'Vim pela fila': bonbonnière resiste há mais de 90 anos na Cinelândia (RJ)
A fila chama a atenção de quem passa. "Vim pela movimentação, quis saber o que que é e comprei duas tortas", diz uma das pessoas admiradas com a portinha na esquina da rua Ator Jayme Costa e da praça Marechal Floriano Peixoto, na Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro, onde se esconde uma bonbonnière fundada em 1928.
Entre 1930 e 1960, a Bomboniere Pathe ocupou a esquina com duas entradas e vitrines de mármore verde com vidros arredondados repletos de balas e bombons. Hoje, tem toda a fachada pichada e apenas uma porta aberta. Dentro, baleiros, jarras e fotos acumuladas dão um ar de birosca. Engana-se, entretanto, quem pensa que a loja está em decadência.
Na sexta-feira (1), por volta das 14h, as prateleiras já estavam vazias. Na segunda (4), a fila que se formou às 12h30 não acabou antes das 14h — Michele Trica, filha do atual proprietário, Paulo Trica, vendeu tudo antes de o relógio marcar 17h. Trufada, banoffe, de beijinho, "alemã crocante" e outras combinações, as tortas caseiras custam R$ 100; o pedaço, R$ 10.
Do lado de fora, o cliente pode se encostar nas mesas disponíveis (duas e sem bancos), mas é mais comum que Michele embale o doce para viagem. Dentro, não há espaço para mais de duas pessoas já que todo o mobiliário adquirido nos últimos 94 anos foi estocado ali.
'Pathe', não 'Patrone'
Sabe-se pouco sobre a origem da bonbonnière. O fundador foi Alvarenga, possivelmente um amigo do segundo dono, Neto Monteiro, padrasto de Paulo. Em 1970, ao completar 18 anos, Paulo começou a trabalhar lá aos finais de semana e, doze anos depois, com a morte do padrasto, assumiu a loja com a mãe, Hilda Teixeira.
Michele conta que já ouviu diferentes versões da história, mas de uma informação diz ter certeza: a bonbonnière abriu após a construção do prédio Pathé Palace, no centro do Rio. Duas versões a surpreendem: uma diz que o negócio é uma filial da fábrica de chocolates Patrone, de Petrópolis (RJ); outra, que os donos "sempre moraram" num prédio chique na avenida Atlântica, em Copacabana, na zona sul da cidade.
A primeira história até faz sentido: na fachada há um letreiro gigante "Bomboniere Pathe: Bombons Patrone Caramelo Petrópolis" — a palavra "Patrone", aliás, é maior do que as outras. E, até a década de 1980, o carro-chefe da casa era a bala caramelo da Patrone. A segunda, nem tanto: não se sabe onde viveu Alvarenga, mas a família Trica nunca morou na avenida Atlântica.
Antes das tortas, os dois primeiros donos vendiam apenas doces e balas importados. As mais queridas entre as crianças eram a Toffee Bhering de embalagem azul e a bala de caramelo. "Até hoje tem cliente que vem procurá-las", diz Michele. A azulzinha era revendida até três anos atrás, mas após o sumiço do vendedor, virou saudade.
Na década de 1990, Paulo substituiu os importados por doces caseiros como tortas e pudins, e decorou as prateleiras internas com fotos do Rio antigo. Clientes antigos continuam a visitar o endereço, e novos chegam todos os dias, conta Michele.
Na infância, ela via a bonbonnière como uma espécie de estoque para seus doces favoritos, mas confessa que preferia sair para assistir filmes nos cinemas com a mãe, Daisy, e não ficar atrás do balcão com o pai.
'Quarteirão Serrador'
A Cinelândia já teve outros nomes. Além de praça Marechal Floriano Peixoto, o nome oficial, foi chamada de "Quarteirão Serrador", em homenagem a um de seus idealizadores, o espanhol Francisco Serrador Carbonell. Depois da demolição do Convento da Ajuda, em 1911, ele comprou o terreno de 1.800 m² a fim de transformar a vida noturna do centro do Rio com cinemas, bares e restaurantes. Passou três anos estudando as noitadas culturais da Broadway e de Hollywood.
O livro "Interiores" (2002), de Patrícia Vasconcelos, conta a história de prédios e casas construídos entre os séculos 19 e 20 espalhados pelo centro do Rio. A autora visitou 1.600 imóveis e buscou rememorar a história a partir dos endereços considerados mais significativos para a cidade.
Segundo Vasconcelos, as grandes construções de arranha-céus no Rio começaram na Cinelândia. Império, Capitólio, Glória e Odeon foram "grandes estruturas de cimento armado com amplas salas de cinema no térreo". Ao abrir, tinham todas as sessões lotadas; ao fechar, o público lotava bares, cafés e restaurantes nos arredores.
Pequenos cinemas já existiam na área no final do século 19, mas foi no segundo semestre de 1911 que salas maiores surgiram. Se antes o público se empilhava nas salas abafadas, a partir dali, o perfil mudou. Frequentar a Cinelândia virou um hábito chique, com as famílias e os jovens a bordo de carros particulares que passaram a rodar por ali.
Ao lado da bonbonnière estava o cinema Pathé Palace, que pertenceu à família do fotógrafo Marc Ferrez. O quarteirão se transformou num importante ponto de encontro da cidade, relembra Vasconcelos. Entretanto, um século depois, muitos dos lugares entraram em decadência e acabaram. O Pathé Palace virou igreja, o Capitólio foi demolido e substituído por um prédio envidraçado que atualmente tem um McDonald no térreo. Dez dos 11 cinemas não existem mais; o Odeon abriu após o isolamento da pandemia, em 2021, mas fechou de novo e não tem previsão de reabertura.
Paulo não vai à Cinelândia desde o início da pandemia. Daisy ajuda a filha às sextas, dias mais movimentados. Atualmente, a loja funciona de segunda a sexta-feira, das 10h às 17h (ou enquanto durar o estoque de tortas).
Michele atende a clientela com um sorriso de orelha a orelha e se esquiva das fotos, diz que não gosta de aparecer e acha graça quando se vê no visor da câmera. Receita é outro assunto que ela evita: ri e disfarça como se não ouvisse a pergunta lançada pela reportagem. As informações ficam guardadas a sete chaves. "Tem gente que implora para saber, chega a ser até indelicado."
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