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'Os sons da madeira': jovem organeiro constrói instrumentos para a Osesp

Eduardo Oliveira, 27, achava que ia ser engenheiro; depois, músico; acabou virando um dos três únicos organeiros em atividade no país - Fernando Moraes/UOL
Eduardo Oliveira, 27, achava que ia ser engenheiro; depois, músico; acabou virando um dos três únicos organeiros em atividade no país Imagem: Fernando Moraes/UOL

Sibele Oliveira

Colaboração para o TAB, de São Paulo

13/12/2022 04h01

Numa rua de mão única do bairro do Cursino, em São Paulo, a chuva fina batia na parte inferior da porta de aço de enrolar de uma oficina fechada. Ela protegia do aguaceiro o lado de dentro da marcenaria, onde, ao lado de ferramentas e pilhas de tábuas de madeira inteiras e cortadas, um órgão repousava.

Durante o ano, em concertos na Sala São Paulo, o instrumento, um modelo positivo, acompanhou corais em igrejas e integrou a Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo). O descanso na oficina seria breve, pois a agenda de 2023 promete. Foi uma satisfação para o organeiro — profissional que fabrica, repara e afina órgãos — Eduardo Oliveira, 27, ver uma obra que fez com as próprias mãos trazer harmonia à música barroca e clássica em noites de gala e cerimônias solenes.

O jovem organeiro da orquestra - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Caminho tortuoso

Mineiro de Santa Rita do Sapucaí, Eduardo tampouco imaginava, anos atrás, que passaria seus dias construindo, afinando, consertando e restaurando instrumentos desse tipo. Ele foi um adolescente como tantos outros, que não sabia o que fazer da vida ao terminar o ensino médio. Quis cursar engenharia, como os irmãos, para agradar ao pai. Mas a profissão não era para ele. Seis meses depois, largou a faculdade.

Prestou outro vestibular, desta vez para o curso de Composição da Unesp (Universidade Estadual Paulista). Também não era pra ele. Mudou então para Regência, na mesma instituição. Outra escolha desacertada. Foi quando focou nas aulas complementares, obrigatórias: piano ou órgão. "Lembro exatamente do dia em que entrei na sala para fazer a primeira aula de órgão. Aquele negócio gigante. Gente do céu! Isso é um órgão. Que loucura!" Quando tocou no teclado para sentir a sensação, suas dúvidas terminaram.

Já estava fazendo graduação em órgão, em 2014, quando surgiu a oportunidade de acompanhar a orquestra, o coro e o padre que cantava no Pateo do Collegio. Ficou lá tocando por quatro anos.

O jovem organeiro da orquestra - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

'Vai devagarzinho'

Foi quando se deparou com um problema no órgão grande e antigo da Unesp — construído para ser usado na inauguração da Catedral da Sé, em 1954, mas que não ficou pronto a tempo. Até então, quem cuidava dele era um velho organeiro alemão que morava no Rio Grande do Sul. Certa vez, uma nota dó parou de funcionar e o senhor não pôde vir a São Paulo. Sabendo que Eduardo era técnico em eletrônica, uma professora o encorajou a tentar resolver o problema.

"Você consegue", disse Dorotea Kerr. "Olha o tamanho do instrumento", respondeu Eduardo, assustado. "Tenta", a docente insistiu. "E se estragar?", questionou. "Vai devagarzinho".

Literalmente dentro do instrumento, Eduardo encontrou uma agulhinha quebrada e a soldou. Depois, foi se arriscando a consertar outras avarias que apareciam. A profissão de verdade ele encontrou ali.

O jovem organeiro da orquestra - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Talento prático

Embora os conhecimentos como técnico em eletrônica, os conteúdos da internet e mesmo as aulas que teve de música tenham sido úteis, Eduardo aprendeu a consertar órgãos na prática. Mas queria se especializar. Por isso partiu para Petersfield, no interior da Inglaterra, para trabalhar na Organ Design, empresa incumbida de restaurar o órgão de quase 200 anos da St. Mary's Church. O instrumento estava com uma rachadura na parte da frente e vazava ar de uma nota para outra. A prova de que ele era realmente antigo estava no registro de uma reforma, realizada em 1870. Eduardo fez o trabalho junto com o organeiro veterano.

Hoje, o mineiro é o mais jovem dos três organeiros em atividade no Brasil. Os outros dois estão em Lindóia (SP) e Porto Alegre. Quando revisita o passado, tudo faz sentido. O pai, que saiu da roça para a cidade pequena antes do nascimento dele, era um sanfoneiro de mão cheia, que o ensinou a tocar. Além de forró e música tradicional gaúcha, a família sintonizava no rádio de pilha emissoras da Itália e da Alemanha que tocavam música clássica.

Além das melodias, Eduardo gostava de inventar. Como o pai, que pedreiro de profissão que construiu sozinho a casa em que eles moravam. A mãe, além de cantora de coral, costurava a roupa de toda a família. Desde os 5 anos o menino fazia seus próprios brinquedos. Certo dia, lembra, pegou uma tábua, linha de pesca e pregos, e tentou montar uma guitarra. Não funcionou. Em outra ocasião, encasquetou de construir um violão com uma lata de tinta de 18 litros. O som saiu rachado. Mesmo assim, brincando, já lapidava suas habilidades futuras.

O jovem organeiro da orquestra - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Alquimista de sons

Quando conheceu o ofício, não achou difícil deixar de ser organista para virar organeiro. "Acho muito mais interessante do que tocar", diz. Mas não perdeu a mão — e, quando se senta ao órgão, seus dedos deslizam pelas notas com precisão e suavidade. Prefere, no entanto, a alquimia de extrair sons da madeira: a melodia doce da caixeta, o timbre agressivo do cedro, o brilhante e agudo do pau-marfim. O mix utilizado por ele inclui muitas outras, como tauari e imbuia — tudo de acordo com o interesse e o bolso do cliente.

Mesmo assim, mantém a música próxima e, nos fins de semana, acompanha na sanfona a cantora paraibana de forró de pé de serra Diana do Sertão.

Os preços são muito variados e, facilmente, um órgão pode custar o preço de um carro. Além disso, muitas vezes um instrumento novo feito por Eduardo custa menos do que a restauração de um antigo. "Órgão de tubo é um patrimônio", derrete-se Eduardo. "Foi feito para durar centenas de anos. É tudo grosso e pesado. Se estragar, dá para consertar. E é mais barato consertar uma peça que estragou tocando do que um instrumento inteiro que estragou por ficar abandonado", ensina.

O jovem organeiro da orquestra - Isadora Vitti/Divulgação - Isadora Vitti/Divulgação
Imagem: Isadora Vitti/Divulgação

Os percalços do positivo

Os formatos também são diversos. Ele produz desde instrumentos robustos que chegam a pesar 800 kg até o positivo, de 80 kg. Eduardo começou a construí-lo em 2019, quando voltou da Inglaterra e mostrou o projeto a um professor que o autorizou a usar a marcenaria do campus.

Foi pego de surpresa pela pandemia. Quando ele corria para terminar o órgão inacabado que acompanharia uma ópera na Catedral da Sé em 28 de março de 2020, morreu de covid-19, no dia 25, o maestro Martinho Lutero, um de seus maiores incentivadores. No dia seguinte, a regente Naomi Munakata foi vítima da mesma doença. A Unesp fechou as portas com o órgão e as ferramentas de Eduardo dentro. Só foi autorizado a voltar lá quatro meses depois.

Levou o órgão positivo para Santa Rita do Sapucaí para concluí-lo. No dia 28 de abril deste ano recebeu o convite para que o instrumento acompanhasse a orquestra e o coral da Osesp na Sala São Paulo, num programa que incluía um Ave Verum e a Missa da Coroação de Mozart. Foi um sucesso.

Hoje, cada órgão que constrói é motivo de orgulho para Eduardo. "Eu ouço o órgão tocar e consigo me lembrar de flashes dos momentos da construção que influenciaram aquele som. E penso que aquele monte de madeira que está lá tocando fui eu que cortei."