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'Sou síndico chato': a rotina do único homem autorizado a morar na Sapucaí

José Carlos Caetano, mais conhecido no mundo do samba como Machine - Ricardo Borges/UOL
José Carlos Caetano, mais conhecido no mundo do samba como Machine Imagem: Ricardo Borges/UOL

Valmir Moratelli

Colaboração para do TAB, do Rio

01/04/2022 04h00

Durante os dias de Carnaval, não há metro quadrado mais disputado no Rio de Janeiro. É na Marquês de Sapucaí que milhares de foliões passam as noites, para acompanharem os desfiles das escolas de samba. Mas para José Carlos Farias Caetano, conhecido como Machine, de 66 anos, o sambódromo também é a sua casa. Única pessoa autorizada a morar no local dos desfiles, Machine é chamado de "síndico da Sapucaí".

Há 37 anos ele tem as chaves que abrem as grades e portões para mais de 300 funcionários, técnicos e sambistas que ensaiam de madrugada, longe dos olhares do público. "Sou o síndico padrão, aquele bem chato, que controla tudo de perto e exige cumprimento dos horários", diz.

Atrás da arquibancada do setor 3, bem próximo ao primeiro recuo de bateria, num escritório de 10 metros quadrados sem janelas, Machine dá expediente tendo suporte da sua secretária e filha mais velha, Viviane Caetano. Separado por uma parede de compensado, está um minúsculo quarto, onde só cabem uma cama e uma mesinha. É ali que toda tarde, quando costuma ter sossego dos afazeres, ele tira um prolongado cochilo. "Eu venho e tranco a porta para ninguém perturbá-lo. Se não for muito urgente, anoto o recado e deixo ele resolver só quando acorda", diz a filha, zelosa.

A sala reservada de Machine na Sapucaí - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
A sala reservada de Machine na Sapucaí
Imagem: Ricardo Borges/UOL

É que o trabalho na Sapucaí é noite adentro, em ritmo frenético. O barulho de furadeiras, serrotes e bate-estaca não para. Os camarotes estão sendo montados e as fileiras de cadeiras instaladas nas frisas. Machine organiza os "ensaios secretos", longe do olhar dos curiosos.

As baterias costumam chegar depois das 22h. As comissões de frente não antes das duas da manhã. Os casais de mestre-sala e porta-bandeira têm horários variados. Há quem só consiga disponibilidade no horário do almoço. Machine dá seu jeito, porque conhece bem a luta que é conquistar a nota 10 dos jurados.

Nos idos dos anos 1970, foi mestre-sala na Unidos da Ponte e na Arranco de Engenho de Dentro, além de passista na Beija-Flor de Nilópolis, onde entrou na ala mirim aos 8 anos. Foi assim que passou a frequentar as quadras. Além de síndico da passarela, dá aulas e consultoria para vários casais que defendem o pavilhão das agremiações. "Muitos dos que hoje disputam título já passaram por mim", diz, orgulhoso.

 Viviane Caetano, secretária e filha mais velha de Machine - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Viviane Caetano, secretária e filha mais velha de Machine
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Casamento à distância

Todo ano é sempre o mesmo ritual. No final de outubro, Machine se muda para a Sapucaí com umas peças de roupa, sapatos e seu chapéu. Ele deixa a mulher, Belizane, 65, em casa, numa área rural do bairro de Campo Grande, a 45km do centro da cidade. Fica lá até maio, quando o último andaime é desmontado. "Tenho saudade de casa, mas eu também gosto demais daqui. Minha mulher vem de vez em quando me visitar e leva as roupas sujas pra lavar", diz, já acostumado à rotina carnavalesca. "Ela não gosta de Carnaval, é evangélica. Então não se importa de não vir ver os desfiles, nem pela TV assiste", afirma.

Mas de alguma forma Belizane se faz presente, sempre lhe enviando mensagens para atualizá-lo de sua "outra" casa. "Tenho dois cachorros e umas galinhas soltas no quintal. Ela me manda foto dos pintinhos, já estão crescidos. É uma forma de me atualizar do que tá acontecendo fora do mundo do Carnaval", diz, resignado.

Pai de quatro filhas e tendo cinco netos, Machine aproveita a temporada na Sapucaí fazendo amigos. É um querido por todos que trabalham diariamente no monta-desmonta da Avenida. Mas há sempre algum segurança novato que lhe causa transtornos. "Essa semana saí para comprar alguma coisa e, na volta, fui barrado por um menino que chegou agora. Me pediu credencial. Vê se pode! Tive que explicar que sou o síndico, ele não acreditou", conta. Sempre que dá, anda com uma blusa com o seu nome.

Machine e sua camiseta personalizada - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Machine e sua camiseta personalizada
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Fantasia de gari

O sambódromo, oficialmente chamado de Passarela Professor Darcy Ribeiro, se localiza na área central do Rio de Janeiro, colado à Avenida Presidente Vargas. O calor é tão forte nas manhãs entre dezembro e abril, que o asfalto parece derreter. "Só não me peça para ir lá embaixo agora fazer fotos, não tenho mais idade para aguentar tanto calor", diz ele, no ar condicionado de sua sala.

Machine é o único que entra na cabine dos jurados, lugar com vista privilegiada para os desfiles. Uma bancada com cadeiras e banheiros exclusivos, além de geladeira e mesa para um buffet servem de camarote exclusivo para o grupo que decide a campeã do Carnaval.

Durante os desfiles, ele só não entra nos camarotes. "Não gosto de ficar devendo favor pros camaroteiros", diz ele, se referindo aos proprietários dos espaços vips da Avenida, que comportam cerca de duas mil pessoas por noite. "Se eu entro em um, bebo uma cerveja ou como um canapé e vejo algo errado, como vou cobrar deles com a mesma seriedade no dia seguinte?", continua.

O ex-mestre-sala passou a ser o síndico da passarela do samba já no segundo ano após a inauguração, em 1984, pelas mãos do então governador Leonel Brizola e o sociólogo Darcy Ribeiro, idealizador do espaço como pista fixa dos desfiles. O início da competição entre as escolas foi na Avenida Rio Branco, com estruturas provisórias. Foi a construção da Avenida que fez as alegorias ganharem proporções monumentais, com esculturas que chegam a 20 metros de altura. "(O carnavalesco) Joãosinho Trinta foi o primeiro a perceber que podia fazer carros altos, para que as arquibancadas admirassem a grandeza do espetáculo", diz.

É do Joãosinho, aliás, que Machine lembra com saudosismo. No histórico enredo "Ratos e urubus, larguem minha fantasia", de 1989, desfilou vestido de gari, junto com a diretoria da Beija-Flor. "Só quem viveu sabe o que foi aquilo, um desfile que não venceu, mas entrou pra história", diz, se referindo ao vice-campeonato da escola nilopolitana, que trouxe uma escultura do Cristo Redentor coberta, após censura da Igreja.

Machine na Sapucaí - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Machine na Sapucaí
Imagem: Ricardo Borges/UOL

De prontidão às 7 da manhã

Como um xerife, Machine circula pelas arquibancadas contando os desfiles que mais lhe marcaram. Para o bem e para o mal. Em 2017, um choque de uma alegoria da Paraíso do Tuiuti contra a grade do setor 1 feriu vinte pessoas e matou uma. "Foi um horror, daqueles momentos que a gente preferia esquecer", diz.

Ao ciceronear a equipe do TAB, encontra o casal de mestre-sala e porta-bandeira Julinho Nascimento e Rute Alves, da Unidos do Viradouro, que ensaia junto com a professora Celeste Lima, ex-bailarina do Theatro Municipal. É recebido com abraços efusivos. "Às vezes a gente vem às sete da manhã e ele está acordado nos recebendo. É impressionante, sempre a postos", diz Julinho, que foi seu aluno na escolinha de mestres-salas nos anos 1980. "Se tem uma pessoa que é necessária para nossos trabalhos, é o Machine. Não sei onde ele arruma tanto carinho", completa Rute.

O casal, atual campeão do Carnaval carioca, é só elogios para o síndico. Ambos reconhecem que ele tem olhar apurado para a dança. "A gente termina a coreografia e tem momentos que fala: 'Uau, acho que agora foi bonito hein!'. Aí ele tá acompanhando e diz: 'Pode ser melhor, tá ficando bom'", diz Rute.

O casal de mestre-sala e porta-bandeira Julinho Nascimento e Rute Alves, da Unidos do Viradouro - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
O casal de mestre-sala e porta-bandeira Julinho Nascimento e Rute Alves, da Unidos do Viradouro
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Anfitrião ansioso

Machine é tão apaixonado pelo samba que criou um troféu, dado após o Carnaval, dedicado a profissionais que se destacam nos bastidores — da limpeza à cenografia. Diz que as rainhas de bateria são suas amigas. "Paolla Oliveira (da Grande Rio) me adora. Vivi (Araújo, do Salgueiro) já veio na minha sala falar comigo, é uma querida também". Mas diz que prefere as rainhas de comunidade. Sobre a atual rivalidade entre a princesa Mayara Lima e a rainha Thay Magalhães, da Tuiuti, é categórico: "Tem que priorizar a menina que samba e frequenta a realidade da escola, não quem chegou ali de paraquedas e só quer aparecer".

Ele só perde o humor quando é para comentar sobre a possibilidade de mudança do sambódromo para a Barra da Tijuca, ideia ventilada pelo diretor de marketing da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa), Gabriel David. "É um absurdo pensar em transferir pra lá, é pro povo deixar de vir ver as escolas. Não tem cabimento", diz.

Em abril, quando finalmente os desfiles regressarem à pista, Machine não deve segurar a emoção. Estará de volta seu lado anfitrião. "Tô ansioso! Foram dois anos muito difíceis, perdemos amigos, sofremos com o afastamento. Esse carnaval tem que ser pra celebrar e agradecer por estarmos aqui", diz, com os olhos marejados, de quem não vê a hora de ter a casa cheia de novo.