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Viúva de marinheiro do Triângulo das Bermudas perde 1ª ação no Brasil

Joana Alves Damasceno, viúva do marinheiro Edivaldo Ferreira de Freitas, desaparecido em 1976 - Fernanda Luz/UOL
Joana Alves Damasceno, viúva do marinheiro Edivaldo Ferreira de Freitas, desaparecido em 1976
Imagem: Fernanda Luz/UOL

Maurício Businari

Colaboração para o TAB, de Santos

19/07/2022 04h01

Muito se especula sobre o misterioso Triângulo das Bermudas e o incrível desaparecimento de aviões e navios e suas tripulações. Mas pouca gente sabe que, em 1976, um grupo de marujos brasileiros a bordo de uma dessas embarcações também desapareceu por lá. Perto de completar 83 anos, Joana Alves Damasceno é viúva de um desses marinheiros e buscou indenização pelo sumiço do seu marido. Por enquanto, não conseguiu: nesta segunda (18), o juiz julgou a ação "improcedente".

O Triângulo das Bermudas, situado no Oceano Atlântico entre as ilhas Bermudas, Porto Rico, Flórida (EUA) e as Bahamas, é uma região do planeta que sempre esteve envolta em muito mistério. Não é para menos, pois, segundo registros oficiais, ao menos 50 navios e 20 aviões que passaram por lá desapareceram. Entre eles, o navio cargueiro Sylvia L. Ossa, de bandeira panamenha e propriedade da empresa Ominum Leader, que saiu do Brasil levando minérios de ferro para a Filadélfia.

A embarcação levava uma tripulação de 37 pessoas, com nove brasileiros. E a morte de um deles, o marinheiro Edivaldo Ferreira de Freitas, marido de Joana, virou caso defendido pelo escritório de advocacia Furno Petraglia e Pérez, com sede em Santos, litoral de São Paulo. Os advogados entraram com uma ação no Brasil contra as empresas estrangeiras envolvidas na operação do cargueiro, pedindo que a viúva fosse ressarcida pelo sumiço do marido, tripulante do navio.

O juiz da 6ª Vara do Trabalho de Santos Carlos Ney Pereira Gurgel indeferiu a ação peticionada pelos advogados de Joana. Ele entendeu que a viúva teria três anos para dar entrada no pedido, a partir da comunicação oficial da morte de seu marido no Brasil, ocorrida em 2014 — isto é, segundo a interpretação do juiz, o prazo seria 2017.

Entretanto, no entendimento dos advogados, Joana teria cinco ou dez anos para tomar medidas legais de reparação. Eles pretendem recorrer da decisão junto ao Tribunal Regional do Trabalho, em São Paulo. "É uma derrota, mas mantém as esperanças pelo fato de o juiz ter acolhido nosso caminho teórico, bastando, portanto, lutarmos para readequar o prazo, o que seguiremos lutando no recurso", afirmou o advogado Leandro Furno Petraglia. "Mesmo que a ação seja negada em segunda instância, ainda teremos condições de obter um parecer favorável junto ao Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília."

Joana ficou surpresa com a notícia, mas disse que não vai desistir: quem espera mais de 40 anos pode esperar mais um pouco para que essa história enfim encontre seu desfecho, disse ao TAB. "Tenho esperança. Só espero que não demore muito para que a gente consiga resolver isso, porque em agosto já vou completar 83 anos. Não tenho mais tanto tempo assim para esperar ser feita a justiça."

'Fiquei em choque'

O desaparecimento do Sylvia L. Ossa foi amplamente divulgado pela imprensa à época, ganhando destaque em três reportagens especiais publicadas pelo jornal norte-americano The New York Times. Todos se perguntavam como um cargueiro com 180 m de comprimento e 15 mil toneladas poderia ter desaparecido tão repentinamente.

Joana recorda que soube da situação pelo noticiário. Estava na cozinha, preparando o jantar, enquanto os filhos assistiam TV na sala. Quando, de repente, ouviu um repórter dizer, no Jornal Nacional, que o navio Sylvia L. Ossa havia desaparecido numa área do Triângulo das Bermudas.

"Era o navio em que o Edivaldo estava. Fiquei em choque. Quando cheguei na sala, meus filhos estavam chorando, foi horrível", contou ao TAB.

"Procurei a empresa para a qual ele trabalhava e confirmaram. Me fizeram assinar um papel dizendo que era para receber o último salário dele. Depois não tivemos mais notícias. Às vezes ainda penso que ele está vivo, porque nunca acharam o corpo, não acharam nada. Ainda tenho muitas saudades dele. Ele foi o grande amor da minha vida."

Joana Alves Damasceno, viúva do marinheiro Edivaldo Ferreira de Freitas - Fernanda Luz/UOL - Fernanda Luz/UOL
'Ainda tenho muitas saudades dele. Ele foi o grande amor da minha vida', diz a viúva
Imagem: Fernanda Luz/UOL

Amor de carnaval

Joana nasceu e passou parte da infância e adolescência em Recife, capital pernambucana. De origem humilde, ela e seus oito irmãos tiveram que começar a trabalhar muito cedo.

"Nunca fui à escola, nunca aprendi a ler ou escrever. Mal sei escrever meu próprio nome", contou, meio sem jeito. "Tive que trabalhar para ajudar nossos pais. Comecei aos 12 anos, trabalhando em casa de família. Depois numa fábrica de bebidas, depois numa fábrica de balas. Não tinha tempo para estudar, não."

Quando conheceu Edivaldo, Joana era uma jovem com dois filhos pequenos, frutos de seu primeiro relacionamento. O encontro inesperado aconteceu num clube da cidade, durante um baile de carnaval. "Foi amor à primeira vista", garante. "A gente conversou muito, falei para ele dos meus filhos e tudo. Ele era dez anos mais velho, era maduro. Ele quis ficar comigo, aceitou formar família."

Depois de oito anos vivendo juntos em Recife, Edivaldo convenceu a mulher e os filhos a mudarem-se para a cidade de Santos, litoral de São Paulo, onde alugou um apartamento para a família. Ela tinha 32 anos quando, junto com as crianças, embarcou num ônibus em Recife, com destino ao município paulista. Edivaldo tinha 42.

"Ele queria morar em Santos porque para ele ficaria mais fácil, por causa do porto. Fomos muito felizes durante cinco anos, até 1976. Foi a última vez que vi seu sorriso." A única lembrança foi uma foto pequena, já desbotada pelo tempo. O marinheiro era avesso a fotografias. "Eu pego a foto, fico olhando, converso com ele. Queria ter mais fotos, mas na época a gente nem ligava para isso."

Joana Damasceno - Fernanda Luz/ UOL - Fernanda Luz/ UOL
'Pego a foto, fico olhando, converso com ele. Queria ter mais fotos, mas na época a gente nem ligava para isso'
Imagem: Fernanda Luz/ UOL

Ação perdida nos EUA

Ainda em 1976, quando o caso ganhou repercussão nos EUA, a viúva foi procurada pelo advogado norte-americano Kennet Heller, que procurava assumir o caso junto à Corte, buscando garantir às viúvas dos embarcados uma indenização. Tempos depois, porém, ela soube que ele se viu envolvido num escândalo de corrupção milionário e não teve mais notícias da ação.

"Foi somente em 2019 que a viúva, aconselhada por uma amiga, decidiu nos procurar", afirmou ao TAB o advogado Leandro Furno Petraglia, que assumiu o caso junto à Justiça brasileira. "A história era incrível, nosso escritório aceitou na hora o caso. Solicitamos documentos e provas que atestassem a veracidade das informações."

Monica Alice Branco Pérez, sócia do escritório, chegou a ir até Nova York, nos Estados Unidos, para se certificar do andamento do processo. "Apuramos que ela havia perdido o processo por lá e ingressamos com uma ação trabalhista no Brasil, alegando que a empresa Omnium Leader, dona do navio, e a Frota Oceânica, que é a operadora marítima, deveriam indenizar a viúva pelo desaparecimento de seu marido na época", explica Leandro.

Os advogados pedem indenização por dano material, com o pagamento de uma pensão para a cliente equivalente a um salário mínimo, retroativo aos 45 anos em que seu marido permaneceu desaparecido. E um valor por danos morais equivalente a R$ 100 mil.

Joana Damasceno - Fernanda Luz/ UOL - Fernanda Luz/ UOL
Joana Damasceno vive em uma casa alugada e quer comprar de volta sua antiga residência
Imagem: Fernanda Luz/ UOL

Ação em andamento no Brasil

Desde que perdeu o marido, a vida da viúva e dos filhos se complicou. Sem trabalhar desde que "se juntou" com Edivaldo, teve que se reinventar e atuou como costureira. A família deixou o apartamento em que morava, nas imediações do Canal 1, e mudou-se para o Jardim Rádio Clube, na Zona Noroeste, região periférica de Santos.

Ali, conseguiu comprar uma casa onde morou muitos anos, mas teve de vendê-la quando seu filho biológico morreu. A filha biológica se casou e hoje elas não têm contato. Joana hoje mora com a irmã, Maria dos Prazeres, 76, e um filho adotivo, André Luis O'Boyle, 43, em uma região sem infraestrutura e saneamento básico no Rio Branco, área continental de São Vicente.

Com 83 anos, ela agora sofre de reumatismo, caminha com dificuldade com a ajuda de uma bengala e vive com um salário mínimo da aposentadoria que conseguiu "com muito custo". André, que está desempregado, faz bicos para ajudar a mãe e a tia. E Maria dos Prazeres faz salgados para vender. Mas o dinheiro não tem sido suficiente para o sustento e as irmãs idosas estão com dívidas obtidas por pedidos de empréstimos consignados.

"Se eu ganhar essa ação pelo desaparecimento do meu marido, meu maior desejo é comprar de volta a casinha em que a gente morou. Se não der para comprar essa, pode ser qualquer outra. Ninguém merece viver nas condições que a gente vive hoje."

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Joana Damasceno e a irmã, Maria dos Prazeres, em São Vicente (SP)
Imagem: Fernanda Luz/ UOL

O Triângulo das Bermudas

Os relatos de desaparecimentos e eventos misteriosos no Triângulo das Bermudas remontam aos tempos do descobridor da América, Cristóvão Colombo. Quando o navegador passou pela região, em sua primeira viagem ao novo mundo, no século 15, ele registrou que uma chama de fogo atingiu o mar e fez com que uma luz estranha aparecesse à distância algumas semanas depois.

Ao local já foram creditados o desaparecimento e a morte de mais de 8 mil pessoas desde meados do século 19. Há relatos de que bússolas e outros instrumentos de navegação e elétricos simplesmente param de funcionar quando um barco ou avião passa por lá.

Alguns o chamam de Triângulo do Diabo. Outros se referem a ele como Limbo dos Perdidos. E há quem acredite que a peça de William Shakespeare "A Tempestade" é baseada em contos de feitiçaria e naufrágio na área.

Há décadas, cientistas vêm tentando explicar os fenômenos por trás dos eventos estranhos que já foram registrados na área. Para alguns, trata-se de uma zona de convergência de tempestades repentinas e com ondas imensas, que engolem navios. Para outros, uma área influenciada pela Anomalia Magnética do Atlântico Sul, que provoca panes em instrumentos e equipamentos, como os dos aviões.

Por enquanto, o que se pode dizer é que, durante séculos, o Triângulo das Bermudas foi mistificado como um trecho angustiante do oceano, onde marinheiros e pilotos tendem a perder contato com o mundo e desaparecem para sempre.