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São Paulo já parou antes: gripe espanhola teve saques e cemitério 24h

Hospital do Club Athletico Paulistano montado em 1918  - Acervo do Club Atlético Paulistano, cedida pela Editora Narrativa Um / Divulgação
Hospital do Club Athletico Paulistano montado em 1918 Imagem: Acervo do Club Atlético Paulistano, cedida pela Editora Narrativa Um / Divulgação

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

14/03/2020 04h00Atualizada em 29/10/2020 13h30

Revisitar jornais brasileiros de 1918 é ler um cenário semi-apocalíptico que, infelizmente, carrega semelhanças com os dias de hoje. Em vez de coronavírus, o pânico respondia pelo nome de gripe espanhola, a mais fatal das epidemias dos tempos modernos — estima-se que tenha deixado de 50 milhões a 100 milhões de mortos em todo o mundo.

No Brasil, a população tinha medo. Estabelecimentos foram fechados, aglomerações foram proibidas. Fiéis foram desaconselhados até a ir a missas. "Muita gente adoeceu, em grandes e pequenas cidades. Houve lugares em que mais da metade da população ficou doente e não havia quem cuidasse dos infectados", afirma ao TAB a historiadora Christiane Maria Cruz de Souza, doutora em História das Ciências da Saúde e autora do livro "A Gripe Espanhola na Bahia" (Editora Fiocruz).

E como foi a letalidade? Os mortos eram tantos que houve pane nos serviços funerários. De acordo com levantamento da historiadora Anna Ribeiro, do Grupo de Pesquisa, História e Memória da Faculdade de Saúde Pública da USP, a capital paulista registrou oficialmente 5.331 mortes em decorrência da gripe. "Desabastecimento, saques e pilhas de cadáveres aguardando enterramentos passaram a compor a paisagem caótica paulistana durante os dias de combate à epidemia", escreveu ela no artigo "Há Cem Anos, A Gripe Espanhola Assolava São Paulo". "No Rio, houve ocasião em que não tivesse quem enterrasse os mortos. Em Salvador também há relatos de determinados dias em que muitos cadáveres ficaram insepultos", comenta a historiadora Souza. Relatos da época dizem que como boa parte dos coveiros do Rio estavam doentes, a polícia abordava homens robustos pelas ruas e determinava que eles abrissem covas para enterrar os mortos. Segundo Souza, o número preciso de doentes e mortos é de difícil conclusão, já que havia muita subnotificação. "A doença não era de notificação obrigatória. E havia aqueles que morriam por consequências da gripe, mas com desenvolvimento de tuberculose, bronquite, pneumonia ou ainda complicação de doenças pré-existentes, como cardiopatias", explica Souza.

Como chegou até aqui? Passageiros a bordo do navio Demerara, que saiu de Liverpool, Inglaterra, em 14 de setembro de 1918, foram os primeiros a carregar a doença. A embarcação fez escalas em Lisboa e, já no Brasil, em Recife e Salvador, até aportar no Rio de Janeiro, então capital do País. Altamente contagiosa — e sem medicamentos ou vacina —, a gripe se alastrou. "Naquela época não havia um microscópio potente que permitisse visualizar o vírus, não havia remédio específico", pontua a historiadora Souza. "O que se tratava eram os sintomas: dor de cabeça, febre, coriza, essas coisas. E esperava-se que o organismo reagisse à doença. Eram ministrados tônicos para fortalecer o organismo, incentivada uma boa alimentação, ambientes arejados e que o doente não ficasse próximo das pessoas sãs." A pesquisadora conta que na corrida pela descoberta de uma vacina, muitos médicos "pegavam muco de pacientes infectados e inoculavam em si mesmos". "E teve médico que morreu nesse procedimento", afirma ela.

Charge publicada no jornal O Imparcial, da Bahia (1918) - 'A Gripe Espanhola na Bahia' / Reprodução - 'A Gripe Espanhola na Bahia' / Reprodução
Charge publicada no jornal O Imparcial, da Bahia (1918)
Imagem: 'A Gripe Espanhola na Bahia' / Reprodução

Havia algum tipo de prevenção? De acordo com a pesquisadora, as orientações e os conselhos eram muito similares aos atuais: lavar as mãos, evitar aglomerações, preferir locais arejados, evitar apertos de mão e abraços. "E evitar o pânico, porque os médicos diziam que o pânico abaixava a imunidade e deixava a pessoa mais suscetível à gripe", diz ela. Ou, nas palavras de um jornal da época: "a desordem dos espíritos causa a desordem das coisas". Uma das versões da invenção da caipirinha, o famoso drinque brasileiro, remonta ao período. Segundo acredita e difunde o Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac), a bebida teria sido criada no interior paulista como um remédio popular para os doentes de gripe espanhola. Conforme a história, seria uma adaptação da receita de xarope feito com limão, alho e mel — o acréscimo de álcool em remédio caseiro era comum porque se dizia que "acelerava o processo terapêutico". Posteriormente, a retirada do alho e do mel — e o acréscimo do açúcar e do gelo — fizeram nascer o drinque mundialmente conhecido.

Muitos casos em pouco tempo. De acordo com o memorialista paulistano Jacob Penteado, "não houve lar que não fosse atingido". Outro memorialista, o advogado Paulo Duarte, registrou que o Cemitério da Consolação, em São Paulo, permanecia iluminado 24 horas por dia, por causa dos "enterramentos que se faziam até durante a noite". "O maior problema da epidemia foi um grande número de casos em um curto período de tempo. A epidemia da gripe espanhola teve, em São Paulo, os primeiros casos registrados em 16 de outubro e os últimos em 19 de dezembro de 1918. Em pouco mais de dois meses foram notificados 116.777 infectados (22,32% da população da capital), sendo 86.366 apenas no mês de novembro. Em apenas três dias, entre 29 e 31 de outubro, 14.066 pessoas adoeceram", conta a historiadora Monica Musatti Cytrynowicz, autora do livro "Do Lazareto dos Variolosos ao Instituto de Infectologia Emilio Ribas: 130 Anos de História da Saúde Pública no Brasil" (Editora Narrativa Um). Aliás, é provável que o número seja superior aos oficiais: a médica Rita Barradas Barata calcula que tenham sido 350 mil os casos na capital paulista, o que significa dois terços da população.

Primeira página do jornal carioca Gazeta de Notícias - Reprodução - Reprodução
Primeira página do jornal carioca Gazeta de Notícias
Imagem: Reprodução

São Paulo já parou antes. Paulatinamente, as autoridades determinaram a interrupção das atividades, para tentar conter a propagação da gripe. "Houve isolamento dos doentes nos hospitais, tanto os que já existiam como os criados especialmente para os doentes de gripe. Também foram fechadas escolas, oficinas, fábricas", conta Souza. Bares, teatros e cinemas foram fechados. Escolas tiveram atividades suspensas. Ao fim do ano letivo, decidiu-se pela aprovação automática de todos os alunos, para evitar um problema de organização no ano seguinte. "Autoridades proibiram eventos onde houvesse aglomerações de pessoas. Desaconselharam que as pessoas fossem a missas, acompanhassem enterros, esperassem pessoas nos portos", relata a historiadora. "Mas muitos não obedeciam as autoridades sanitárias, especialmente no que dizia respeito a ir à igreja, procissões, beijar pés de imagens sacras? As pessoas estavam apavoradas e acabavam recorrendo a forças espirituais. Houve muita oração, muita procissão. Conforme conta Cytrynowicz, "o grande número de enterros levou a prefeitura a tomar uma série de medidas, inclusive a compra de centenas de caixões". Foi decretada a extinção dos enterros de luxo, a redução das cerimônias. E os preços das urnas funerárias e do serviço de transporte foram baixados. Diante da insuficiência dos carros oficiais, outros veículos foram adaptados para carregar os mortos. E era comum que vários cadáveres fossem levados juntos, em uma mesma viagem, ao cemitério. Para evitar mais contaminações, no Dia de Finados daquele ano foi proibida a tradicional visita aos cemitérios.

Quem podia, se afastava do trabalho. Entretanto, nem todos tiveram essa possibilidade. "A inexistência de leis trabalhistas que garantissem a convalescença remunerada, a jornada de até 16 horas no chão de fábrica e os parcos salários — mesmo após as reivindicações da grande greve de 1917 — fizeram de operários gripados a grande parcela de vítimas da epidemia na cidade de São Paulo: trabalhavam enfermos sob o risco de condenar suas famílias à absoluta miséria", escreveu Anna Ribeiro. As varrições em vias públicas foram transferidas para o período noturno, quando menos gente havia nas ruas. A ideia era que os "micróbios" causadores da doença circulassem o mínimo possível enquanto as pessoas estivessem transitando. Há relatos de desabastecimento, sobretudo de medicamentos para gripe e carne de frango. A canja de galinha era vista como um prato essencial para a recuperação dos enfermos. "Espaços e contatos circunscritos, relações sociais esgarçadas e, junto ao repouso e aos medicamentos, o leite e a carne de frango tornaram-se essenciais à recuperação dos gripados elevando mais e mais seus preços, deixando-os inacessíveis à maioria da população", pontuou Ribeiro. Até os vencimentos das dívidas foram postergados, sem que bancos e outros credores pudessem reclamar juros.

E no Rio? Na capital federal, órgãos públicos foram fechados, inclusive o Senado e a Câmara. O isolamento pode ser quantificado pelas eleições para o Senado, realizadas no auge da epidemia. Dos 36 mil eleitores aptos a participar da eleição na cidade do Rio, apenas 5 mil compareceram às urnas.

Não havia leitos suficientes, também. "Um dos maiores problemas foi a contaminação dos médicos e enfermeiros, o que dificultava ainda mais o atendimento. No Hospital de Isolamento, quase todos tiveram a gripe, excetuando-se, além do diretor, o cozinheiro, o jardineiro chefe e dois serventes", diz Cytrynowicz. Ela lembra que o Hospital de Isolamento, atual Instituto de Infectologia Emílio Ribas, criou um hospital na Hospedaria dos Imigrantes com capacidade para mil leitos. "Ele forneceu funcionários e itens tais como roupas, lençóis, cobertores, toalhas, aventais, 'camisas de dormir', urinóis e outros. Foram atendidas um total de 1.830 pessoas no Hospital de Imigração durante a epidemia", relata ela. Mas o governo passou a apelar "a toda iniciativa particular que pudesse ser tomada para colaborar com o problema", conta ela. "Foram então criados, além do hospital da Hospedaria e da enfermaria especial da Santa Casa, cerca de 40 hospitais provisórios na capital para receber os doentes de gripe, em espaços cedidos por entidades como clubes — entre eles o Paulistano e o Palestra Itália — e escolas, destacando-se o Grupo Escolar da Barra Funda (com 500 leitos) Colégio Diocesano (com 400), Mackenzie (400), Salesianos (300), Ginásio do Carmo (300) e Santa Inês (250). Além dos hospitais, foram criados 44 Postos de Socorros e 83 farmácias foram autorizadas a distribuir receitas gratuitas aviadas por conta do governo", enumera a pesquisadora.

A gripe espanhola não poupou autoridades. Eleito presidente da República pela segunda vez, o político Francisco de Paula Rodrigues Alves (1848-1919) foi uma das mais ilustres vítimas: morreu antes de assumir seu mandato. Antes, Rodrigues Alves já havia sido presidente do Brasil entre 1902 e 1906, governador de São Paulo por três mandatos, e ministro da Fazenda.

Errata: este conteúdo foi atualizado
A primeira versão deste texto afirmava que o navio Demerara chegou ao País em 14 de setembro de 1919. O ano correto é 1918.