Boias-frias da areia, pernambucanos migram para Balneário Camboriú no verão
A construção mais alta que Damião Gomes da Silva conheceu na adolescência foi uma casa de dois andares no centro de Saloá, cidade do agreste pernambucano. Foi assim até 1987, ano em que embarcou num ônibus da viação São Geraldo, aos 15 anos, com um par de chinelos e um punhado de roupas. Pobre em posses, também lhe faltavam as letras. Só sabia desenhar o nome.
Desembarcar em São Paulo foi um choque. Recepcionado por outros nordestinos, Damião foi direcionado a um galpão. Recebeu um fardo de tapetes para vender. Virou adulto, numa emancipação precoce. "Vendia para comer, a cama eram os tapetes e minha casa era o depósito."
Damião e os tapetes perambularam pelo interior de São Paulo e Mato Grosso até ele visitar a irmã em Florianópolis no inverno de 1990. "Senti um frio do caralho." Na praia, vendia pipas e corria dos fiscais. Voltou a Saloá em outubro daquele ano para uma cerimônia. O adulto precoce virou marido aos 18 anos.
Santa Catarina mostrara boas perspectivas e o casal tentou a sorte numa praia que começava a vingar. "Cheguei em Balneário Camboriú em 25 de dezembro de 1990, bem no dia do Natal." O rapaz que não sabia ler era bom de conta e percebeu que estava fazendo dinheiro vendendo toalhas aos banhistas.
Contou à família e mais pernambucanos brotaram no ano seguinte. Com o passar do tempo, ele dava conselhos sobre a cidade a tios, primos e amigos. Eles chegavam em bandos cada vez maiores para trabalhar na temporada de verão e retornavam para o Nordeste na Páscoa. Eram uma espécie de boias-frias da areia.
"O cara voltava abonado para Saloá e mais gente vinha no ano seguinte", explica Damião.
Ele não se considera o pernambucano pioneiro, mas os conterrâneos afirmam que este homem de 50 anos foi um dos primeiros a sair do agreste para trabalhar em Balneário Camboriú. A migração é repetida por muito mais gente três décadas depois. Hoje, os cerca de 120 quiosques de praia da cidade são tocados por mão-de-obra pernambucana.
Oportunidade de conforto
Balneário Camboriú é lugar de luxo. A avenida à beira-mar e a areia da praia reúnem gente turistando e querendo chamar atenção. Os métodos para ser visto incluem Porsches, Ferraris, Guccis, Louis Vuittons, baldes de champanhe e barrigas definidas.
Quem não está na areia a passeio também tem suas extravagâncias. A tropa que trabalha nos quiosques veste regatas néon nas cores verde, rosa e laranja. Uniforme para atrair a atenção da turistada.
Esses trabalhadores repetem o trajeto e o sotaque de Damião pelo mesmo motivo: falta de emprego na terra natal. A maioria é morador de Saloá e Águas Belas, cidades vizinhas. Viajam em ônibus que fazem pinga-pinga nas cidades do agreste pernambucano e depois enfrentam quatro dias direto até Balneário Camboriú. A travessia começa na primavera, entre fins de outubro e começo de novembro.
Cada passageiro paga R$ 500 e é comum que os pernambucanos viajem em família. Jeandro dos Santos Cavalcanti, 23, sacolejou quatro dias pelo asfalto ouvindo forró e pisadinha, acompanhado da mulher e de dois primos. Eles e os outros 40 passageiros eram de Águas Belas.
É a segunda temporada em que Jeandro trabalha nos quiosques da cidade. O serviço consiste em alugar cadeiras de praia, guarda-sol e levar churros e milho verde aos clientes. Como Santa Catarina recebe muitos argentinos, ele aprendeu o mínimo de espanhol.
"Sei falar olá, obrigado, tchau, essas coisas. Mas as primeiras palavras que aprendi foram sombrero e silla de playa [guarda-sol e cadeira de praia]."
Repetindo a história dos pernambucanos que conversaram com o TAB, Jeandro conta que trabalha na roça. Planta feijão, milho e cria 10 ovelhas. O dinheiro que faz em Balneário Camboriú permite confortos que eram inalcançáveis antes de virar boia-fria da areia. As economias da temporada 2019/20 viraram uma moto.
Aqui é trabalho
Aline Pereira da Silva, 27, está do outro lado do negócio, é dona de quiosque. Ela conta que contrata pernambucanos porque eles fazem o serviço que os nativos não estão dispostos a encarar.
A empresária afirma que o normal nesse ramo é todo pernambucano ter um padrinho para fazer indicação. O caso de Maria Socorro Gomes da Silva, 37, confirma a declaração. Ela chegou a Balneário Camboriú sem emprego certo nesta temporada.
"Vim na aposta. Mas tinha que tentar e consegui trabalho rápido. Foi indicação de um amigo."
Maria Socorro recebe R$ 2,8 mil mensais, café da manhã e almoço. A contrapartida é trabalhar das 8 horas da manhã até 19 horas, com direito a uma folga semanal. Puxado, mas o dinheiro é suficiente para passar o ano em Garanhuns, cidade em que mora.
Funcionária do quiosque vizinho, Vera Lucia Barros, 30, ressalta que os dias em Balneário Camboriú são um investimento. "Aqui a gente não vive, a gente trabalha. Lá [Águas Belas] a gente se diverte. Vai no forró, para a missa e para a casa dos parentes."
Durante a temporada, Vera Lucia controla a falta que sente dos pés de goiaba, manga e caju que fazem sombra em seu quintal. Também administra a saudade do coentro na comida e dos pratos do Nordeste. Ela já tentou fazer feijão de corda, cuscuz e sarapatel em Balneário Camboriú, mas não ficou a mesma coisa.
"Aqui a comida não tem vitamina."
Sem espaço para o lazer
Os pernambucanos passam a temporada inteira num destino que atrai milhões de pessoas, mas não têm tempo nem disposição de turistar. Jeandro está todo dia na areia, mas nunca tomou um banho de mar.
"Praia é lugar de trabalho, não de diversão."
Ele nunca esteve no Cristo Luz, na roda gigante, no bondinho ou em qualquer atração turística. Vera Lucia foi para praia uma única vez, no dia da chegada a Balneário Camboriú em novembro de 2015. Desde então, foram sete temporadas como boia-fria da areia e um sentimento de que não pertence à atmosfera de lazer da cidade.
A falta de encaixe com o clima praia e balada é precificada antes de sair do agreste. Mas Neilane Calixto Albuquerque, 23, enfrentou situação muito pior. Ela era um bebê quando a mãe migrou para um trabalho de verão em Balneário Camboriú no começo dos anos 2000. Durante o dia, ficava aos cuidados da mulher que alugou a quitinete em que a família morava.
Ela conta que não recebia comida nos horários corretos e chorava de fome. A cuidadora usava brutalidade na hora de penteá-la. Neilane chorava de dor.
A mãe soube da situação quando os maus-tratos viraram agressão. A família voltou para Águas Belas sem denunciar o caso à polícia. Foi essa a história que Neilane ouviu quando disse à mãe que iria tentar a sorte em Balneário Camboriú aos 16 anos. Tudo correu tão bem que ela resolveu criar as duas filhas em Santa Catarina.
"Aqui o mundo é diferente, tem perspectiva."
Além de trabalhar em quiosque, Neilane é dona de uma loja virtual de roupas infantis.
Bairro dos pernambucanos
Não há registro de quantos pernambucanos trabalham em Balneário Camboriú, mas eles estão nos restaurantes, na construção civil e nos quiosques. É comum chegarem na primavera sem ter onde morar. Mas o destino do ônibus já dá pistas do novo endereço: ele para no bairro Municípios.
Entre o local de desembarque e o mar existe a BR-101. A rodovia funciona como uma espécie de fronteira para as marinas e os arranha-céus da praia, fazendo o bairro Municípios ser distante geograficamente, na estética e nos costumes, em relação à badalação de Balneário Camboriú.
Na primavera, as esquinas do bairro são tomadas por gente oferecendo aluguel em casas de classe média baixa e quitinetes. No começo das noites de verão, as ruas ficam cheias de bicicletas. Os pernambucanos se encontram nos quiosques no final do turno de trabalho e voltam em grupo para casa.
Depois de tanto tempo nas areias, Damião mudou de ramo. Abriu um bar no bairro. Ele atende a clientela vestindo uma camisa com os quatro botões de cima abertos, expondo o peito nevado de pelos brancos. Vende todo tipo de bebida e as prateleiras parecem ter mais garrafas que uma farmácia tem remédios.
A carta de bebidas vai de uísque escocês a Corote, mas maior estoque é de Pitu, cachaça típica de Pernambuco. A pilha de fardos se aproxima do teto. O bar tem um aviso gigante de que que não vende fiado, mas é fake news. A folha no balcão tem nomes dos clientes e entrega os hábitos de consumo dos frequentadores. Também serve como arquivo de dinheiro perdido.
"Todo ano perco uns R$ 5 mil de fiado", lamenta Damião.
A clientela era quase toda de pernambucanos na noite em que o TAB esteve no estabelecimento — havia um único catarinense. Os conterrâneos pararam para ouvir o dono do bar contar as histórias de seus primeiros dias em Balneário Camboriú.
Ele teve de escutar que perdeu as raízes pernambucanas quando falou que não gosta mais de buchada e não ouve forró. Nada que abale Damião. Ele quer ser enterrado ali. "Meus filhos e meus netos moram em Balneário. Minha vida tá aqui."
Damião está integrado, mas Jeandro dá mostras de que o coração ficou em Águas Belas. Ele está animado porque choveu no dia de São José, 19 de março — pela tradição, um sinal de que neste ano não vai faltar chuva no agreste.
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