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Professor motociclista socorre os atrasados do Enem de graça no Recife

O professor e motociclista Danúbio Santos criou o Socorrefera para resgatar e levar a seu destino alunos periféricos atrasados para o Enem - Ricardo Labastier/UOL
O professor e motociclista Danúbio Santos criou o Socorrefera para resgatar e levar a seu destino alunos periféricos atrasados para o Enem Imagem: Ricardo Labastier/UOL

Jorge Cosme

Coraboração para o TAB, de Recife (PE)

21/11/2022 13h18

"Um minuto!", grita alguém enquanto um motociclista acelera com uma passageira no campus da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), no Recife. "Um minuto era tudo o que eu tinha, um minuto era tudo o que eu precisava", diz a legenda do vídeo de apenas quatro segundos, publicado em 8 de novembro de 2017, no perfil do Instagram de Danúbio Santos.

Dois anos depois, em novembro de 2019, Danúbio se filmaria com olhos lacrimejantes e capacete na cabeça. "Pelo sexto ano consecutivo, ninguém que subiu na garupa daquela moto perdeu a prova", comemorava. Em janeiro de 2021, ele celebrou outro feito. "Estava lá a linha de fiscais na frente, prontinhos para dizer que estava tudo fechado e que ela não ia conseguir. A gente entregou ela pontualmente às 13h, quando o portão já estava prontinho para ser fechado. Eu pensei que não ia conseguir. Misericórdia, tenho coração para isso mais não, minha gente."

Ano após ano, Danúbio vai preenchendo sua conta do Instagram com relatos e registros de suas aventuras nos dias de aplicação das provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), quando sai motorizado às ruas, oferecendo o serviço Socorrefera. Desde 2013, o professor de história e filosofia realiza a iniciativa gratuitamente, circulando de moto pelos principais locais de prova da capital pernambucana para fazer com que candidatos atrasados cheguem antes do fechamento dos portões.

Neste ano, a tradição se manteve.

Professor motociclista do Enem - Ricardo Labastier/UOL - Ricardo Labastier/UOL
Imagem: Ricardo Labastier/UOL

Na garupa de Maria Infâmia

10h30 da manhã de 20 de novembro de 2022. No quintal de uma casa no bairro do Ibura, zona sul do Recife, Danúbio joga água e sabão na sua moto, realçando o brilho da lataria. "Quase pronta, não é, boneca?", diz ele, baixinho. A "boneca" tem nome: Maria Infâmia. O apelido da Suzuki Intruder 125 ano 2007 do professor segue o mesmo padrão de suas três filhas: Maria Júlia, 12 anos, Maria Helena, 11, e Maria Luiza, 4.

A mãe das meninas, a neuropsicopedagoga Juliana Aguiar, é uma entusiasta das caronas do marido. "Quando ele veio com essa ideia eu achei massa, porque eu também fui aluna de escola pública e passei por situações como as que ele vê", explica ela sobre o Socorrefera. "Mas logo no começo eu ficava preocupada sobre como o público ia reagir, porque ninguém fazia o que ele estava fazendo."

O educador diz que a iniciativa recebeu críticas. "Algumas pessoas não aceitam que eu esteja ajudando adolescentes que estariam sendo descuidados. Dizem 'se fosse para um show de Justin Bieber eles acampariam na porta'. Eles não entendem que isso é recorte de classe, que o adolescente que vai para o show de Justin Bieber não está preocupado com o Enem."

Professor motociclista do Enem - Ricardo Labastier/UOL - Ricardo Labastier/UOL
A neuropsicopedagoga Juliana Aguiar, companheira de Danúbio, com uma de suas filhas, Maria Luiza
Imagem: Ricardo Labastier/UOL

'Esse lugar é seu'

Danúbio argumenta que seu projeto é voltado principalmente para atender jovens oriundos da escola pública. Suspeita que, ao longo de todos esses anos, nunca tenha subido na garupa da sua moto um egresso da rede privada. "Dizem assim: 'A pessoa tinha que tirar um dia para ir antes ao local de prova sacar onde o prédio é'. Meu irmão, explique isso para um menino de 16 anos que tem vergonha de entrar na UFPE porque ele acredita que aquele lugar não é dele", explica o professor motociclista.

"Quantos alunos eu tenho aí em pré-vestibular que acham que são impostores? Depois de todo assessoramento intelectual, que é a aula para entrar na universidade, ainda fazemos um assessoramento psicológico para dizer a ele 'cara, a vaga é sua, esse lugar é seu'." Danúbio elenca os principais motivos que acredita estar por trás dos atrasos: "Primeiro, problema financeiro. Estou em sala de aula desde 2008, trabalho diretamente com a periferia. E vejo muitas pessoas que não têm condições financeiras de fazer esse deslocamento. A realidade que não é a nossa também é uma realidade."

Danúbio continua: "Alienação parental. Pais, mães, tios e avós desistem do fera. Dizem que não vão levar, falam para eles buscarem outros parentes. O jovem já está nervoso, tem apenas 16, 17 anos e, em vez da família ser o ponto de apoio, ela coloca o fera para baixo."

E completa: "Terceiro fator: os jovens dessa geração não estão acostumados a sair de casa, vivem via Google, Waze. Quando chega o dia de sair real, eles se enrolam, ficam perdidos", diz. Ele também cita o caso de mães que não conseguem deixar os filhos com alguém no domingo de prova e acabam se atrasando e destaca o fator deslocamento. "O fera até sai de casa cedo, mas aí o ônibus não passa. E se passa ainda tem o risco de quebrar."

Nos dias de prova, o professor trafega sempre pela UFPE, na zona oeste da capital pernambucana, nos arredores do Centro Universitário Brasileiro (Unibra) e da Universidade Católica de Pernambuco, na área central do Recife, antes de voltar para a Federal. No caminho, vai abordando pessoas que estão correndo ou com semblante confuso. Veste sempre a camisa verde clara do projeto, com o objetivo de passar maior segurança ao estudante que não o conhece. E também divulga seu contato nas redes sociais, para que possa ser acionado em outras localidades.

Professor motociclista do Enem - Ricardo Labastier/UOL - Ricardo Labastier/UOL
Imagem: Ricardo Labastier/UOL

'Postura desumana'

O ano mais difícil foi 2016, quando teve que transportar mais de 20 pessoas. Apesar do rally, Danúbio segue invicto: todos que subiram naquela garupa conseguiram entrar no local de prova.

Nos últimos anos, as requisições por socorro diminuíram, o que ele atribui à queda no número de inscritos. Enquanto em 2016 foram 8,6 milhões de inscritos em todo o país, a última edição do Enem registrou apenas 3,3 milhões de inscrições -- segundo menor número desde 2005. O professor credita o fato ao atual governo federal, que estaria desincentivando os jovens a fazer faculdade.

Ele lembra de uma declaração do presidente Jair Bolsonaro em 2018, segundo a qual o jovem brasileiro tem "tara" por formação superior, e uma fala do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, sugerindo que universidades nordestinas não deviam ensinar filosofia e sociologia, mas priorizar o ensino da agronomia.

Outra coisa que incomoda o educador é o holofote dado aos atrasados do Enem — quando frequentemente as pessoas riem de quem não consegue chegar a tempo. Ele lembra, por exemplo, de rapazes que em 2018 trouxeram cadeiras de praia e abriram cervejas em um local de prova do Recife para zombar de quem chegava tarde. Há registros de práticas semelhantes também em São Paulo e em Brasília.

"Isso parte de gente que parece que nunca foi jovem na vida, que não entende que aos 16, 17 anos, não se está totalmente organizado na questão da maturidade. Você não tem ideia do que o outro está passando para estar em uma situação de atraso. Esses alunos são cobrados, recebem pressão familiar. Muitos não conseguem dormir na semana da prova. Essa é uma postura muito hostil, desumana", afirma Danúbio.

Danúbio, que dá aula em curso preparatório, diz haver uma chance grande de parar de trabalhar com o Enem. "É possível que eu me afaste, mas mesmo assim não pretendo abandonar o Socorre", ressalta.

"Não sei o que eu ganho com isso, acho que não tem nome. Talvez gratidão. Alguns descem da moto sem dizer nem obrigado, mas eu entendo perfeitamente. Não tenho nem como pegar o nome da pessoa. Eu só pergunto onde é o local de prova e depois é aceleração em cima de aceleração."

Professor motociclista do Enem - Ricardo Labastier/UOL - Ricardo Labastier/UOL
Imagem: Ricardo Labastier/UOL

Sonho de infância

Quando deu sua primeira "aceleração" naquela moto, após comprá-la de um policial militar em 2015, Danúbio lembra que chorou feito menino. Ter uma moto era sonho de infância. Ela foi paga com a ajuda do pai e de um amigo que passou a fazer o Socorrefera com ele nos dois primeiros anos.

Para um veículo datado de 2007, Maria Infâmia está bastante conservada. É possível observar alguns pontos de ferrugem, mas a manutenção de um veúculo com 15 anos como este também não é fácil. A família planeja comprar outra moto. "A gente pretende adquirir uma nova, mas não existe no nosso planejamento se desfazer dessa. Eu levei minha esposa para parir com essa moto. Maria Luiza praticamente nasceu em cima dela. Toda a vizinhança conhece, é tratada feito filha também", conta.

Que o digam os feras socorridos pelo professor motociclista.

Às 12h48 da tarde de 20 de novembro de 2022. Um Uber deixa o padeiro Omer Torres, 23, na UFPE. Omer ainda precisava se deslocar até o prédio em que sua prova seria aplicada, então começou a correr. Ele mora perto da universidade, mas se atrapalhou com o horário e, quando pediu o carro por aplicativo, houve grande demora até que um motorista aceitasse a corrida.

Já perdendo o fôlego, o padeiro percebeu uma moto se aproximando. "Aí ele aparece falando que faltavam dez minutos para fechar os portões e que eu precisava me apressar", lembra Omer sobre Danúbio. "Ele ofereceu ajuda, disse que me levava lá e não precisava pagar nada. Eu estava com medo de não conseguir, então aceitei. Esse Enem era de muita importância para mim."

Omer Torres já cursou ciências biológicas, mas abandonou no quinto período. Agora que deslanchou trabalhando como padeiro, pretendia cursar gastronomia e se especializar na área. Montado na Maria Infâmia, conseguiu fazer a prova. Segundo conta, deu tudo certo.