Sonho de infância leva advogado a construir cinema em Conservatória (RJ)
O canto dos pássaros é o único barulho na rua do Cine Centímetro, um edifício de arquitetura marcante com alma de réplica, como se tivesse sido erguido sobre alicerces de pura nostalgia.
Na entrada, um espelho com o desenho do leão da MGM (Metro-Goldwyn-Mayer) reflete a área externa. Um manequim com o uniforme original do extinto cinema Metro-Tijuca recebe o visitante. Cartazes de filmes da década 1960 ilustram as paredes. Dentro, aguardam o público 60 poltronas, luminárias nas laterais, tapete vermelho-alaranjado e a cortina cerrada, que esconde a tela de projeção. Uma cabine esconde o projetor de filmes 35mm.
O espaço de 130 m² fica no distrito de Conservatória, em Valença (RJ). De ônibus são ao menos três horas de viagem até a rodoviária da cidade e mais 30 quilômetros até a rua José Ferreira Borges, número 205. De carro, o tempo de viagem cai para 2h30. Basta seguir do Rio pela Dutra, subir a Serra das Araras e tomar os acessos por Piraí. O caminho final é de 30 minutos até Conservatória.
A propriedade é da família Raposo e quem cuida do cinema é Ivo Raposo Jr., 77, delegado aposentado e ex-projecionista na adolescência. Desde os 10 anos, ele frequenta a região aos finais de semana e feriados. "A ideia de vir foi do meu pai, há 70 anos", explica.
Raposo pai conheceu Conservatória em uma viagem de trem e comprou o terreno que, na época, não tinha nada além de mato e um casario. Em 1956, construiu uma casa de veraneio, onde ele e a família passavam as férias dos filhos.
Na época, Ivo já era apaixonado pela imagem em movimento. "Em Conservatória tinha uma sala de exibição e eu ajudava os operadores a transportar os rolos que chegavam à estação de trem." Raposo filho vai para lá todos os fins de semana, mesmo sozinho — "minha mulher prefere praia" — e aproveita para fazer manutenção ou receber turistas.
Projecionista nas horas vagas
Aos 5 anos, Ivo brincava com um projetor de manivela. Na adolescência, o lazer favorito era ir ao cinema tipo poeira - salas sem ar-condicionado, com cadeiras de madeira, telas sem cortinas e aparelhagem de projeção ultrapassada - da Igreja Santo Afonso, na Tijuca, com a irmã.
Numa tarde de domingo, sentado ao ar livre em sua propriedade, o ex-projecionista relembra, com brilho nos olhos, quando começou a ter acesso à cabine de projeção. "Fiz amizade com o gerente da Santo Afonso, que me deu acesso aos aparelhos e, em 1957, ele me convidou para fazer a projeção do filme 'Marcelino Pão e Vinho' na Semana Santa."
Depois desse episódio, foi convidado a projetar em outros cinemas e autorizado a assistir, das cabines, filmes proibidos para menores de 18 anos. "Da primeira vez, eu devia ter uns 15 anos, coloquei um paletó, como se isso fosse adiantar, e entrei escondido."
O menino completou a maioridade e, para desgosto dos pais, que não viam futuro na profissão, tirou a carteira profissional de operador cinematográfico. Trabalhou no cinema Bruni da praça Saens Peña e conheceu profissionais da Fox, Columbia e Warner Bros.
Apesar das negativas do pai, teve seu apoio desde que "aquela brincadeira" não desse lugar a outros voos profissionais. E não deu. Ivo formou-se em direito, trabalhou na Esso como advogado, passou no concurso público para delegado adjunto e, há sete anos, aposentou-se satisfeito.
Nesse período, não abandonou o cinema. Em vez de frequentar a praia, ele pegava a estrada rumo à Conservatória nas brechas da rotina. Em 1981, aos 36 anos, mesmo ano em que começou a trabalhar como delegado, montou o "Cine Milímetro", numa sala dentro da casa de veraneio de Conservatória. Apenas a família e os amigos tinham acesso a ele.
Segunda Cinelândia
A história do Cine Centímetro tem tudo a ver com o passado cinéfilo da praça Saens Peña. Em seu livro "A segunda Cinelândia carioca", Talitha Ferraz entrevistou frequentadores e funcionários dos cinemas, fez pesquisas em arquivos e contou a história das salas de exibição Olinda, Metro-Tijuca, Art-Palácio, Carioca e dos outros 30 cinemas do bairro da Tijuca, no Rio, ao redor da praça.
A pesquisadora descobriu que havia no Rio mais de 10 mil poltronas luxuosas na década de 1960. Agora, quem passeia por ali não encontra nenhum cinema de rua. Para assistir a filmes nas telonas, há um único no último andar do Shopping Tijuca, com seis salas. A maior delas tem 405 lugares.
Metro-Tijuca, aberto em 1941, foi demolido em 1977 para virar loja de roupa. Ivo não teve acesso às suas cabines tanto quanto gostaria, mas o via como um dos mais luxuosos da região. Era seu favorito.
Para preservar aquela memória, decidiu resgatar o maquinário, lustres, poltronas e outras parafernálias estocadas em um cinema no Largo do Machado. Não foi fácil. "O responsável resistiu a ceder, até que, quatro anos depois, após insistência minha e de amigos do ramo, ele topou doar", relembra.
A ligação veio com certa urgência: "Venha buscar hoje até meio-dia". Na época, o prédio da Condor fora vendido para uma igreja com tudo dentro. "Saí do trabalho e peguei o primeiro frete que consegui."
Cinema de 60 poltronas
O trabalho para limpar e catalogar as peças aconteceu no próprio terreno da família — o mato deu lugar à construção do cinema. A obra demorou dois anos e o cinema foi inaugurado para familiares e amigos em 2005. "Eu e o caseiro Luis Carlos de Jesus, que trabalhava comigo, nos guiamos pela foto do Metro. Técnicos de cinema da época me ajudaram na montagem de equipamentos e com a fiação", conta o advogado. Como era menor que o Metro e maior que o Milímetro, foi batizado de Centímetro.
"Montei por amor e com instinto de preservação. Não importava e nem queria saber de muita gente aqui", explica ele, olhando para o prédio.
Ivo teve de abrir sessões ao público de Conservatória quando percebeu que donos de hotéis insistiam em incluir o cinema na programação cultural da cidade. Além do boca a boca, uma placa na rua Luiz de Almeida Pinto, área central do distrito, leva interessados a procurarem por Ivo.
O valor sugerido para o ingresso é R$ 80, mas todo mundo paga meia-entrada. Em uma exibição de menos de uma hora, a programação conta com a edição de um trecho de jornal e um trailer da época, musicais realizados pela MGM, como "Dançando na Chuva" (1952), "Ben-Hur" (1960) e desenhos animados de época de Tom e Jerry.
Nelson Pereira dos Santos, Eduardo Coutinho e Hugo Carvana foram alguns ilustres que pegaram estrada de terra para se sentarem naquelas poltronas. Ivo viu Carvana emocionado — o ator e diretor também cresceu entre os cinemas da Tijuca. Conservatória, inclusive, foi escolhida para pré-estreia de "Casa da mãe Joana" (2008) com a presença do elenco.
Cinéfilo dos pés às pontas dos cabelos brancos, Ivo descreve o Cine Centímetro como a materialização de um sonho. "O resultado que me satisfaz é ver as pessoas, na maioria ex-frequentadores da Praça Saens Peña, saírem emocionadas por reviverem suas infância e adolescência."
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