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'Sensação de vazio': o último plantão do 1º neurocirurgião negro do Rio

O neurocirurgião Ivan Santana Dório em sua sala no Hospital Miguel Couto, no Rio - Ricardo Borges/UOL
O neurocirurgião Ivan Santana Dório em sua sala no Hospital Miguel Couto, no Rio
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Valmir Moratelli

Colaboração para o TAB, do Rio

05/04/2022 04h01

Era samba o que dominava a paisagem sonora do Centro de Ensino e Pesquisa em Neurologia do hospital Miguel Couto, na zona sul do Rio. Naquela quinta-feira (31), enquanto Ivone Lara cantava "Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho / Alguém me avisou / Pra pisar nesse chão devagarinho", os funcionários bebiam refrigerante e comiam salgadinhos. Era dia de festa, uma homenagem ao neurocirurgião Ivan Santana Dório, 74, em seu último dia de trabalho, prestes a acatar a aposentadoria compulsória.

Amigo da sambista falecida em 2018, Ivan foi o primeiro neurocirurgião negro do Rio de Janeiro e referência na área médica no país. Foram 28 anos dedicados àquele hospital público, trabalho aceito em 12 de abril de 1994. Entre as cirurgias que realizou, a mais conhecida é a que retirou uma barra de ferro de dois metros de comprimento da cabeça de um pedreiro, em 2012.

"Não me peça para contar essa história pela milésima vez", brinca ele, que rodou o mundo para relatar o procedimento em congressos científicos.

Acostumado a uma rotina que começa às 5h da manhã e que se encerra nunca antes das 20h, na ala da neurocirurgia do hospital, o médico agora precisará de novos planos.

"É uma sensação de vazio muito ruim. Como disse George Harrison quando os Beatles se separaram, todas as coisas têm que passar. Só que o Miguel Couto não sai assim fácil da gente", afirma, enquanto caminha pelos extensos corredores. "Esse elevador já carregou Hamsés", diz, fechando com as mãos as antigas portas sanfonadas do ascensor.

Esse seu estilo debochado conquistou médicos e enfermeiros. Ivan consegue aliviar o estresse conjugando o saber de quase 46 anos de medicina a um jeito leve de lidar com as intempéries da profissão.

Teresa Navarro (de roupa marrom), subsecretária de saúde do Rio, e Cristiano Chame, diretor do hospital Miguel Couto, na festa de despedida do neurocirurgião Ivan Dório - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Teresa Navarro (de roupa marrom), subsecretária de saúde do Rio, e Cristiano Chame, diretor do hospital Miguel Couto, na festa de despedida de Ivan Dório
Imagem: Ricardo Borges/UOL
Médico Felipe Calmon faz selfie com Ivan Dório em festa de despedida, no hospital Miguel Couto, no Rio - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Neurocirurgião Felipe Calmon faz selfie com Ivan Dório na festa de despedida
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Tomate e ovos

Ele conta que teve origem "pobre quase miserável" no subúrbio carioca. "Aos 15 anos, meu aniversário foi à luz de velas, porque meu pai não pagou a conta de luz. Sentado, na cozinha, com vela acesa, comendo rodelas de tomate, dois ovos fritos e uma colher de arroz, brindei com água da torneira", recorda-se.

Ouviu do pai que seu lugar era na oficina, sujando as mãos com graxa. Foi a mãe, costureira, quem lhe incentivou a estudar. "Foi a costura dela que me fez chegar até aqui. Ela comprou os livros de que eu precisava."

A paixão pela neurocirurgia surgiu no pré-vestibular, quando estudava de amebas a primatas. "Fiquei impressionado. Achei espetacular estudar o sistema nervoso", conta. Nessa hora ele apresenta Chiquinho, parte de um crânio que fica sobre sua mesa. "Aqui, nesse buraquinho, é por onde sai a jugular para o pescoço", diz, revirando o objeto.

Após três tentativas, passou no vestibular da UniRio. Ao tentar assistir a uma neurocirurgia, sofreu preconceito pela primeira vez na medicina. "Perguntei ao monitor de anatomia se podia me levar, e ele falou que ririam de mim. Fiquei em choque, pensei em desistir."

O neurocirurgião Ivan Dório mostra crânio humano em sua sala no hospital Miguel Couto, no Rio - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
O neurocirurgião Ivan Dório e Chiquinho, o crânio que fica sobre sua mesa de trabalho
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Racismo cotidiano

Na vida de Ivan, o racismo não cessou com a idade. Há um ano, por volta das 6h da manhã, o médico viveu um dos episódios que mais lhe marcaram. Uma senhora, moradora do Leblon, chegou ao hospital contando que havia sofrido uma queda em casa, e estava com dor na lombar. Ao ver três enfermeiras negras e ele, também negro, berrou: "Aqui tá parecendo a África, só tem preto".

Ivan relata o caso com riqueza de detalhes. Diz que "uma das enfermeiras ficou furibunda". "Me apresentei como neurocirurgião e ela disse: 'Não gosto de médico preto'. Falei: 'É o que tem pra agora'."

Pegou o raio-x, viu os exames, passou-lhe um analgésico injetável e a liberou. "Não deixaria de atendê-la, mesmo ela sendo racista, seria omissão de socorro. O racismo é um sofrimento diário, é um drama."

Em 2021, o neurocirurgião serviu de inspiração para o ator David Junior na série "Sob pressão", da TV Globo. "Como não há muito médico negro, ele veio aqui me observar. Gostei do resultado", elogia. O que é um grande feito, já que, normalmente, não gosta de séries médicas - ainda que haja dois boxes da série "House" em sua estante.

Ivan Santana Dório acompanha sua equipe de neurocirurgiões no centro cirúrgico do hospital Miguel Couto, no Rio - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Ivan Dório acompanha sua equipe de neurocirurgiões
Imagem: Ricardo Borges/UOL

No centro cirúrgico

Sua sala segue agitada no último dia de trabalho. Vários médicos residentes passam para cumprimentá-lo. Alguns se emocionam ao abraçá-lo. Um deles é Caio Perret. "Ainda não tô aceitando isso", diz. "Fique calmo", pede o médico. "Eu tô calmo, porque sei que você vai ficar", responde o rapaz. "Ele teve o desatino de me dizer que faz neurocirurgia por causa da mim", conta Ivan, com orgulho do pupilo. "Ainda tenho que trocar a fralda dele, não está pronto, mas é de uma inteligência brilhante", continua.

Chama os residentes de sua "prole". Convida Caio para um chope de bota-fora após o plantão. "Hoje vai ter lavagem de serpentina!", diz, animado. Outro médico logo o interrompe. Fala sobre a cirurgia de uma paciente de 44 anos naquele momento. Ivan se levanta e pede para que a equipe do TAB o acompanhe. Devidamente vestidos de uniforme verde, todos seguem ao centro cirúrgico. Ivan apresenta os demais médicos — três enfermeiros e dois anestesistas — enquanto a cirurgia de aneurisma cerebral é finalizada.

A roupa não tem zíper, o que pode parecer um descuido — parte da cueca ficou aparente na frente. "Outro dia, uma paciente mexeu comigo: 'O passarinho vai voar'. Respondi: 'Fica calma, que esse foi criado na mão'. Não mandei provocar, problema dela", diz, sempre de bom humor.

Ivan Dório acompanha sua equipe de neurocirurgiões no centro cirúrgico do hospital Miguel Couto, no Rio - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Adrenalina na emergência

Antes de o sol nascer, Ivan faz a ronda da ala da emergência, prescreve medicação e fica por conta do que acontece. "Hoje chegou um senhor com coágulo. Caiu há dez dias em casa. Precisa operar, mas está com baixíssimo número de plaquetas, 17 mil. O normal é de 150 mil a 300 mil. Se faço um corte na perna dele, morre de imediato."

Em seguida, emenda um caso menos recente. Um rapaz de 18 anos caiu de moto e chegou ao hospital em estado grave, trazido pelos bombeiros. A mãe quis falar com o médico. Ivan lida mal com dois tipos de pessoas: criança doente e mãe sofrendo. "Tive de dar a notícia de que o filho estava com morte encefálica, um quadro irreversível. O dia acabou para mim. A vontade era ir embora."

Ele elege esse caso, aliás, como um dos piores em mais de quatro décadas de medicina. "Expliquei àquela mãe que o cérebro já não funcionava. Ela tremia ao me fazer um pedido: 'Me leva para o centro cirúrgico, tira meu cérebro e coloca no meu filho'. Até eu me recompor e engolir o choro, demorou um tempo", diz, com os olhos marejados.

São dores particulares que compõem a rotina da emergência de neurocirurgia num hospital público. Casos de pessoas baleadas, acidentes de trânsito e agressões são corriqueiros. "Se te mandarem para o inferno, pega o ônibus e vem para cá. Ainda assim, é disso que vou sentir falta, dessa adrenalina diária, do inesperado do plantão", diz.

Placa recebida pelo neurocirurgião Ivan Santana Dório, que está se aposentando da carreira longeva no hospital Miguel Couto, no Rio - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Placa recebida pelo neurocirurgião
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Fratura exposta

No meio da tarde, outro momento tenso. Bate à porta uma mulher com o resultado dos exames de sua mãe, operada por ele e internada no centro de terapia intensiva. Ele pede que ela espere do lado de fora.

"Ontem operei um tumor na cabeça da mãe dela. Tem pouca sobrevida, não ficará bem por muito tempo. A filha vai saber disso agora", diz. Respira fundo e, em silêncio, vai ao encontro dela. Volta com semblante fechado. "Doloroso, doloroso... É duro", resmunga, antes de um longo suspiro.

Seguidor do candomblé, afirma que pede proteção aos orixás ao colocar os pés no hospital. "Uma vez um colega alemão me disse que só acredita no que vê. Respondi que acredito no que vejo e no que sinto. Ele nunca mais falou comigo."

Entre suas dores particulares, perdeu o filho mais velho devido a uma crise convulsiva, consequência de diabetes. O jovem tinha 19 anos. "Acabam os problemas, começa a saudade", limita-se a falar. Hoje, pai de um filho e três enteados, "nenhum deles médico, graças a Deus", está em seu segundo casamento. É ao lado da família que pretende curtir a aposentadoria.

Neurocirurgião Ivan Dório em sua sala no hospital Miguel Couto, no Rio - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Períneo no sol

Parar de trabalhar, para uma pessoa sempre ativa e ainda no auge de sua capacidade, é uma freada brusca no percurso. A aposentadoria compulsória tem data limite de 75 anos para servidores públicos. É em dezembro que Ivan completa a idade. Resolveu se antecipar em alguns meses, por ter férias vencidas. Não gosta de pensar no envelhecimento. "Nessa sociedade, é muito difícil envelhecer. O que importa para o mundo é o belo, estar bonito e jovem. Se pudesse, não tinha nada de despedida, de evento. Isso me consome. Passa um turbilhão de coisas na cabeça por tudo que vivi aqui."

No final da tarde, um lanche-surpresa na presença da subsecretária de saúde Teresa Navarro e do diretor do hospital, Cristiano Chame. Eles lhe dão uma placa de homenagem. "Ele é único, valoriza a qualificação na assistência aos pacientes, é o seu legado. Sua história fala por si", diz Chame.

Encaminhando para o final do plantão, Ivan é chamado na UTI neonatal. Um bebê bateu a cabeça logo após o parto. Ele analisa os exames e constata, para alívio geral, que não haverá sequelas ao recém-nascido. Olha o relógio e percebe que o expediente está chegando ao fim.

"Essa primeira semana vou ficar em posição ginecológica com períneo pro ar. Espero que faça sol. Meu plano é tostar o períneo!", brinca. A seu jeito, contrapõe uma reflexão: "Há dois anos me preparo pra isso, mas agora não sei o que fazer".

A propósito: com a saída do doutor Ivan, não há mais neurocirurgião negro no Miguel Couto.