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João Doria fora da política: 'Não salvei meu mandato, mas salvei vidas'

"Fui o mais atacado nesse período, entre todos, e isso subtraiu muito da minha popularidade. Não salvei meu mandato, mas salvei vidas", diz Doria - André Porto/UOL
'Fui o mais atacado nesse período, entre todos, e isso subtraiu muito da minha popularidade. Não salvei meu mandato, mas salvei vidas', diz Doria
Imagem: André Porto/UOL

Cláudia Castelo Branco

Colaboração para o TAB, de São Paulo

05/07/2022 04h01

De partidos historicamente rivais, os ex-governadores João Doria (PSDB-SP) e Wellington Dias (PT-PI) se uniram entre 2020 e 2021 num pacto para viabilizar a vacinação no Brasil. São Paulo e Piauí são hoje os estados com o maior índice de vacinados do país.

"Fui o mais atacado nesse período, entre todos, e isso subtraiu muito da minha popularidade. Não salvei meu mandato, mas salvei vidas", avalia Doria, que abandonou recentemente a vida pública. Segundo ele, o "gabinete do ódio" agiu contra seu governo e todos que defendiam a ciência. "Diziam que quem usava máscara era fraco, que a pandemia era uma farsa."

Doria e Dias renunciaram aos governos no dia 31 de março. Enquanto o tucano confirmava a pré-candidatura à Presidência, o petista anunciava que sairia candidato, pela segunda vez, ao Senado. Faltando poucos meses para as eleições, as histórias deles tomaram rumos diferentes: de um lado, o pré-candidato do PSDB desistiu de concorrer e retornou à iniciativa privada; de outro, a campanha do PT ganhou fôlego.

"A gente tá trabalhando uma campanha no formato de um movimento pelo Brasil, independente das diferenças políticas", explica Dias sobre seu papel na campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Planalto. O ex-governador do Piauí, estado onde o presidente Jair Bolsonaro tem a maior rejeição no Brasil, nem de longe pensa em abandonar a política: aos 60 anos, é um dos cabeças da chapa de Lula com Geraldo Alckmin (PSB), convite aceito em 2021, quando a vacinação estava começando no Brasil.

Só elogios

Doria recebeu a reportagem no seu escritório na capital paulista. "Fui muito abordado no aeroporto por pessoas agradecendo a vacina", lembra o ex-governador, sorrindo. Refere-se a Bolsonaro como negacionista boicotador de vacina, o mais nocivo e constrangedor de todos. "Diria que o Brasil enfrenta dois vírus: o coronavírus e o bolsonarovírus."

Atrás dele, no lado direito, figura uma pequena bandeira do Brasil pendurada na parede. "É um fenômeno que um presidente eleito pelo voto popular se torne o pior de toda a História. Conseguiu ser pior que os presidentes indicados pela ditadura militar."

Doria exibe uma imagem plena que quase se desfaz ao lembrar das ameaças de morte sofridas nos dois últimos anos. Ao defender a vacina, virou alvo não só de fake news, mas de ameaças reais contra sua família. Elas cessaram quando a delegacia cibernética da Polícia Civil identificou dois dos autores.

Doria está ciente de como sua postura para tomar decisões, tais como o lockdown, e a exposição quase diária, impactaram sua imagem, a ponto de desgastá-la. "Não me arrependo de nada", diz. Elogia o SUS e conta que se sente responsável, graças à vacina do Butantan, por ter pressionado o governo federal a iniciar a vacinação no Brasil.

Para os governadores, não foi um processo fácil. Dias, diz Doria, "foi brilhante". "Gosto muito dele. Foi muito honrado comigo", afirma. O petista também é só elogios ao tucano. "Deixamos de lado as disputas eleitorais e estivemos juntos na defesa da vida. Por isso meu respeito e gratidão a João Doria."

Dias cumpria agenda de encontros estratégicos com lideranças de outros partidos na capital paulista quando recebeu o TAB no restaurante de um hotel. Preparava-se para receber o título de cidadão paulista na Câmara Municipal e participaria no dia seguinte do casamento de Lula com a socióloga Rosângela da Silva, a Janja. Especula-se que, caso Lula vença, Dias ocupe um ministério. "Imagina aguentar mais quatro anos disso?", sussurra, referindo-se à possibilidade de reeleição de Bolsonaro.

Ex-governador João Doria, em entrevista ao TAB - André Porto/UOL - André Porto/UOL
O ex-governador de SP desistiu de concorrer e voltou à iniciativa privada
Imagem: André Porto/UOL

'Um presidente antifederação'

Doria atribui para si a ideia de dar dimensão nacional ao Fórum dos Governadores, uma entidade informal entre articulação de posições, aproximando assim os governadores nordestinos que "sempre foram muito organizados".

Em 2018, um encontro com Bolsonaro foi costurado pelos governadores de São Paulo, Distrito Federal e Rio de Janeiro. "Foi a única que o presidente participou", lembra Doria. O descaso de Bolsonaro não soou bem entre lideranças estaduais que interagiam num grupo no WhatsApp. "O diálogo com o presidente ficou difícil, mas não só comigo, no geral. Nunca vi um presidente antifederação. Tratava os governadores como adversários", recorda Dias.

Em agosto de 2019, os governadores de São Paulo e Piauí estiveram juntos num clima amistoso enquanto promoviam seus estados na China. No grupo de WhatsApp dos governadores, Dias parabenizou Doria. "Obrigado, somos o Brasil na China! E parabéns pela decisão moderna de abrir escritório em Shanghai. Nos inspirou e estudamos implantar escritório no NE via consórcio recém criado."

O bom relacionamento já era reflexo do clima cordial entre governadores de vários partidos. Na época, pré-pandemia, o diretor do Butantan, Dimas Tadeu Covas, passou por Wuhan e assinou uma carta de intenções tripartite com a empresa chinesa BravoVax e a norte-americana Exxell BIO para o desenvolvimento de uma vacina pentavalente contra o rotavírus.

Ex-governador Wellington Dias, em entrevista ao TAB - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
O ex-governador do PI articula chapa Lula/Alckmin e disputa Senado
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Governadores no WhatsApp

Em 2020, com a pandemia avançando no Brasil e a relação do presidente com os governadores já desgastada, Doria sugeriu que Dias fosse o coordenador do fórum dos governadores no âmbito da saúde. "Sempre senti o Wellington distante de ideologias, obstante suas posições com o PT e sua simpatia pelo presidente Lula", justifica.

Com o Ministério da Saúde sob o comando de Luiz Henrique Mandetta, o grupo realizou uma primeira agenda virtual com Bolsonaro. Nada aconteceu. Na segunda agenda, bate-boca e tons alterados. "Ali tivemos uma ideia que foi muito importante: organizar o Pacto pela Vida", conta Dias. O nome foi uma ideia de Doria — na época, lembra ele, Bolsonaro fez um pacto pela morte ao defender a cloroquina e espalhar que a pandemia era uma "gripezinha". "Um pacto para defender a ciência, a realidade. Nós tínhamos essa consciência", afirma o paulista.

Diante dos governadores unidos — e com o Ministério da Saúde já sob Eduardo Pazuello —, o governo federal passou a contestar a autonomia dos estados. O grupo recorreu ao Supremo Tribunal Federal e o ministro Ricardo Lewandowski ratificou a competência exclusiva dos governadores na definição do programa de defesa da saúde e de imunização nos estados. "Todos eles [governadores], sem exceção, foram a favor da vacina. Uns com mais impetuosidade, outros não", conta Doria.

Governadores bolsonaristas não interagiam no grupo no WhatsApp, mas liam as mensagens e acompanharam a chegada da vacina a São Paulo. Quem não se manifestava a favor também não contestava, ficava em silêncio. Todas as mensagens, segundo governadores ouvidos pela reportagem do TAB, eram bastante objetivas. Não tinha brincadeira, nem figurinha.

Ex-governador Wellington Dias, em entrevista ao TAB - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
'Deixamos de lado as disputas eleitorais e estivemos juntos na defesa da vida', afirma Dias
Imagem: Fernando Moraes/UOL

'Pacto pela Democracia'

Para Dias, o Pacto pela Vida ajudou a "empurrar o Brasil para uma proposta além", um Pacto pela Democracia. Elogiado pela habilidade política nas tratativas com o governo federal e pela coordenação nas ações pela vacinação, Dias é o único brasileiro eleito no primeiro turno para quatro mandatos como governador. Considera importante o posicionamento do ex-chanceler Aloysio Nunes (PSDB), que declarou que só há duas vias abertas hoje: a continuidade de Bolsonaro ou a derrota dele. "E quem tem condição de derrotá-lo é Lula."

Nunes, por sua vez, considera-se um fã de Dias. "Você não vai encontrar pessoas que falem mal dele", afirma. Ciro Nogueira (PP-PI), ministro-chefe da Casa Civil, discorda. "WD sempre priorizou a questão partidária dele, colocando seus interesses acima dos interesses do Piauí. Não é uma má pessoa, mas se corrompeu pelo poder", diz ao TAB. "Depois de 20 anos no governo, não tem uma cidade do Piauí que se possa dizer um exemplo em segurança, em educação. Se não for verdade, me convide a ir nessa cidade com vocês. Se uma for exemplo, peço desculpas nacionalmente."

Nogueira e Dias têm uma história de idas e vindas. Foram eleitos juntos para o Senado em 2010. "Wellington perdeu para prefeito de Teresina em 2012. Nós (PP) tiramos ele do ostracismo porque foi uma derrota marcante e foi graças ao nosso apoio que ele ganhou a eleição de 2014", conta o ministro. Em 2018, Dias voltou ao cargo de governador enquanto Nogueira foi reeleito para o Senado, onde fica até 2027. Com a corrida presidencial, as duas lideranças regionais ocupam hoje papéis estratégicos na disputa que definirá os rumos do Brasil em 2023.

Para Dias, Nogueira faz parte de um campo não democrático. "Um campo que tem responsabilidade pelo que acontece no Brasil. Ele é parte direta desse projeto do Bolsonaro." Dias considera Lula, Simone Tebet (MDB), Rodrigo Pacheco (PSD) e Ciro Gomes (PDT) no campo comum de defesa da democracia, da ciência e das instituições, "com um tom mais forte, ou não", e vê a vitória de Lula no primeiro turno como uma possibilidade real. Já Doria diz que votará nulo pela primeira vez na vida.

O grupo de WhatsApp dos governadores ainda existe, mas o petista e o tucano não estão mais lá.