'Os sons da madeira': jovem organeiro constrói instrumentos para a Osesp

Numa rua de mão única do bairro do Cursino, em São Paulo, a chuva fina batia na parte inferior da porta de aço de enrolar de uma oficina fechada. Ela protegia do aguaceiro o lado de dentro da marcenaria, onde, ao lado de ferramentas e pilhas de tábuas de madeira inteiras e cortadas, um órgão repousava.
Durante o ano, em concertos na Sala São Paulo, o instrumento, um modelo positivo, acompanhou corais em igrejas e integrou a Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo). O descanso na oficina seria breve, pois a agenda de 2023 promete. Foi uma satisfação para o organeiro — profissional que fabrica, repara e afina órgãos — Eduardo Oliveira, 27, ver uma obra que fez com as próprias mãos trazer harmonia à música barroca e clássica em noites de gala e cerimônias solenes.
Caminho tortuoso
Mineiro de Santa Rita do Sapucaí, Eduardo tampouco imaginava, anos atrás, que passaria seus dias construindo, afinando, consertando e restaurando instrumentos desse tipo. Ele foi um adolescente como tantos outros, que não sabia o que fazer da vida ao terminar o ensino médio. Quis cursar engenharia, como os irmãos, para agradar ao pai. Mas a profissão não era para ele. Seis meses depois, largou a faculdade.
Prestou outro vestibular, desta vez para o curso de Composição da Unesp (Universidade Estadual Paulista). Também não era pra ele. Mudou então para Regência, na mesma instituição. Outra escolha desacertada. Foi quando focou nas aulas complementares, obrigatórias: piano ou órgão. "Lembro exatamente do dia em que entrei na sala para fazer a primeira aula de órgão. Aquele negócio gigante. Gente do céu! Isso é um órgão. Que loucura!" Quando tocou no teclado para sentir a sensação, suas dúvidas terminaram.
Já estava fazendo graduação em órgão, em 2014, quando surgiu a oportunidade de acompanhar a orquestra, o coro e o padre que cantava no Pateo do Collegio. Ficou lá tocando por quatro anos.
'Vai devagarzinho'
Foi quando se deparou com um problema no órgão grande e antigo da Unesp — construído para ser usado na inauguração da Catedral da Sé, em 1954, mas que não ficou pronto a tempo. Até então, quem cuidava dele era um velho organeiro alemão que morava no Rio Grande do Sul. Certa vez, uma nota dó parou de funcionar e o senhor não pôde vir a São Paulo. Sabendo que Eduardo era técnico em eletrônica, uma professora o encorajou a tentar resolver o problema.
"Você consegue", disse Dorotea Kerr. "Olha o tamanho do instrumento", respondeu Eduardo, assustado. "Tenta", a docente insistiu. "E se estragar?", questionou. "Vai devagarzinho".
Literalmente dentro do instrumento, Eduardo encontrou uma agulhinha quebrada e a soldou. Depois, foi se arriscando a consertar outras avarias que apareciam. A profissão de verdade ele encontrou ali.
Talento prático
Embora os conhecimentos como técnico em eletrônica, os conteúdos da internet e mesmo as aulas que teve de música tenham sido úteis, Eduardo aprendeu a consertar órgãos na prática. Mas queria se especializar. Por isso partiu para Petersfield, no interior da Inglaterra, para trabalhar na Organ Design, empresa incumbida de restaurar o órgão de quase 200 anos da St. Mary's Church. O instrumento estava com uma rachadura na parte da frente e vazava ar de uma nota para outra. A prova de que ele era realmente antigo estava no registro de uma reforma, realizada em 1870. Eduardo fez o trabalho junto com o organeiro veterano.
Hoje, o mineiro é o mais jovem dos três organeiros em atividade no Brasil. Os outros dois estão em Lindóia (SP) e Porto Alegre. Quando revisita o passado, tudo faz sentido. O pai, que saiu da roça para a cidade pequena antes do nascimento dele, era um sanfoneiro de mão cheia, que o ensinou a tocar. Além de forró e música tradicional gaúcha, a família sintonizava no rádio de pilha emissoras da Itália e da Alemanha que tocavam música clássica.
Além das melodias, Eduardo gostava de inventar. Como o pai, que pedreiro de profissão que construiu sozinho a casa em que eles moravam. A mãe, além de cantora de coral, costurava a roupa de toda a família. Desde os 5 anos o menino fazia seus próprios brinquedos. Certo dia, lembra, pegou uma tábua, linha de pesca e pregos, e tentou montar uma guitarra. Não funcionou. Em outra ocasião, encasquetou de construir um violão com uma lata de tinta de 18 litros. O som saiu rachado. Mesmo assim, brincando, já lapidava suas habilidades futuras.
Alquimista de sons
Quando conheceu o ofício, não achou difícil deixar de ser organista para virar organeiro. "Acho muito mais interessante do que tocar", diz. Mas não perdeu a mão — e, quando se senta ao órgão, seus dedos deslizam pelas notas com precisão e suavidade. Prefere, no entanto, a alquimia de extrair sons da madeira: a melodia doce da caixeta, o timbre agressivo do cedro, o brilhante e agudo do pau-marfim. O mix utilizado por ele inclui muitas outras, como tauari e imbuia — tudo de acordo com o interesse e o bolso do cliente.
Mesmo assim, mantém a música próxima e, nos fins de semana, acompanha na sanfona a cantora paraibana de forró de pé de serra Diana do Sertão.
Os preços são muito variados e, facilmente, um órgão pode custar o preço de um carro. Além disso, muitas vezes um instrumento novo feito por Eduardo custa menos do que a restauração de um antigo. "Órgão de tubo é um patrimônio", derrete-se Eduardo. "Foi feito para durar centenas de anos. É tudo grosso e pesado. Se estragar, dá para consertar. E é mais barato consertar uma peça que estragou tocando do que um instrumento inteiro que estragou por ficar abandonado", ensina.
Os percalços do positivo
Os formatos também são diversos. Ele produz desde instrumentos robustos que chegam a pesar 800 kg até o positivo, de 80 kg. Eduardo começou a construí-lo em 2019, quando voltou da Inglaterra e mostrou o projeto a um professor que o autorizou a usar a marcenaria do campus.
Foi pego de surpresa pela pandemia. Quando ele corria para terminar o órgão inacabado que acompanharia uma ópera na Catedral da Sé em 28 de março de 2020, morreu de covid-19, no dia 25, o maestro Martinho Lutero, um de seus maiores incentivadores. No dia seguinte, a regente Naomi Munakata foi vítima da mesma doença. A Unesp fechou as portas com o órgão e as ferramentas de Eduardo dentro. Só foi autorizado a voltar lá quatro meses depois.
Levou o órgão positivo para Santa Rita do Sapucaí para concluí-lo. No dia 28 de abril deste ano recebeu o convite para que o instrumento acompanhasse a orquestra e o coral da Osesp na Sala São Paulo, num programa que incluía um Ave Verum e a Missa da Coroação de Mozart. Foi um sucesso.
Hoje, cada órgão que constrói é motivo de orgulho para Eduardo. "Eu ouço o órgão tocar e consigo me lembrar de flashes dos momentos da construção que influenciaram aquele som. E penso que aquele monte de madeira que está lá tocando fui eu que cortei."
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