Pandemia do coronavírus: como a democracia pode fazer diferença na crise
No dia 30 de dezembro de 2019, o médico Li Wenliang, de 34 anos, enviou uma mensagem a alguns de seus colegas do Hospital Central de Wuhan, na China, avisando que uma possível epidemia de crise respiratória poderia estar por vir. Ele havia identificado sete casos de sintomas parecidos com o da Sars no hospital em que trabalhava.
O resultado, em vez de proteção extra para os agentes de saúde, foi uma convocação pela polícia. Li foi forçado a assinar um termo, junto a outros colegas, em que prometia não "espalhar boatos" sobre o surto. O fim da história você provavelmente já conhece: o novo coronavírus se espalhou a partir de Wuhan, e o médico morreu em decorrência da covid-19, doença causada pelo coronavírus, no dia 6 de fevereiro. Em 11 de março, a Organização Mundial da Saúde declarou que se trata de uma pandemia. A última doença a receber esse status havia sido a H1N1, em 2009.
Se você assistiu recentemente à série "Chernobyl" (2019, HBO), provavelmente está com a memória fresca em relação a uma catástrofe fora da área da saúde que poderia ter sido evitada ou minimizada caso o governo tivesse dado ouvidos a quem estava trabalhando no "chão de fábrica" de um desastre iminente. Em 1986, a União Soviética demorou a admitir a gravidade e a dimensão do acidente ocorrido durante um teste de simulação de falta de energia na usina nuclear. A falta de transparência custou vidas.
Não dá para cravar que, se o epicentro do coronavírus fosse em um país democrático, o avanço teria sido controlado com mais rapidez. "É possível que sim, mas não temos como saber com certeza", observa Joshua Sharfstein, vice-reitor para prática de saúde pública e engajamento público da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Mas, ao que tudo indica, há uma tendência. No início de fevereiro de 2020, a revista The Economist publicou um levantamento mostrando que epidemias no passado foram mais mortais onde não há democracia.
A análise usou dados a partir de 1960, desde uma catapora no Nepal, em 1963, a casos mais recentes, como o da zika e do ebola, comparando faixas de renda iguais para evitar disparidades decorrentes de recursos disponíveis. "Uma tendência clara ficou aparente: para qualquer faixa de renda, as democracias parecem ter taxas de mortalidade mais baixas do que os países não democráticos", diz a análise. A diferença é de seis mortos a cada um milhão de pessoas em regimes autoritários, em média, contra quatro em um milhão nos democráticos.
"Transparência gera confiança, que é essencial", disse ao TAB Sharfstein. "As pessoas precisam sentir que podem confiar nas orientações que estão recebendo para poder agir na proteção de sua saúde." Quanto mais informação correta, portanto, mais munição a população tem para se proteger e consequentemente ajudar a prevenir que o vírus se espalhe.
Para José Álvaro Moisés, professor sênior do grupo de pesquisa em Qualidade da Democracia do Instituto de Estudos Avançados da USP, um governo democrático pressupõe a participação dos eleitores nas decisões públicas mesmo fora das eleições. "Isso depende muito da transparência. Os governos têm que apresentar o tempo todo o que estão fazendo, por que e qual a natureza das decisões que estão sendo tomadas. Isso permite que os eleitores formem uma visão crítica, inclusive em casos como esse, de saúde pública", avalia.
Por isso, Moisés classifica como grave a declaração do presidente Jair Bolsonaro de que o poder do coronavírus está sendo "superdimensionado". O professor compara a reação a de governantes como Angela Merkel, na Alemanha, e a decisão da Itália de colocar todo o país em quarentena. "[A fala de Bolsonaro] falseia a realidade. Esses outros governos dão uma dimensão do que está acontecendo ou pode vir a acontecer, com base em informações técnicas e científicas, com um escrutínio muito sério do que está em jogo. Se a população não tiver conhecimento e não se preparar, a taxa de letalidade pode ser alta", afirma.
Democracia não é garantia de transparência
O levantamento da The Economist ainda conclui que, apesar de um regime não democrático como o da China ser capaz de tomar decisões com rapidez (como a construção de um hospital em dez dias), já que há menos instâncias envolvidas na tomada de decisões, vai mal em questões que exigem fluxo livre de informações.
Além do médico Li Wenliang, pelo menos outras quatro pessoas foram presas, silenciadas ou desapareceram desde que criticaram publicamente as ações do governo. Um documentário da CGTN, canal financiado pelo governo chinês, mostra como a epidemia evoluiu a partir de Wuhan e destaca as ações do Partido Comunista chinês para evitar burocracias e lidar com os casos de forma mais eficiente. Desde fevereiro, a China apresenta queda no número de novos casos da doença.
Mas Moisés alerta que a eficiência chinesa vai além do tipo de regime: ela tem tudo a ver com a condição atual do país. Com mão de obra qualificada à disposição e uma economia crescente, a China tem capacidade de tomar decisões rápidas que a Rússia, outro regime autoritário, não poderia. Enquanto isso, democracias em que há bom diálogo entre os poderes também conseguem ser ágeis em casos de crise, opina o professor. "Quando você tem um governo democrático bem articulado com o Congresso, que consegue dialogar com as forças políticas que pensam diferente e há respeito ao Judiciário, as decisões podem ser mais rápidas", afirma Moisés.
A Ucrânia, onde o regime é considerado híbrido, é um exemplo de país onde a situação saiu de controle devido ao volume de informações falsas — e da falta de transparência do governo, como mostra este relato. Por lá, fake news enviadas em grupos de mensagens sobre um grupo de viajantes que voltava da China acabaram em barricadas, vigília da população e o apedrejamento dos ônibus com os recém-chegados, que por sinal não tinham nenhuma confirmação de infecção e ficariam em quarentena no país.
Mesmo em países democráticos há falta de transparência. Nos Estados Unidos, onde há mais de mil casos confirmados, cidadãos e a mídia reportam falta de informação, principalmente sobre a disponibilidade de testes. Uma jornalista descreveu no jornal The New York Times a saga de duas semanas, do momento em que ela passou por um aeroporto onde outras pessoas foram infectadas pelo vírus, até o momento em que conseguiu ser testada (e recebeu resultado negativo), depois de apresentar sintomas como febre e dificuldade de respirar e ter o teste negado mais de uma vez.
Donald Trump é acusado de politizar a pandemia. Como observa Moisés, a eleição se aproxima no país, e o presidente não quer piorar sua imagem. "Ele não quer admitir a gravidade e lidar com as medidas que eventualmente podem ser tomadas, até porque nos Estados Unidos não há um sistema de saúde público. Não admitir a gravidade do problema é desviar a atenção de um fator que pode ser importante nas eleições", afirma.
Em artigo, o editor-chefe da revista científica Science, Holden Thorp, critica os cortes de verbas para a ciência nos EUA e destaca que agora o presidente tenta apressar o desenvolvimento de uma vacina contra o vírus. "Enquanto cientistas estão tentando compartilhar fatos sobre a epidemia, a administração bloqueia esses fatos ou os repete com contradições. Taxas de transmissão e morte não são medidas que podem ser alteradas com força de vontade e uma apresentação extrovertida", escreve o cientista. "Depois de três anos debatendo se as palavras da administração importam, as palavras agora são claramente uma questão de vida ou morte."
Fake news — sempre elas
Desde o fim de janeiro, o ministério da Saúde brasileiro vem fornecendo informações sobre o vírus no Brasil, com boletins diários e coletivas de imprensa para esclarecer dúvidas e passar orientações à população. Diferentemente da declaração do presidente, Moisés afirma que as ações estão sendo bem feitas.
A condução é elogiada também por profissionais da saúde, como o médico Leonardo Weissmann, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). Um grande problema, diz ele, são as mentiras distribuídas pela própria população. "Minha impressão é que, em termos de ministério da Saúde, as informações estão sendo bastante transparentes", afirma. "Infelizmente o que tem acontecido, como em outras situações, é que a proliferação de notícias falsas às vezes é maior que a do vírus numa epidemia como esta."
Weissmann cita como exemplo a fake news que dizia que a vitamina D ajudaria a proteger do vírus ao aumentar a imunidade. A informação já foi desmentida inclusive pelo ministério da Saúde, que mantém um canal no WhatsApp para verificar informações sobre o coronavírus no número (61) 99289-4640.
Além de tirar o foco das medidas preventivas eficazes — como lavar as mãos com frequência, evitar contato com pessoas que apresentem sintomas de infecções respiratórias agudas, cobrir o rosto com o braço ao tossir ou espirrar e manter os ambientes bem ventilados —, esse tipo de informação falsa também pode causar pânico desnecessário, observa o infectologista. Fake news afirmam que o governo chinês esperava aprovação para matar pacientes mostram dezenas de pessoas caídas no chão, supostamente na China, entre outras imagens desesperadoras.
Para garantir informação de qualidade, vale acompanhar veículos de mídia com confiabilidade reconhecida, além das redes sociais do ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde.
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