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Nestor Madrid, um dos magos do axé: 'Antes, tudo na Bahia virava frevo'

Nestor Madrid, engenheiro sonoro e produtor de axé music, em sua casa em Salvador - Rafael Martins/UOL
Nestor Madrid, engenheiro sonoro e produtor de axé music, em sua casa em Salvador
Imagem: Rafael Martins/UOL

Alexandre Lyrio

Colaboração para o TAB, de Salvador

15/04/2022 04h01

A axé music foi construída a várias mãos e mentes. Na Bahia, ninguém questiona que um dos magos a forjar a alquimia de ritmos que culminou no axé chama-se Nestor Diogenes Madrid, hoje com 64 anos. Quase quatro décadas depois da invenção que mudou a história do Carnaval e da música baiana, pode-se dizer que Nestor Madrid, como ficou conhecido, é também um dos símbolos da decadência da indústria que ele ajudou a criar.

Seu nome está por trás de grandes estrelas, inclusive aquelas que, apesar da implosão do mercado nos últimos anos, conseguiram se manter no topo. De Bell Marques a Carlinhos Brown, de Margareth Menezes a Luiz Caldas, Nestor foi o produtor musical, técnico de som e diretor artístico de quase todos os principais artistas e álbuns do gênero.

Mas Madrid não sabe sequer o que vai comer amanhã e pode ter de sair da casa onde vive com esposa, filha e neta. Uma ordem de despejo pesa sobre a família para que deixem o apartamento onde vivem, no bairro da Pituba, em Salvador, por causa de atrasos no aluguel. A pandemia agravou a situação financeira, mas a escassez de trabalho já ocorre há anos, diz ele. O mago agora procura uma fórmula para sobreviver.

Caminho ascendente

Nestor recebeu a reportagem do TAB no playground do seu prédio. Decifra cada passo da decadência da indústria do axé, intimamente ligada à sua própria decadência econômica. Lembrou os tempos áureos, falou sobre sua gratidão à Bahia, sobre a saudade e a ganância dos grandes empresários, donos de blocos de Carnaval e artistas. E, com toda classe e humildade, pediu ajuda. "Não quero me fazer de vítima. A Bahia é soberana e não me deve nada! Mas é uma questão de sobrevivência, de ter onde morar e o que comer. Peço ajuda. Acho que mereço respeito depois de 40 anos lutando pela música. Se a Bahia me deve algo, é respeito."

Argentino de La Plata, província de Buenos Aires, Nestor Madrid desembarcou em Salvador em outubro de 1980, com 22 anos. Veio a passeio. A estadia o fez querer ficar mais três meses. Para se bancar nesse período, resolveu vender um baixo em uma loja da capital baiana. No local, encontrou Wesley Rangel, dono do estúdio WR, que comprou o equipamento e o convidou para trabalhar como técnico. A partir daí o que existe é uma história de devoção às origens do axé e à indústria que, por décadas, sustentou famílias, fez surgir talentos e enriqueceu celebridades.

Na WR, Madrid participou diretamente do nascimento do novo ritmo. Começou produzindo jingles — foram 426 no total. Assim lançou Luiz Caldas e Carlinhos Brown, ambos da banda Acordes Verdes, além da turma do Chiclete com Banana (ainda sem Bel e com Missinho), contratada para gravar um jingle da cervejaria Brahma. "Esses jingles fizeram muito sucesso. A galera adorava quando eles tocavam nos shows", lembra.

Foi aí que Nestor descobriu a qualidade dos grupos musicais e, junto com Rangel, permitiu que eles gravassem também composições próprias. O primeiro disco do Chiclete com Banana com produção de Nestor Madrid foi "Sementes", de 1984. O sucesso seguinte foi "Magia", de Luiz Caldas, com a música "Nega do Cabelo Duro", sua parceria com Paulinho de Camafeu.

De 70 mil, os discos de Nestor passaram a 100 mil cópias vendidas, 300 mil, 500 mil, até chegar a 1 milhão, número alcançado pela primeira vez com a banda Reflexu's, rebocada pelo sucesso "Madagascar Olodum".

Nestor Madrid estava por trás de tudo. "Os técnicos costumam usar como referência o que está na moda, o que está bom. Eu tento achar uma solução em referências que não estão em volta. Meus trabalhos não são melhores, nem piores. São diferentes. Você ouve outra paisagem sonora. Sou um paisagista", explica.

Nestor Madrid - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Imagem: Rafael Martins/UOL

Reino do axé

No início dos anos 1980, segundo ele, as produções baianas eram muito ingênuas. No Carnaval da Bahia, ou se repetiam produções ou se transformava tudo no bom e velho frevo pernambucano.

"A Bahia era ingênua e provinciana. Não tinha nenhum artista representativo que morasse em Salvador. Os grandes estavam no Rio e em São Paulo. No Carnaval, tudo aquilo virava frevo. O mercado era frágil."

Uma das primeiras estratégias dos produtores do estúdio WR foi lançar milhares de compactos duplos para as músicas das suas melhores bandas de jingles, disponibilizados gratuitamente junto com os abadás dos blocos, na época chamados de mortalhas. A banda Acordes Verdes, com Luiz Caldas, Carlinhos Brown, Tony Mola, Cicinho, Alfredo Moura e Paulinho Caldas foi a primeira a estourar. "Aí vimos que o que fazíamos era comercial. As pessoas acham que sucesso é tocar na rádio ou, hoje, tocar na internet. Sucesso é você representar seu público."

Na visão de Nestor, além do momento certo, na hora certa, com as pessoas certas, ele diz que sua geração entendeu qual era o público do Carnaval e percebeu que a música tocada até ali simplesmente não atendia ao folião do Carnaval de Salvador. "Era um público de 15 a 25 anos. A batida não atendia aquela galera." A sacada, conta, foi fazer um tipo de música dançante com bumbo de discoteca, com ritmos nordestinos misturados a ritmos caribenhos e com o diferencial do toque do afro baiano, como o samba afro, o samba de roda, o samba reggae e o ijexá. "Aquela música, sim, tinha a pulsação de que o baiano gostava. Aí nasce a axé music."

Nestor Madrid, engenheiro de som e produtor de axé music em Salvador - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Imagem: Rafael Martins/UOL

Sucesso internacional

A axé music só crescia, mas houve um dia em que o produtor musical caiu em si em relação à grandeza do gênero. Nestor estava em Nova York. "Cheguei em uma importante loja de discos e lá estava uma seção só de discos de axé, ao lado do samba e da MPB. Ali eu vi que o que criamos era realmente grande."

A indústria da axé music mudou o cenário econômico, gerou milhares de empregos, fez surgir escolas de profissionalização para técnicos de som, holdings e outros profissionais.

"Essa indústria também atraía milhões de turistas. A quantidade de hotéis em Salvador aumentou de pouco mais de 60 em 1982 a mais de 400 em 1998. Mais do que um gênero, isso é um movimento social por que você beneficia famílias."

Nestor reconhece que ganhou dinheiro com a axé music, sim, mas muito menos do que empresários de bandas, donos de blocos e os próprios artistas. "Se eu me preocupasse mais comigo do que com o mercado e com os artistas, estaria milionário."

Para explicar a ruína do império, Nestor responsabiliza a falta de renovação provocada pelo despreparo, ganância e arrogância de quem tinha dinheiro, no caso, os empresários dos artistas. Os artistas passaram a ter valores de cachês absurdos e se criou uma espécie de ditadura da axé music.

"Os novos artistas não tinham espaço, eram vistos como concorrentes. Interromperam o surgimento de novos talentos. Uma indústria supõe uma fábrica. Paramos de fabricar artistas. O sistema quebrou", compara.

"Você vê o sertanejo, por exemplo. O sertanejo aprendeu com os equívocos do axé. As próprias duplas lançam e apadrinham outras duplas. Isso retroalimenta e oxigena o mercado. Os artistas e empresários do axé queriam o mercado só para eles."

Nestor Madrid, engenheiro sonoro e produtor de axé music - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Imagem: Rafael Martins/UOL

Problemas financeiros

Com a retração da indústria do axé, Nestor e outros produtores musicais perderam espaço. Alguns poucos grandes artistas e blocos se mantiveram no topo, mas todo o resto da cadeia foi desmantelando. Ao longo dos anos, as contas de Nestor não pararam de chegar, os trabalhos minguaram e as dívidas foram crescendo. A pandemia foi o golpe de misericórdia.

A partir de uma ação da proprietária do imóvel em que Madrid mora, a Justiça determinava que ele saísse do apartamento até esta quinta-feira (14). Sem dinheiro para pagar advogado, Nestor recorreu à Defensoria Pública da Bahia. Como Madrid não foi pessoalmente intimado, a Defensoria entrou com agravo de suspensão do mandado. Agora, baseado numa liminar do STF que proíbe despejos até junho, o órgão pedirá que o engenheiro de som consiga permanecer no imóvel até metade do ano, pelo menos.

"A visita indesejada não veio. Espero ganhar tempo para cumprir todos os meus compromissos", sonha Nestor Madrid.