Da geladeira em Itaipu à vigília na PF, como Janja virou amuleto de Lula
"Ao lado, companheiro, ao lado."
Essa é a resposta da socióloga Rosângela da Silva, a Janja, 56, a quem afirma que, por trás de um grande homem, há sempre uma grande mulher.
A companheira do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 76, ganhou destaque na campanha eleitoral com um papel até então inédito para esposas de candidatos à Presidência da República.
Ela está presente em atos pelo país, encontros com lideranças e reuniões com empresários. Nos bastidores, mobiliza artistas para jingles de campanha e encontros com Lula e atualiza a agenda dele, articulando com as novas militâncias negra, feminista e LGBTQIA+.
Nos comícios, Janja empunha o microfone e canta "Lula lá", jingle de 1989 para o qual produziu nova versão. Ela sorri, faz coração com as mãos e protagoniza beijos e momentos de carinho com o marido.
A postura de Janja, que tem reflexos na imagem de Lula em uma eleição marcada pela truculência, foi incorporada pela campanha petista. Virou um ativo eleitoral.
Setores do PT têm manifestado, contudo, preocupação em razão da exposição de Janja, sobretudo nas redes sociais onde é ativa: temem que ela seja um "caminho fácil" para ataques a Lula frente à pauta de costumes do adversário Jair Bolsonaro (PL).
Já interlocutores dela no PT dizem que esse incômodo ante sua postura independente tem como origem o machismo, exatamente por ela romper com o "primeiro-damismo" tradicional, em que as esposas permanecem em segundo plano.
Em agenda sem Lula no Rio, Janja rebateu críticas à sua postura na campanha. "Não tem mordaça na minha boca. No meu partido, mulher pode falar. Ninguém diz o que eu posso ou não falar", disse ela, que não respondeu aos pedidos de entrevista da reportagem.
O consenso é que Janja, com seu jeitão espontâneo, tornou-se pop e não há como restringi-la, dado seu livre acesso a Lula e à campanha.
O nome da socióloga vem sendo, entretanto, blindado, com recomendações claras para petistas e amigos também evitarem entrevistas ou comentários sobre suas ações. Os petistas veem-se portanto ante um paradoxo: o protagonismo de Janja virou uma espécie de vitrine da campanha e dos passos de Lula, o que também a torna possível vidraça.
Em seu discurso no 7 de Setembro, em Brasília, Jair Bolsonaro sugeriu a apoiadores que fizessem "comparações" entre Janja e a atual primeira-dama, que classificou como "uma princesa". "Não há o que discutir, uma mulher de Deus, família e ativa na minha vida, não é ao meu lado, não; muitas vezes ela está é na minha frente."
Devota de Iansã e amiga de artistas
As comparações já haviam começado em julho, quando, em postagem no Twitter, Janja rebateu ataques de Michelle Bolsonaro a religiões de matriz africana. "Eu aprendi que Deus é sinônimo de amor, compaixão e, sobretudo, de paz e de respeito. Não importa qual a religião e qual o credo. A minha vida e a do meu marido sempre foram e sempre serão pautadas por esses princípios", escreveu a socióloga.
Devota de Iansã e frequentadora de terreiros, ela nunca escondeu sua devoção a orixás como Oxum, Iemanjá, Ogum e Xangô. Numa dicotomia entre "boa" e "má" religião, bolsonaristas passaram a atacá-la, contrapondo-a à figura evangélica de Michelle.
Além da liberdade religiosa, Janja mantém discussões sobre direitos das mulheres. No entanto, a proximidade do tema tampouco a poupou de cobranças de ativistas do movimento negro nas redes sociais, quando ela postou foto com Francia Márquez, vice-presidente da Colômbia, cercada somente de mulheres brancas.
A boa relação de Janja com a classe artística culminou em seu ato mais midiático na pré-campanha: a criação de uma nova versão do jingle de Lula, com participações de Martinho da Villa, Chico César, a família de Gilberto Gil, Lenine, Pabllo Vitar, Duda Beat e Maria Rita, de quem Janja é fã e amiga próxima.
Toda essa articulação começou, contudo, bem antes do jingle. Em março, quando a cantora de funk Ludmilla apareceu em fotos ao lado de Lula, foi um alvoroço. Até então, Ludmilla era associada pelos fãs a Bolsonaro por não falar publicamente sobre suas preferências políticas.
O encontro dos dois foi também promovido por Janja. Ao saber que a cantora havia manifestado a pessoas próximas seu voto em Lula este ano, Janja viu ali uma oportunidade de, mais uma vez, dar um ar mais moderno à campanha. Com convite feito, Ludmilla e a esposa, Brunna Gonçalves, foram a um encontro de artistas com Lula na casa de Martinho da Vila, no dia 29 de março.
Outro apoio muito esperado pela campanha de Lula era o de Anitta. Após o assassinato de Marcelo Arruda, tesoureiro do PT em Foz do Iguaçu (PR), a cantora carioca declarou voto em Lula no primeiro turno. A resposta imediata de Janja foi: "Já pode sonhar com um dueto no TikTok?".
Desde então, ela tenta organizar um encontro presencial entre o ex-presidente e a cantora, que já trocam áudios pelo WhatsApp.
Críticos de Janja fora do PT afirmam que todo esse envolvimento dela com artistas é deslumbramento, uma espécie de "artista frustrada". Amigos, no entanto, rechaçam, e dizem que é apenas quem ela é.
Entre o Rio e uma cela no Paraná
Nascida em União da Vitória, no Paraná, em 27 de agosto de 1966, Janja cursou ciências sociais na UFPR (Universidade Federal do Paraná) nos anos 1990, deu aulas e, em 2003, foi contratada para trabalhar como socióloga de campo na hidrelétrica Itaipu Binacional.
Apesar do seu trabalho principal ser nas coordenações ligadas à energia e barragens — inclusive no diálogo com famílias atingidas —, ela se empenhava para trabalhar junto a setores que discutiam os direitos das mulheres.
Quem trabalhou com Janja afirma que ela sempre foi uma profissional "dinâmica e articulada", que não estava sob holofotes, mas sempre nos bastidores, viabilizando o que fosse necessário.
"Quando começamos a trabalhar juntas, fizemos uma campanha de enfrentamento à violência contra a mulher, e ela organizava reuniões, atividades. Ela tem muita facilidade com a articulação, o que facilitava o nosso trabalho", diz Maria Helena Guarezi, então diretora de Itaipu e hoje amiga pessoal — e madrinha de casamento — de Janja.
Além de trabalhar na Itaipu, Janja foi cedida por aproximadamente quatro anos à Eletrobras, no Rio de Janeiro. Na cidade "do coração", aproximou-se mais do Flamengo e Carnaval —duas paixões— e incluiu na rotina exercícios e passeios com a cachorrinha Paris na orla de Ipanema, bairro escolhido para morar por estar perto do trabalho e da praia.
Em 2016, voltou ao Paraná e, com o início do governo Michel Temer (MDB), após o impeachment de Dilma Rousseff (PT), começou a se sentir numa "geladeira" dentro de Itaipu.
Três anos depois, entrou no programa de demissão voluntária da companhia. A essa altura, cabeça e coração já estavam voltados ao então namorado e ex-presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, solto dias antes.
Na 'panelinha' do PT
Janja é filiada ao PT desde 1985, mas até antes do início do namoro com Lula suas aparições públicas eram raras e menções ao partido eram tímidas nas redes sociais.
Em novembro de 2017, a socióloga se aproximou do ex-presidente. O cupido do encontro foi o cantor Chico Buarque, hoje chamado por Janja de "dindo", que havia convidado Lula para jogar em seu time em uma partida de futebol do MST, na Escola Nacional Florestan Fernandes.
O namoro começou ali e, meses depois, Janja e Lula passaram o Carnaval de 2018 isolados em Maresias, litoral norte de São Paulo. A viagem aconteceu poucos dias após a condenação do ex-presidente em segunda instância na Lava Jato e foi vista pelo casal como um respiro em meio ao turbilhão.
Em março, Janja acompanhou Lula em suas caravanas pelo Sul do país em ao menos duas ocasiões, em Chapecó (SC) e em Foz do Iguaçu (PR). Antes de Lula se entregar à Polícia Federal, em 7 de abril de 2018, ela também esteve com ele na sede do sindicato dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo. Viveu ali, em suas palavras, algumas das cenas mais tristes da vida.
Na vigília Lula Livre, montada em frente à carceragem em Curitiba, Janja já chegou com status de primeira-dama. Foi acolhida imediatamente por Nicole Briones, da equipe de comunicação de Lula, pelo fotógrafo Ricardo Stuckert e pelo assessor do PT Marco Aurélio Santana Ribeiro, o Marcola.
Ao grupo, se juntou Neudicléia de Oliveira, do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), hoje uma das amigas mais próximas de Janja.
A "panelinha", como os amigos se chamam, esteve junta durante os 580 dias em que Lula ficou preso. Janja ajudava na organização e visitava o ex-presidente todas as quintas-feiras — "o melhor dia da semana", segundo ela.
A "panelinha" fez com que Janja também se aproximasse de amigos antigos de Lula e quadros históricos do PT. Com a manutenção da prisão de Lula, ela se engajou como pôde na campanha de Fernando Haddad à Presidência, enquanto mantinha suas funções na vigília.
À distância Lula manteve o hábito de lhe enviar flores em datas comemorativas. Não demorou muito para Janja se aproximar da primogênita de Lula, Lurian, da neta Bia e da bisneta Analua. Quando Lurian e Bia estavam em um ato, era ao lado de Janja que ficavam.
Durante os dias de prisão, Janja fazia contagem regressiva e escrevia cartas. Em uma delas, disse: "Eu vou estar do seu lado e seja qual for a vida que você decidir ter, eu vou estar vivendo com você. Construiremos nossa história".
Naquele momento, não havia perspectiva de soltura de Lula, muito menos da sua candidatura e posterior liderança nas pesquisas.
Depois que o ex-ministro Bresser Pereira anunciou em uma rede social que Lula estava vivendo um relacionamento, em maio de 2019, a imprensa chegou ao nome de Janja. A partir daí, ela começou a se colocar como companheira de Lula e representá-lo em eventos. Com a soltura, em novembro de 2019, o relacionamento virou definitivamente público: o casal se beijou em frente às câmeras, Janja passou a ser requisitada e começou a construção da personagem central da campanha, como se vê hoje.
'O amor contra o ódio'
Desde que se casou, em cerimônia reservada em maio, e passou a aparecer e discursar ao lado do marido, em palanques e eventos Brasil afora, o tom de Janja é de resgate do "amor" frente ao "ódio", associado à campanha de Jair Bolsonaro.
No final de julho, após os primeiros 10 minutos de discurso em Garanhuns (PE), terra natal do ex-presidente, um assessor deu a Janja um boné, que ela levou a Lula. "Amor", chamou, já colocando o acessório na cabeça dele. "Quem tem, cuida", disse um Lula sorridente à plateia, antes de retomar o discurso.
No Rio, também em julho, Lula reclamou de sede enquanto discursava. Segundos depois, Janja levou até o marido uma garrafa e brincou: "Queria da minha mãozinha, né?".
A brincadeira tem um fundo de verdade: com a crescente preocupação com a segurança de Lula, a presença de Janja é vista como mais uma barreira de proteção a eventuais problemas — o que ele come, o que ele bebe, tudo passa primeiro por ela.
Se uma reunião dura mais que o previsto, outra irá durar menos: Janja é inegociável com o tempo reservado ao almoço e ao descanso do ex-presidente, por exemplo. Esses gestos são vistos com bons olhos, já que, na campanha que rendeu o primeiro mandato, Lula tinha 20 anos a menos. Hoje, avaliam petistas, é preciso mais cuidado com o candidato — que odeia ser chamado de "velhinho", de acordo com a esposa.
Nas redes sociais, onde expõe aos 155 mil seguidores sua rotina de treinamentos físicos, conta o que Lula está fazendo, publica vídeos dançando, fotos com amigos e fala de futebol e de novela, Janja concorda com quem chama de "sem propósito" comentários que a comparam com Marisa Letícia e afirmam que ela deveria ser "mais discreta".
Enquanto tenta dar novo significado à imagem de Lula e ao próprio termo "primeira-dama", Janja conquista espaço em um eventual terceiro mandato de Lula. O cargo que poderia ocupar? Nem o presidente sabe, como confessou em entrevista ao UOL: "Eu não perguntei para ela. Ela é uma jovem senhora que tem pensamento próprio, cabeça boa, às vezes melhor do que a minha. Ela terá a liberdade de pensar o que quer fazer para me ajudar".
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