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'Perdi meu marinheiro', diz Uiara, viúva do ativista ambiental Ferrugem

Uiara Duarte, viúva do ativista ambiental Ferrugem - Yasmin Dib/UOL
Uiara Duarte, viúva do ativista ambiental Ferrugem
Imagem: Yasmin Dib/UOL

Lucas Veloso

Colaboração para o TAB, de São Paulo

21/10/2022 04h01

Às margens da Billings, um dos maiores reservatórios de água da região metropolitana de São Paulo, no distrito do Grajaú, Uiara Duarte, 40, procura uma sombra e comenta com o amigo William Silva, 37: agora ela precisa "matar dois meses" de seu calendário, agosto e setembro, devido a mortes muito próximas — em 11 de setembro de 2012, perdeu o filho, Miguel, de câncer; em 1º de agosto de 2022, o marido, Ferrugem.

Uiara é viúva do ativista ambiental Adolfo Souza Duarte, 41, conhecido como Ferrugem, presidente da ONG Meninos da Billings, que promove ações e atividades de conscientização ecológica. Ferrugem morreu enquanto levava jovens para passear na represa. O corpo foi encontrado na manhã de 6 de agosto.

Ferrugem fez aniversário um dia antes de desaparecer na represa. Na manhã de 1º de agosto, ele saiu cedo de casa. Vestia jeans, o que fez Uiara pensar que ele iria ao parque Guarapiranga, onde era responsável por funções de um cargo comissionado na Secretaria do Verde e Meio Ambiente — ela estranhou pois, para atividades aquáticas, como passeios, ele costumava sair de shorts.

À tarde, o ativista foi para a Prainha, área de lazer no Grajaú frequentada por moradores, ouvindo música e festejando, e de onde partem passeios pela Billings. Tinha um passeio agendado, que foi desmarcado de última hora. Decidiu ficar na Prainha pelo movimento dos bares. "Ó, eu vou ficar", avisou a Uiara, por mensagem.

Dali, Ferrugem levou quatro jovens para passear — Vithorio Alax Silva Santos, 23, Mauricius da Silva, 23, Katielle Souza Santos, 28, e Mikaelly da Silva Souza Moreno, 19. Em depoimentos à polícia, o grupo afirmou que o ativista se afogou após a embarcação passar por um solavanco.

Adolfo Souza Duarte, de 41 anos, conhecido como Ferrugem, é presidente da ONG Meninos da Billings - Reprodução/Jornal da Record - Reprodução/Jornal da Record
Imagem: Reprodução/Jornal da Record

"O barqueiro caiu na água", diziam, no dia. Moradores se aglomeraram em busca de informações e tentativas de ajudar. Conseguiram embarcações e foram à represa, mas avançando um tanto sem rumo, já que os jovens não souberam dizer o caminho que foi feito ou pistas de onde teria caído o ativista.

Por volta das 20h18, a mãe de Ferrugem recebeu ligações dizendo que algo aconteceu. Na hora, Uiara mandou uma mensagem ao marido dizendo "oi". Não teve tique azul.

Ela então pegou o carro e dirigiu até a Prainha. Algo aconteceu outras vezes, lembra ela, um acidente leve, um machucado durante uma atividade. "Nunca pensei que fosse morte. Morrer afogado aqui?, ele tinha conhecimento, de dia, de noite, várias vezes, sem luz, a gente navegando, ele sabia o braço que podia entrar ou não", diz.

Uiara Duarte e família - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Junto da família e de amigos, Uiara passou a noite na represa. As buscas independentes duraram até às 3h da manhã. Ferrugem conhecia as águas da área, lembrava ela, se tivesse caído perto de margens, saberia nadar até ser avistado. Os bombeiros retomaram as buscas horas depois, à luz do dia.

Depois de encontrado, o corpo foi periciado. O laudo mais recente da Polícia Civil indica que houve briga antes de Ferrugem cair na água — os quatro jovens foram detidos no dia 24 de agosto e, nesta semana, eles foram indiciados pela Polícia Civil por suspeita de homicídio triplamente qualificado. Ferrugem teve um velório rápido, que pôs fim à busca pelo ativista, enterrado no cemitério Parque dos Girassóis, em Parelheiros.

Uiara Duarte, viúva do ativista ambiental Ferrugem - Yasmin Dib/UOL - Yasmin Dib/UOL
Imagem: Yasmin Dib/UOL

DJ, ativista e 'capitão'

Uiara conheceu Ferrugem no colegial — ele, um jovem DJ conhecido nas chácaras nas redondezas. Namoraram e, uns meses depois, decidiram morar juntos. Na época, ela com 18 e ele com 19 anos. Desde então, nunca se separaram e, neste ano, celebrariam 20 anos juntos.

DJ Ferrugem se tornou educador e mobilizador social. Fundou a Remada da Quebrada para levar crianças para navegar pelas águas da represa, queria conscientizá-las sobre a preservação ambiental. Dali surgiu a ONG Meninos da Billings.

ONG Meninos da Billings, do ativista ambiental Ferrugem - Yasmin Dib/UOL - Yasmin Dib/UOL
Imagem: Yasmin Dib/UOL

Uiara empreende no "home care", atendimento de beleza no endereço desejado por quem a contrata. Por anos investiu tempo, dinheiro e dedicação para cumprir a agenda com a cartela de clientes, mas há cerca de um mês tudo mudou: após perder Ferrugem, assumiu a presidência da ONG e conta que se viu assediada por jornalistas sensacionalistas e atribulada entre reuniões com autoridades, além do dia a dia na casa, junto à filha Helena, 15. "Não parei."

Às vezes, ela se pega pensando que o marido vai voltar. Como ele saía cedo para atividades nos parques e só retornava à noite, ficava um tempo sem ver a família direito. "Durante o dia, sempre acho que ele vai voltar. Ou que ele está viajando. Que isso não aconteceu."

Ferrugem, diz Uiara, não sabia dizer "não" e teme que talvez isso tenha lhe custado a vida. "No dia, devia ter negado. 'Não, hoje eu não faço passeio'", cita. "E assim, perdemos nosso barqueiro, nosso marinheiro."

Para o amigo William, Ferrugem era capitão. No mar, um capitão é a maior autoridade na embarcação, seja ela qual for, e é sua responsabilidade garantir a segurança e o bem-estar de todos.

Na Billings e nas ruas do bairro, é assim que seu legado é lembrado: ao ativista é atribuída a articulação para conquistas coletivas como o Parque Residencial dos Lagos, e os grafites e as lixeiras da praça dentro do parque, como melhorias para os moradores, diz William.

Ferrugem e William se conheceram durante uma atividade no bairro e se tornaram melhores amigos. "Ele se apresentou dizendo que estava com a mão suja de terra. Não me importei, sujei junto", lembra ele, vice-presidente da ONG Meninos da Billings.

A organização vai continuar ativa. William precisa atrair mais aliados para preservar a memória do ativista, seja com a mão nas papeladas que estão lidando, na terra ou nas embarcações que, com ou sem mastro, devem navegar com as histórias do capitão.

Uiara Duarte, viúva do ativista ambiental Ferrugem - Yasmin Dib/UOL - Yasmin Dib/UOL
Imagem: Yasmin Dib/UOL