'É uma arte': tatuador brasileiro conquistou clientes na yakuza, no Japão
Massao Nissiuti, 51, prepara a haste de bambu e um punhado de agulhas. Vestindo máscara e luvas, ele separa as tintas, vibrantes, para iniciar mais um dia de arte no seu estúdio em Komaki, na província de Aichi, no Japão. A "tela" está deitada diante dele: as costas de um jovem de 23 anos que tirou o dia para mais uma sessão para terminar uma colorida tatuagem que vai dos ombros até o lado de trás das coxas — um processo que requer diversas sessões, mais de 100 horas de trabalho, e um investimento de 1,2 milhão de ienes (cerca de R$ 47 mil), no mínimo.
Isso porque a tatuagem é "tebori", uma técnica japonesa: "te" significa mão e "hori", adaptada para "bori" na junção das palavras, quer dizer esculpir ou inscrever, em japonês; em tradução literal, "tebori" então significa "inscrever à mão". A técnica surgiu no período Edo (1603-1868) e até hoje é transmitida de mestres a discípulos escolhidos a dedo. Nissiuti foi um deles.
Natural de Bragança Paulista (SP), ele se tornou um dos poucos estrangeiros consagrados como mestre num clã tradicional de tebori no Japão.
O paulista desembarcou no arquipélago em 1991. Era dekassegui, como são chamados os brasileiros que atravessam o mundo para trabalhar nas fábricas japonesas. Nos dias de folga, tatuava amigos, um trabalho informal.
Três anos depois, conseguiu abrir seu primeiro estúdio de tatuagem, em Kani, na província de Gifu. O estúdio acabara de abrir e um integrante da yakuza, a máfia japonesa, cruzou-lhe o caminho. "Um mafioso me visitou e disse que eu tinha que parar. Minha família ficou com medo e decidi fechar o negócio", conta.
Restou a Nissiuti fechar as portas e mudar para a cidade vizinha, Seki, para trabalhar no estúdio de um tatuador japonês com quem tinha feito amizade. "Ele conhecia os mafiosos e eu insisti que queria conversar com eles e conhecer as regras para reabrir meu estúdio", relata.
Segundo Nissiuti, depois de três meses, o chefe da máfia na região, enfim, decidiu recebê-lo. O amigo japonês o orientou sobre como se comportar: apenas ouvir, sem questionar nem pedir nada. "O chefão conversou e me fez perguntas sobre o Brasil, mas me mandou ir embora sem tocar no assunto [o estúdio]. Achei que não teria mais jeito", lembra.
Dois dias depois, ele foi "convocado" a retornar ao escritório do chefão. Recebeu autorização para reabrir o negócio, mas com a condição de pagar um "pedágio" de 30 mil ienes por mês (cerca de R$ 1,2 mil no câmbio atual). Assim, reabriu.
Brilho nos olhos
Foi nessas conversas com a yakuza que o brasileiro conheceu Horikyu, um prestigiado mestre de tebori que tatuava muitos dos criminosos, em 1997.
"Fiquei muito interessado nessa arte. Acho que ele percebeu o brilho nos meus olhos e se propôs a me ensinar, uma conquista que não tem preço", recorda-se ele, que já era fascinado por desenhos com temáticas orientais, entre dragões, samurais, carpas e tigres, bem como personagens da mitologia asiática.
O que lhe chamou a atenção é que, com o tebori, todo o trabalho feito pelas máquinas atuais deve ser manual. "Aprender a dar cada estocada precisa, no ângulo específico e com a força e o ritmo certos, é uma arte."
Adotado como único discípulo estrangeiro de Horikyu, Nissiuti conta que, na condição de principiante, precisou passar por provações. "No início, eu lavava o banheiro do estúdio, tinha de acender os cigarros do mestre e levava golpes de bambu na cabeça quando fazia algo errado", relata ele, que se aperfeiçoou na arte até 2002. Depois, passou 17 anos trabalhando como tatuador profissional entre Estados Unidos e Brasil.
Ao retornar ao Japão, em 2019, soube que seu mestre havia falecido. "O filho dele assumiu a liderança do clã Horikyu, concedeu-me o título de mestre e me batizou como Horisei, nome com o qual estou autorizado a prosseguir com meu próprio estilo", orgulha-se. Antes disso, o tatuador já tinha conquistado o respeito de integrantes da yakuza — e riscou os corpos de diversos deles com suas agulhadas. Entretanto, eles não são habitués do estúdio. "Eu é que vou até eles", diz.
"Perdi a conta, mas com certeza passam de 200. Pode dizer que foram centenas", garante, mostrando no smartphone fotos de costas masculinas que foram tatuadas por ele. Um detalhe revelador na foto de um dos clientes é o dedo mindinho com a ponta cortada: na tradição da yakuza, quando um integrante falha, decepar o próprio dedo mínimo é uma maneira de reconhecer o erro e pedir perdão ao chefe.
"Já vi alguns deles terem de cortar o mindinho na minha frente", assegura. Diz, entretanto, que não sente medo de atender a essa clientela incomum. "Uma coisa que aprendi com essa e outras experiências é que, quando um yakuza diz algo, é preto no branco. Sim é sim e não é não, e ponto final."
Gambiarra dekassegui
Nissiuti já gostava de desenhar e começou a tatuar em 1987, aos 16 anos, época em que trabalhava como ajudante de mecânico de aeronaves no interior de São Paulo. Na época, aprendeu a montar máquinas artesanais de tatuagem utilizando dispositivos de toca-fitas de carros e, por brincadeira, tatuou amigos que toparam ser suas primeiras cobaias.
Aos 19, decidiu tentar a sorte no Japão. Passou três anos trabalhando como operário. Era comum entre operários imigrantes como ele um certo garimpo nos lixões japoneses, em busca de móveis, eletrodomésticos e eletrônicos ainda em condições de uso para equipar os novos lares. De um dia de garimpo, surgiu uma ideia. "Um dia, no lixão, vi um toca-fitas aberto e me lembrei de que sabia montar uma máquina de tatuagem com o motor dele. Levei a peça para casa, improvisei uma maquininha e aquilo me inspirou a voltar a tatuar", lembra.
O primeiro desenho feito no Japão, um tribal, foi riscado no corpo de um colega de fábrica. Tudo "gambiarra", diz: além da própria máquina caseira, Nissiuti usou agulhas de costura e tinta de caneta. A tatuagem repercutiu bem entre outros amigos e logo ele passou a ser procurado por novos clientes informais. A renda extra o encorajou a comprar um equipamento profissional, pedir demissão da fábrica e mudar de área.
Hoje, Nissiuti atende brasileiros e japoneses, "50%, 50%", estima. "Achei os desenhos dele muito bonitos. Inclusive, já indiquei o trabalho para outros amigos", comenta o japonês Aoi Yanagiro Takahiro, 23, que estava no estúdio na manhã de domingo (15), quando o TAB esteve por lá. "Com a técnica do tebori, as tintas coloridas ficam mais evidentes. Além disso, é bem menos doloroso. A única desvantagem é que demanda mais tempo", acrescenta o brasileiro Juliano Lage, 30.
Embora a técnica tebori seja muito antiga, tatuagens ainda são mal vistas no Japão. Historicamente associados à máfia, os desenhos no corpo são alvo de preconceito e até hoje a presença de tatuados é proibida em certos ambientes, como algumas academias, casas de banho, piscinas públicas e saunas. No mercado de trabalho, quem tem tatuagens, à mostra ou não, também pode encontrar empecilhos para disputar uma vaga de emprego.
"A maioria ainda associa tatuagem à marginalidade, mas, aos poucos, essa imagem está mudando, porque hoje já há atletas e artistas japoneses tatuados. A profissão não é proibida, mas ainda não é regulamentada. Devagar, estamos desconstruindo esse preconceito", diz Nissiuti. No que depender dele, a arte japonesa vai ficar para a posteridade. Na condição de mestre, pretende dar continuidade à sua linhagem, Horisei. A filha Laleska Hikari, 25, é sua primeira discípula.
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