Festança: 6 mil pessoas se reúnem para 'quinceañera' de filha de bolivianos
Registra-se a celebração da quinceañera de Litzi Rivera na data de 16 de abril de 2022. Brasileira, filha do empresário do ramo têxtil Carlos Rivera Miranda e da senhora Doris Mamani de Rivera (ambos de nacionalidade boliviana), irmã de duas crianças e residente em São Paulo, Litzi comemorou seu début na sociedade defronte seis mil comensais da fraternidade latino-americana da capital paulista que compareceram ao espaço "antiga fábrica da Philips", no município de Guarulhos, munidos de grande espírito para o evento de cores e música mais esperado do ano.
Uma quinceañera é uma festa de aniversário de quinze anos. Comuns na América Latina hispânica, dadas suas origens andinas e mesoamericanas, esses eventos têm paralelo com as festas de debutante no Brasil. As quinceañeras, porém, são encontros muito maiores. Alguns elementos se assemelham — como a valsa com o mais belo popstar do momento —, mas a versão hispanohablante é um grande festival de tradições, ritos, cores e sons. Entre presentes de milhares de reais e goles de cerveja atirados ao chão — era para Pachamama, a mãe-Terra, disse-me um convidado —, a festa de Litzi, realizada em uma gigantesca casa de eventos em Guarulhos (SP), foi uma autêntica celebração da cultura boliviana e latino-americana em São Paulo.
"Estou nervosa, quero que esteja tudo em ordem", comentou a jovem enquanto maquiadora e cabeleireira finalizavam seu penteado. Uma dava grampos à outra, como assistente e médico em uma sala de cirurgia. A essa hora, no meio da tarde, ela já fizera uma primeira troca de vestido. Não se via mais o azul-bebê, destinado à missa que abrira o evento às 14h, e chegava o dourado resplandecente, com textura de purpurina.
Fora do pequeno quarto refeito em camarim, o galpão ia se enchendo. A entrada era livre e a área dos convidados, como uma pista premium, ficava demarcada por grades em frente ao palco. Um corredor formado por 14 espadachins em roupas mais ou menos ajustadas aguardava a chegada da jovem.
Corpete justo
"Ai! Está muito apertado!", disse ela quando puxaram as pregas das costas do vestido. "A beleza é assim", comentou a dona das mãos que atavam o nó, Ericka Jimena. A jovem, que mora em São Paulo, é radialista e influencer na comunidade boliviana do Brasil. Para a festa, ostentava uma portentosa pollera (saia tradicional) rosa, abobadada e rendada. As tranças e o chapéu completavam a vestimenta tradicional, como mandava o elegante dress code do convite.
"Mas a elegância mesmo vem quando tem grupos de fora, isso é o espetáculo", explicou. "Antes, as festas de 15 anos eram mais simples aqui, mas em 2018 a família Tancara fez uma festa grande e esses eventos foram crescendo. Essas festas são um ponto de encontro."
Membros da família Tancara estavam entre os convidados de honra do evento. Marlene, a matriarca, não escondia o encanto ao ver o garbo da aniversariante. O público às 17h já era numeroso e ouviam-se suspiros enquanto a jovem, rodeada de seguranças, atravessava o salão.
Já sentada em seu trono, em frente a uma foto em tamanho real de uma escadaria luxuosa, Litzi passou por outros rituais. Primeiro, o pai e o irmão trocaram-lhe os sapatos. Depois, ela entregou uma Barbie de pele branca para a irmã. Dançou a valsa: uma para cada padrinho, e um padrinho para cada item da festa: bolo, decoração, presente surpresa. Este veio em uma caixa de um metro cúbico. Quando aberta, balões de gás subiram. Litzi encontrou ali um urso de pelúcia, joias e um envelope com R$ 10 mil em notas de cem. Todas foram pregadas em seu vestido. Posou para foto com o peito estufado.
"É uma emoção para mim, choro de alegria", disse-me Doris, mãe de Litzi. Uma comadre lhe retocava a maquiagem borrada de lágrimas, os confetes na cabeça traziam boas energias — outro costume boliviano. No Brasil há 18 anos, ela ponderou. A vida era mais difícil quando a primogênita quinceañera nasceu. Não havia tantos bolivianos no país e trabalhar era mais estrito, em suas palavras. Hoje, a internet e os celulares ajudam no dia a dia e o trabalho é mais liberado, também em suas palavras. "Foi muito difícil fazer essa festa, mas vale a pena, temos convidados que vieram da Bolívia só para esse evento." Festejar é ver e também ser visto.
850 mil espectadores
Além de convidados, mestre de cerimônias e artistas estrangeiros marcaram presença na ocasião. Mesmo a equipe de filmagem viera diretamente de La Paz para a cobertura, com gruas, câmeras e uma central de comando que transmitia tudo ao vivo pelo Facebook — a live caía quando o sistema da rede detectava a reprodução de músicas sob direito autoral, caso de "Perfect", do britânico Ed Sheeran. Foram ao menos 700 mil visualizações do evento. É um quórum que condiz com o número de compartilhamentos do vídeo-convite da festa: 7 mil apenas pela página de Elena Becerra, organizadora da reunião que corria de cá para lá pelo salão, cuidando para que tudo estivesse nos trinques.
De tênis Adidas e coroa de princesa, a debutante desfilava um macacão azul-turquesa por volta das 20h. Era a hora marcada para o início dos shows. A ordem do dia era cumbia. Primeiro subiu ao palco o grupo peruano Titanios. Depois, a cumbia sureña (do sul do Peru) do grupo Los Capos — cuja estrela, Claudio Armando, já dera as caras como príncipe de valsa de Litzi. Por volta das 2h, fechou o espetáculo o grupo Jambao, famoso representante da cumbia argentina. O headliner aparecera antes, à meia-noite. Era L-Gante, argentino em ascensão com a cumbia villera, misto de trap com um dos mais tradicionais gêneros musicais sul-americanos. Segundo sites especializados, seu cachê é de no mínimo US$ 25 mil.
Entre o público de quase seis mil pessoas que lotava a antiga fábrica e os quatro milhões de seguidores no Instagram do rapper, Litzi foi a única que pôde ficar ao lado do ídolo sobre o palco. Assim o fez também nos outros shows. Em movimentos contidos, mas sem negar os passinhos de dança, estrelava seu aniversário em frente a desconhecidos com rostos de conhecidas feições: olhos amendoados, pele morena, cabelos pretos. Todos traços típicos dos mais de 75 mil bolivianos no Brasil e tantos outros brasileiros filhos de bolivianos, uma primeira geração que, como Litzi, pula entre o português brasileiro e o espanhol boliviano num átimo.
"Creio que sou o papai mais afortunado do dia! Esse é nosso costume, fazer uma festinha", disse Carlos Rivera. "Os padrinhos ajudaram a realizar esse evento, e tem a venda de cervejas para o público, que cobre ao menos 50% de tudo."
A cerveja era Skol, servida em temperatura ambiente, latinha atrás de latinha. A radialista Ericka brincou: "Acho que essa é a única coisa brasileira que tem aqui!". Nem tanto. O DJ Joselito, brasileiro, soltava hits de reggaeton nos intervalos dos shows, mas também mandou Barões da Pisadinha e "Filha", de Rick & Renner. Um jovem usava boné de crochê em que se lia "Liberdade Eterna". Um homem fantasiado de robô funkeiro com máscara de caveira, sombrero mexicano, neons coloridos e uma garrafa de Askov na mão servia a bebida e dava a tônica: aquilo era um ecumênico evento latino-americano.
Litzi, a protagonista, já demonstrava algum cansaço no fim do show de L-Gante. Era jovem, 15 anos, mas os estímulos eram tantos. No dia seguinte haveria mais festa. Seria a hora do conteo, isto é, contar quantos presentes foram dados e ganhos.
Na saída da festa, como é praxe nas grandes cidades do continente, um congestionamento se formou. Nesse caso, porém, não havia representantes do poder público, como se vê em eventos de grande porte. Nem CET, nem polícia, nem nada. Ninguém parecia saber da quinceañera de Litzi, a não ser a imensa comunidade boliviana que vive em São Paulo — uns inclusive aproveitaram a oportunidade para vender os típicos fideos na porta do galpão. Preso no trânsito, o motorista de Uber pediu, por favor, que eu fosse ao seu encontro em outra rua. "Está tudo parado aí", escreveu. Mal sabia ele do movimento.
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