugada, Romulo Meneses, 72. "Eu não conseguiria colocar os galos na rua se começássemos a nos mexer apenas em dezembro".

Hoje, ele se vale da metáfora do avião — ao atingir uma certa velocidade, a aeronave não consegue mais abortar o voo. "Se precisar, decola e volta. Mas tenho certeza de que isso não vai acontecer."

Enquanto o Galo ganha novo visual em segredo, o bloco se dedica à volta da Quinta do Galo, show que serve de esquenta. Dessa vez, passistas ficaram de máscara e os foliões foram proibidos de dançar no salão, só com mesas e cadeiras. Na rua, vai ser difícil garantir esse controle. "Não tem como, vai ser um Carnaval liberal", acredita.

Entre os foliões mais aguerridos no Recife, se O Homem da Meia-Noite não sai para a rua, não há Carnaval. Presidente do mais tradicional bloco de Olinda, Luiz Adolpho, 57, garante que o boneco aparecerá de roupas novas, mas, por enquanto, o bloco está pronto mesmo é para mais uma transmissão online.

"É o momento mais difícil da minha vida. Meu coração de folião clama para que o homem saia nos braços do povo apaixonado, mas meu coração de ser humano clama por equilíbrio", diz.

"Pessoas se beijando, festejando, sem álcool nem gel. Não sei se isso vai ser possível em fevereiro", reflete. "São 300 pessoas morrendo no Brasil ainda, a gente perdeu essa noção. Isso não significa que vamos ou não sair."

O otimismo do presidente do Galo da Madrugada é algo também novo. Meneses conta que a vontade de festejar se esvaiu no ano passado. Ele chora pelo telefone: "É uma catástrofe tão grande que sufoca qualquer vontade. É mais ou menos como se estivesse vivendo a Segunda Guerra Mundial, não tinha espaço para pensar em coisas menores."

Ele perdeu o irmão e um diretor do bloco durante a pandemia. Ainda emocionado, reafirma que após as vacinas, o Carnaval será o antídoto dessa "guerra". "Tem que injetar pra gente voltar a exaltar a vida. Não podemos mais ficar presos ao negativo que ocorreu."