Como os blocos LGBTQs ajudaram a dar a cara do Carnaval de rua em SP
São Paulo dá início ao Carnaval 2020 com a estimativa de levar 15 milhões de foliões às ruas, 1 milhão a mais do que em 2019. Uma evolução e tanto para a cidade que há uma década parecia ter soterrado a folia na rua, dando razão a quem um dia a chamou de "túmulo do samba".
Do final de semana passado até dia 1º de março, serão 678 desfiles oficiais na rua, um aumento de 38,5%. Um número em especial salta aos olhos. Desse total, 60 blocos são voltados ao público LGBTQ+, representatividade que muitos destinos clássicos do Carnaval nunca chegaram a ter. E isso diz muito sobre a cara do Carnaval de rua que a cidade agora ostenta.
O processo de revitalização dessa folia passa pelo surgimento dos blocos Acadêmicos do Baixo Augusta (2010) -- hoje o maior da cidade, atraindo 1 milhão de pessoas --, o Casa Comigo (em 2012) e o Tarado Ni Você (em 2013), mas muitos apontam 2015 como o ano da virada, quando a cidade passa a disputar turistas com Salvador e Rio de Janeiro e a concentrar recursos e a atenção das marcas patrocinadoras. Naquele ano, jovens foliões (muitos estreantes na festa) tomaram as ruas para seguir trios elétricos que sequer tinham bandinha de fanfarra ou bateria.
Foi o caso do Meu Santo é Pop, que saiu pela primeira vez com DJs substituindo as marchinhas pelos hinos de divas do pop, na mesma pegada das baladas LGBTQ+ da cidade. Uma quebra na lógica tradicional da festa, não apenas na sonoridade, mas também no comportamento. Segundo o fundador, Raphael Malaquias, a intenção era fazer a comunidade gay, acostumada com a ferveção da noite, botar a cara no sol e na folia.
"Em 2015 tinha muito bloco 'friendly', mas eu não conhecia nenhum bloco específico para o público LGBTQ+. O bloco surgiu para que elas se sentissem livres para curtir o Carnaval sem medo", conta. "Até então era tudo muito tradicional, as mesmas marchinhas, a repetição de padrões homofóbicos no comportamento e na música."
De cara, o bloco reuniu 5 mil pessoas. Hoje, conta com patrocínio e a estimativa de 100 mil pessoas para o desfile deste ano no pós-Carnaval. "Colocar um bloco pop e abertamente LGBTQ+ nas ruas fez as pessoas perceberam que era possível pertencer ao Carnaval de rua com seus nichos. 2015 foi quando a diversidade realmente deu as caras na festa", observa Malaquias.
A movimentação nas ruas naquele ano chamou atenção até do Observatório de Turismo e Eventos da Cidade de São Paulo, núcleo de estudos e pesquisas da SPTuris, que antes monitorava a movimentação apenas no sambódromo. O levantamento mostrou um crescimento de 22% de turistas e um aumento no número de paulistanos que ficaram na cidade por causa do Carnaval (42%). Em 2019, o número chegou a 55%.
Carnaval plural
Figura conhecida da comunidade LGBTQ+ na cidade, o jornalista André Fischer se recorda que, há 20 anos, o público contava apenas com a Redoma, espécie de bloco que rolava na segunda-feira anterior à festa.
"Como todo mundo saía da cidade nos dias de Carnaval, era o momento do encontro da comunidade. Até então o destino principal era o Rio, com seus bailes e bandas frequentados pelos que se montavam, pelos que viviam enrustidos durante o ano e pelos que se assumiam sem grandes problemas", lembra.
Hoje, como diretor do Centro Cultural da Diversidade da Secretaria Municipal de Cultura, Fischer não tem dúvida de que a festa, como a conhecemos hoje, foi atravessada pela participação dos LGBTQ+ na folia.
"Assim como a cidade abraçou a Parada do Orgulho LGBT e a transformou na maior do mundo e em um de seus eventos mais emblemáticos, os blocos gays são parte fundamental do sucesso e da própria identidade do carnaval paulistano", observa. "Aqui os blocos não tocam apenas samba, axé, frevo. Tem música eletrônica, funk e pop, inclusive em inglês, que são ritmos 'tradicionais' da cena gay."
E não há como negar que a diversidade sonora, apesar de render o apelido de "carnaval de balada", é o que diferencia a festa daqui com a de outros destinos. Nos 400 circuitos espalhados pela cidade este ano, há espaço até para blocos de k-pop e emo. Entre as estreias de 2020 tem o lendário Galo da Madrugada, bloco tradicional de Recife, mas também tem trio com Alok e Vintage Culture, dois totens da música eletrônica. Se antes causava estranheza um bloco como Beatloko, voltado para o rap, hoje o gênero ganha a companhia de outro trio, liderado por Emicida.
"O que aconteceu foi um movimento de pluralizar o público, e também os gêneros musicais", diz a publicitária Nath Takenobu, uma das criadoras do Agrada Gregos, bloco gay e "hetero friendly", que reuniu quase meio milhão de pessoas em 2019.
Assim como nove em cada dez paulistas, ela costumava curtir o Carnaval no Rio de Janeiro, até 2015, quando foi impactada pelo movimento nas ruas. "Queríamos fazer um bloco com o perfil dos nossos amigos, que saiam à noite. Nos primeiros anos, era esse o approach: se você acha que não gosta de Carnaval você está errado, você não gosta é de marchinha, e a gente vai tocar a música que você gosta", conta.
Junto com o Agrada Gregos, 2016 também marcou a estreia do Domingo Ela Não Vai e Minhoqueens, que em menos de um ano já arrastavam facilmente 150 mil foliões. No levantamento da SPTuris de 2019, pela primeira vez Agrada Gregos e Minhoqueens foram os blocos mais citados pelos entrevistados.
"Há muita gente vindo de outros estados para conhecer o Carnaval de São Paulo", observa Fischer. "O nosso Carnaval está ficando conhecido até mesmo na cena internacional, por ser mais organizado, e, com certeza, pela imensa visibilidade e protagonismo de gays, lésbicas, drag queens, travestis e pessoas trans."
Esse espaço é meu
Há muitas explicações para esse boom ter acontecido na metade da década. A economia em queda certamente fez com que as pessoas desistissem de viajar, mas para Takenobu um motivo se sobrepõe. "Foi o ano da pluralização que, hoje em dia, é a marca registrada de São Paulo", observa.
"Eu me divertia muito no Rio, mas não me sentia representada. Eram blocos majoritariamente héteros, então tinha aquela coisa de puxar o braço, o povo queria pegação. Esses blocos LGBTQ+ têm muita pegação, óbvio, mas eles estão muito pautados para você estar entre os seus. E isso faz diferença. São muitas as mulheres hétero que também escolhem ir a esses blocos, porque elas ficam livres e seguras para dançar". Sinal de um ambiente mais plural e seguro, as mulheres passaram a ser maioria na festa da rua, segundo a SPTuris. Em 2019, elas representavam 54% dos foliões.
Foi nesse ambiente que as lésbicas passaram a botar seus blocos na rua, abrindo espaço e representatividade na folia. De lá pra cá, surgiram os blocos Desculpa Qualquer Coisa, Dramas de Sapatão, Siriricando e o Siga Bem Caminhoneira -- que resgata a tradição com uma bateria 100% feminina.
"Queremos provar que as mulheres podem fazer tudo. Podem discotecar, podem tocar, podem fazer o que quiser. Com a bateria na rua, aumenta nossa proximidade com o público, acaba sendo maior nessa configuração", observa Luana Coelho, DJ e produtora do bloco.
Saldo parcial: arrastões
O crescimento contínuo do Carnaval de rua fez aumentar também a sensação de insegurança. No levantamento da SPTuris, em 2015, 89% dos entrevistados disseram se sentir seguros na festa. Em 2019, esse número caiu para 70%.
Em 2020, no pré-Carnaval, o Desculpa Qualquer Coisa desfilou em um espaço maior, no centro da cidade, e sofreu com arrastões e alguns casos de assédio. Uns apontam a má distribuição dos blocos pelos circuitos, misturando blocos, estilos e públicos diferentes, como um dos motivos.
Em uma carta aberta à prefeitura, o bloco cobrou mais segurança: "Reiteramos que nosso objetivo era contrapor precisamente esse quadro nefasto no qual estamos inseridas: mulheres lésbicas e bissexuais se divertindo e ocupando a cidade, em um espaço seguro, são representações da sociedade que queremos".
Para Coelho, do Siga Bem, os blocos LGBTQ+ têm peso político na festa. "Acreditamos que a folia se tornou muito mais politizada e democrática com o passar dos anos, e a procura por blocos mais inclusivos aumentou, afinal, todos têm direito a se divertir, não é mesmo?", diz.
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