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Dívida faz aposentado perder quase tudo depois de 50 anos de trabalho

O ex-soldador Noel Pereira dos Santos, aposentado, vai ao escritório da Serasa em São Paulo para tentar negociar dívidas - Fernando Moraes/UOL
O ex-soldador Noel Pereira dos Santos, aposentado, vai ao escritório da Serasa em São Paulo para tentar negociar dívidas
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Sibele Oliveira

Colaboração para o TAB, de São Paulo

26/04/2022 04h01

Noel Pereira dos Santos tem 62 anos e não quer começar tudo do zero. Queria estar tranquilo a essa altura do campeonato, mas seu desejo de sossego foi por água abaixo por causa das dívidas, que foram se multiplicando. Hoje, elas beiram os R$ 90 mil.

Apesar do calhamaço de boletos, parcelas a pagar e outros documentos que estampam cifras e juros assustadores — o aposentado carrega tudo numa mochila preta -, ele não sucumbe ao desespero. "Não me abato fácil, não. Enquanto há vida, há esperança. Tenho que lutar, correr atrás dos meus objetivos."

O primeiro deles é saber se ele pode abater algum valor. Por isso, está no escritório da Serasa (Centralização de Serviços dos Bancos), no bairro da Consolação, no centro de São Paulo. Como ele, outras pessoas ocupam a sala de espera ao longo da manhã nublada de uma quarta-feira.

Há jovens, idosos e uma moça com um bebê no colo. O silêncio reina. Com a expectativa de sair do vermelho, aguardam a vez de se dirigir aos guichês, onde esperam encontrar acordos financeiros capazes de livrá-los dos débitos que lhes roubam o sono.

Antes de saber se terá uma boa notícia, o aposentado conta à reportagem do TAB como se tornou estatística, um dos 65 milhões de brasileiros inadimplentes segundo o Mapa da Inadimplência e Renegociação de Dívidas no Brasil, elaborado pela Serasa em fevereiro.

O pontapé do endividamento de Noel Pereira dos Santos foi dado no início dos anos 2010. Sentindo-se seguro com o salário que ganhava como soldador numa metalúrgica, começou a colecionar carnês de diferentes lojas, abusou do cartão de crédito e do cheque especial e confiou no limite oferecido pelos bancos.

O salário de Santos era compatível com o padrão de vida da família. O problema é que ele não checava as contas e exagerava nos gastos. Descobriu por acaso que sua situação financeira tinha degringolado. Como as dívidas da ex-esposa eram menores, limpou o nome dela e ficou com o próprio sujo.

Sem poder fazer compras a prazo, quis negociar as dívidas, No feirão emergencial da Serasa realizado em março, viu a chance de zerar débitos que não acreditava passarem de R$ 10 mil. Assim, deixaria de dever na praça e não precisaria mais pedir cartão emprestado quando não pudesse fazer pagamentos à vista.

Em 16 de março, chegou à tenda de atendimento do Feirão Limpa Nome Emergencial por volta do meio-dia, pegou senha e entrou numa fila não muito grande. Uma funcionária pediu seu CPF para fazer um cálculo rápido no celular. O aposentado perguntou se podia fotografar a tela e depois sentou-se para somar os valores. "Meu Deus do céu! Devo tudo isso?" A conta havia dado R$ 60 mil.

O ex-soldador Noel Pereira dos Santos, aposentado, vai ao escritório da Serasa em São Paulo para tentar negociar dívidas - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Luz no fim do túnel

Naquela ocasião, assustado e com a cabeça dando um nó, voltou para a fila. Quando foi atendido, a especialista o aconselhou a pagar dívidas menores, referentes à conta de telefone e a compras que fez numa loja. Não conseguia processar nada direito porque ainda estava em choque. Só desacelerou a respiração quando foi informado de que poderia quitar uma dívida de mais de R$ 24 mil, feita num cartão de crédito, se pudesse pagar R$ 610 em espécie — desconto de 99%. Fechado o negócio, o sino colocado na tenda badalou para comemorar a negociação.

O homem flagrou o mesmo alívio em outros rostos, de pessoas acima dos 50 anos que, como ele, não tinham muita familiaridade com a internet, onde também era possível participar do feirão.

"O brasileiro quer quitar a dívida. A gente sente. Ninguém quer ficar com o nome sujo. Eles saem aliviados, felizes, com todos os boletos ali para quitar", resume a especialista da Serasa Patrícia Camillo, 30, que atendera os endividados na tenda.

Patrícia Camillo, especialista do Serasa - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Patrícia Camillo, especialista da Serasa
Imagem: Fernando Moraes/UOL

O aposentado gastara os R$ 1.000 que tinha em mãos, pagando algumas dívidas e parcelando outras em até dez vezes. Mesmo menor, ainda era um desafio liquidar o saldo negativo de cerca de R$ 41 mil — e sua preocupação ia além. Ele também deve para a Receita Federal e está amarrado às parcelas de um empréstimo consignado feito em 2012, quando procurou a financeira. Quitou o que devia em 2017, mas decidiu fazer outro em seguida. A dívida atual com a instituição "come" mais de R$ 600 por mês de sua aposentadoria. No total, entre as pendências com o Leão e o empréstimo, são mais quase R$ 40 mil.

O abatimento mensal da dívida com a financeira é dinheiro que faz falta, já que Santos não trabalha mais. Ele saiu do último emprego em setembro de 2021 por não aguentar o tranco. Acordava todos os dias às quatro e meia da manhã para entrar na empresa às sete, pois a viagem de Parelheiros, extremo sul da capital paulista, até a Mooca, era longa. Só chegava em casa depois das 21h.

Usou R$ 10 mil da rescisão para abater algumas dívidas, comprou materiais de construção para fazer reparos em casa e separou uma parte para o pedreiro. "A gente paga mil ali, dois mil ali, três mil ali... e o dinheiro vai embora", lamenta.

Os boletos do ex-soldador Noel Pereira dos Santos - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

O sonho do recomeço

Com o que sobrou, Santos trocou o Voyage por uma Parati 1993 que tinha um porta-malas maior, mas estava deteriorada por dentro. Como o carro ainda não está pronto, não consegue trabalhar direito na pequena serralheria que montou na garagem de casa.
Os bicos que fazia nos fins de semana, mesmo estando empregado, lhe rendiam alguns trocados. Ao sair da empresa, o natural seria que o comércio se tornasse seu ganha-pão. Mas a pandemia atrapalhou.

Um ou outro serviço garantem a ele um lucro mensal de R$ 400, mas há meses em que nenhum cliente aparece. Não lhe agrada a ideia de pedir um carro emprestado para transportar materiais ou fazer entregas. Por isso, ele amarga um tempo de vacas magras, principalmente agora que os preços estão nas alturas.

Quando vai ao mercado, só coloca o básico no carrinho. Mistura virou luxo. A vida não é muito diferente da que teve na adolescência, quando plantava feijão, milho, café, mandioca e banana em fazendas de Vitória da Conquista, na Bahia, sua cidade natal.

O dinheiro suado mal dava para se vestir e calçar. Depois da colheita era pior. Ficava de braços cruzados até aparecer serviço novo. Em 1977, decidiu abandonar a dureza da vida na roça e aceitou o convite de um primo para vir morar em São Paulo. Tinha 17 anos. Sua ascensão de ajudante a soldador profissional não aconteceu do dia para a noite. "Estou há quase 50 anos aqui e já ralei muito", diz. Hoje, Noel Pereira dos Santos mora sozinho. Os quatro filhos estão criados, mas não podem ajudá-lo financeiramente.

Para se livrar de todos os débitos, colocou a casa à venda por R$ 200 mil, valor que deve dividir com a ex-mulher. Calcula que de sua parte vai sobrar cerca de R$ 10 mil. Com esse dinheiro, pretende voltar para Vitória da Conquista, comprar ferramentas novas e abrir uma serralheria lá.

"Como diz o ditado, o leão está ferido, mas não está morto. Sou otimista, penso positivo. Vou quitar isso daí e recomeçar do nada. Tenho muita saúde, graças a Deus. Muita lenha para queimar."

O aposentado Noel Pereira dos Santos tenta negociar dívidas na Serasa - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Pouco depois da entrevista ao TAB, Noel foi chamado num guichê do escritório da Serasa para tentar resolver os R$ 41 mil.

Quando o cálculo é impresso, a oferta de um acordo financeiro arranca dele um sorriso. Se pagar R$ 237, um montante de R$ 23.793 será apagado para sempre. No calor da surpresa, despeja a tensão que tem vivido nos últimos tempos. "O mais difícil de ser endividado é colocar a cabeça no travesseiro e ficar pensando no que devo, que quando chegar o final do mês, vou receber e não vai dar para pagar. Fico com isso na mente. É por isso que dívida nunca mais. Pelo amor de Jesus Cristo!"

Noel Pereira dos Santos sai apressado para não deixar escapar a chance de acabar com mais uma parte dela.