'Quente, né?': cozinheiro japonês faz sucesso com lámen tradicional em SP
Os clientes chegam tímidos e conferem algumas vezes o celular para saber se estão no local correto. Assim que encostam no balcão de madeira vem a pergunta. "Lámen?", indaga Shindo Michihiko, enquanto ajeita as panelas no fogão industrial. Ao ouvir a confirmação, avisa que é "só dinheiro" e aponta uma placa com os mesmos dizeres e um QR Code para acesso ao cardápio. Depois de ouvir os pedidos, demora pouco mais de dez minutos para montar o prato, que chega fumegando no balcão.
Mesmo com o calor de 32ºC na rua, quem se senta para comer o "Lámen do Shin", também conhecido como Brazil Lámen, já sabe o que o espera. O caldo vem quente, quase fervendo. O macarrão no centro e em cima algumas fatias de porco cozido, verduras, cogumelos e outros ingredientes bem cortados. Na primeira colherada do caldo, as gotas de suor surgem nas têmporas. O calor aperta, mas é impossível parar de comer. Quando o olhar de Shin cruza com um dos clientes, ele faz a pergunta retórica. "Quente, né?". Secando o suor com o guardanapo, um casal acena com a cabeça e volta à missão de terminar o prato.
Não há muita cerimônia. Quem está no balcão transpira, devora a tigela, paga com dinheiro, agradece e Shin parte para a montagem do próximo lámen. Ele está há seis anos fazendo esse prato no Brasil, sem local fixo. Atualmente, atende a clientes em um box só seu nos fundos de uma galeria na Rua Barão de Iguape, no bairro da Liberdade, região central de São Paulo.
Recentemente, passou a chamar mais atenção nas redes sociais pela simplicidade do seu cardápio (são apenas quatro opções) e uma versão vegana. Também conquistou desbravadores culinários do Instagram e TikTok. Um dos clientes, inclusive, disse que descobriu o restaurante assistindo a um vídeo no aplicativo, indicando o local.
O Brazil Lámen é simples: balcão, pia e fogão industrial. Uma panela gigante pousa sobre a boca ligada do fogão até o final do expediente. Além do cardápio enxuto, Shin também não vende bebidas. Para solucionar esse problema, aconselha os clientes a comprarem bebidas nos restaurantes ao lado. Alguns, já familiarizados com o esquema do Lámen do Shin, já trazem a bebida de casa. A melhor forma de saber se o dia terá lámen ou não é através do Instagram do cozinheiro, que posta apenas um aviso dos horários e os dias em que pretende atender.
'É só sentimento'
Shin tem 49 anos, dez deles dedicados ao lámen. Do outro lado do balcão de madeira, tenta se comunicar da melhor forma possível, misturando um pouco de português, inglês e japonês para contar sua história. Mesmo tendo o tradutor do Google como seu aliado, Shin é um homem de poucas palavras, preferindo se expressar da forma que sabe melhor.
"Eu me comunico pela minha comida. Comer não exige palavras, é só sentimento. As pessoas vêm aqui, comem o meu lámen, ficam felizes e pronto", explica.
Quando mais jovem, suas paixões principais eram a música e a moda. Foi vocalista de uma banda de hardcore chamada Public Domain, criou uma marca e viajou para os Estados Unidos para comprar roupas e acessórios e vendê-los no Japão. O lámen entrou na sua vida em 2012, quando morava em Kichijoji, cidade localizada na região metropolitana de Tóquio. Foi lá, conhecendo os restaurantes locais, que Shin passou a observar como se faz um lámen ideal. A receita veio junto com ele para o Brasil.
Quando chegou no país, visitou o Rio de Janeiro e São Paulo e se apaixonou pela cultura — e pela comida. "Gosto muito da moqueca, tanto a capixaba quanto a baiana, e das frutas", comenta. "Acho que a mistura da cultura japonesa e da brasileira criou-se um meio termo perfeito. Os japoneses são mais movidos pela cabeça e não são muito bons de comunicação. Já os brasileiros são movidos pelo coração", opina.
Quando chegou no Brasil, recebeu um balde de água fria. Um ladrão invadiu seu apartamento e roubou todo seu dinheiro, deixando-o apenas com seis reais que estavam no seu bolso e seu passaporte. A ajuda veio dos brasileiros próximos a ele, que o incentivaram a seguir cozinhando lámen e indicar o trabalho de Shin sempre que possível.
Em 2019, quando atendia clientes em um restaurante japonês, comentou em um encontro sobre o prato que seu maior sonho é criar um lámen para veganos. Três anos depois, a versão vegana é um dos carros-chefe do balcão. "No futuro, acredito que ninguém mais vai comer carne ou vai precisar consumir a quantidade que consome hoje em dia", disse.
Consolidado no seu pequeno box no fundo da galeria na Liberdade, afirma não ter grandes ambições ou pretensões com o lámen. "É muito divertido", resume.
A arte do lámen perfeito
Quando Shin escuta que não aparenta ter a idade que tem, responde sem melindre. "É porque sou japonês e japonês come comida boa, muita coisa fermentada, que é bom para seu estômago, e muito umâmi", explica.
Umâmi é o quinto gosto reconhecido pelo paladar humano, junto com doce, salgado, ácido e amargo. Apesar de comum na culinária japonesa, o gosto aparece também no cotidiano alimentar de todos nós, especialmente quando usamos tomate, queijos fortes e carnes na preparação da comida. Uma forma mais direta também é o glutamato monossódico, também conhecido como "Ajinomoto", usado para elevar esse sabor.
O umâmi é um dos sabores primordiais no lámen e Shin faz questão de explicar que não usa qualquer componente químico no caldo para potencializar esse sabor. Ou seja, nada de glutamato monossódico ou outros produtos industrializados para simplificar a receita. Por conta disso, usa apenas ingredientes naturais para enriquecer o sabor do seu caldo — criando um equilíbrio perfeito entre gordura, acidez, sal e o tal de umâmi.
A preparação do caldo leva dois dias, segundo Shin. Já a massa é comprada de uma fábrica de macarrão de um conhecido, mas o cozinheiro planeja também fazer a própria massa usando farinha de arroz. "Estudei a preparação de macarrão no Japão muito tempo atrás", afirma.
Sem pretensões
O lámen é um prato tão amado no Japão que foi feito um filme em 1985 em sua homenagem. Em "Tampopo" do diretor Jûzô Itami, os personagens entram em uma busca incansável na criação do lámen perfeito, pegando os segredos em diversos restaurantes dedicados ao prato em Tóquio. Para a perfeição, cada ingrediente deve ser cuidadosamente selecionado. O caldo, a alma do lámen, deve ser saboroso e quente. O macarrão, nem muito mole e nem muito duro, e os acompanhamentos perfeitamente cortados.
Há até um pequeno ritual para aproveitar o prato, ensinado por um dos personagens. Deve-se cheirar primeiro para fruir o equilíbrio do lámen, depois acariciar e mergulhar a carne no caldo e assim aproveitar cada elemento da tigela. Shin sorri quando escuta a menção do filme, mas sua abordagem é bem mais direta.
"Quando o lámen for colocado à sua frente, coma-o enquanto estiver quente. Segure o hashi com sua mão dominante e a colher na outra. Coma o macarrão e a sopa de forma equilibrada, de forma alternada. Às vezes, gosto de comer primeiro todas as coberturas em cima", ensina.
Agora, para aproveitar mesmo, é necessário chupar o macarrão e fazer barulho — para o horror das mães brasileiras. No Japão, fazer barulho enquanto come o lámen é um bom sinal e também ajuda a esfriá-lo. É necessário comer depressa para não perder a quentura. "Coma sem pretensão e sem perder tempo", resume Shin, enquanto monta o último prato do dia.
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