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Trombadas

O Pix da confiança de Wesley

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

08/12/2022 04h01

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Oi, tudo bem? Posso ter um minutinho da sua atenção? Meu nome é Wesley. Eu sou pai dessa família. Minha esposa Juliana. Catarina, minha filha de dois ano e meio. Clarice, minha filha de um aninho e meio. Eu fiquei desempregado e o jeito mais honesto que encontrei de sustentar a minha família foi vendendo paçoquinha no farol. É um kit com dez paçoquinhas. Se o senhor não gostar de paçoquinha eu tenho mais duas opções: bombom Sonho de Valsa e bombom Ouro Branco. Custa R$ 10 qualquer kit. E sabendo que ninguém mais anda com dinheiro, eu desenvolvi o Pix da confiança. Não precisa pagar agora. Se quiser e puder me ajudar, o senhor leva e me paga quando chegar em casa.

Cara, se eu disser que não levei nenhum calote até agora você acredita? Nunca deixei de receber de ninguém. Nunca. Tem pessoas que pagam até mais, pra falar a verdade. Ih, abriu, ó lá. Me chama no zap, esse mesmo número do Pix, aí a gente combina de conversar melhor. Brigado pela ajuda. Tchau, vai com deus, tchau, tchau, tchau.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Opa. Entra. Fica à vontade. Aceita uma água? Então, agora dá pra te mostrar com calma no meu celular. Olha aqui. Pix de R$ 12, de R$ 15 é coisa normal, tá vendo? R$ 20, ó, R$ 30. Mas tem Pix de R$ 50 também. Pessoa leva um kit e me deposita R$ 50. Ontem eu recebi Pix até uma e meia da manhã, foi o último. Cara, faz seis meses. Sim, já tinha acontecido antes. O diferente dessa vez foi que, além do emprego, eu acho que perdi a perspectiva de arrumar outro. Pra piorar, uma semana depois a minha esposa foi demitida também. Eu sou formado em fisioterapia, mas sempre fui da área comercial. Trabalhava numa agência de propaganda. E a Juliana é do marketing. A nossa vida estruturadinha, cara, as meninas na escola, a gente pagando prestação de dois apartamentos e de repente, porra, e agora?, como é que eu faço? As nossas economias tinham ido pra dar entrada nos apês, um deles tá até hoje pra alugar, mas não aluga, e é nessa hora que a gente entende o que é sufoco. As contas chegando e eu sem ter como pagar. Fiquei desesperado.

Primeiro, um amigo ajudou a gente. Ele tem uma empresa de e-commerce. Perdeu o emprego no começo da pandemia e começou a vender máscaras de pano que a mãe dele costurava. Cresceu e hoje ele vende de penico a asa de avião. Se tem preço e fornecedor, ele vende. Tudo pela internet. Então ele me chamou pra agregar fornecedores, negociar com eles pra comprar melhor e vender melhor. E me paga comissão baseada nas negociações que eu faço. Você não entende nada de vendas, né?

— Caramba! Tá tão na cara assim?

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Vou simplificar pra você: o segredo da área comercial não é vender, é comprar. Você precisa comprar bem pra vender bem. Vender bem, lucro maior, entende? Lucro você sabe o que é? Então. Eu tenho experiência nisso, trabalhei a vida inteira de vendedor, vendendo cigarro, sorvete, seguro, cartão de crédito, plano de saúde. É a minha praia. Vou te dar um exemplo. Esse amigo vende alho descascado. Sabe quanto custa 1 quilo de alho descascado no fornecedor? Dezesseis reais. Ele embala em potinhos de 300 gramas e vende por R$ 10, ou seja, o quilo sai a R$ 39,90. Se vende? Porra! Vai por Sedex pra Manaus, Curitiba, Ceará, todo canto. Eu mesmo vendo pra todas as torres aqui no condomínio, pelo grupo de zap dos moradores. Alho descascado pela internet performa muito bem.

Oi, Rosa, bom dia. Essa é a Rosa, a nossa diarista. Tô numa reunião aqui, Rosa, mas logo já saio pra você trabalhar em paz.

Aí, cara, esse amigo que se deu bem vendendo pela internet quis fazer um canal no YouTube sobre empreendedorismo. Mas não empreendedorismo pra aplicar a qualquer pessoa. Ele tinha um público bem específico em mente: a pessoa desesperada, a pessoa que levou uma rasteira da vida e não vê como se levantar. Só que o cara é muito envergonhado, travado, não queria pôr a cara no vídeo. Me perguntou se eu topava pôr a minha. Opa! Lógico! Porque eu me vi na ideia dele. Eu era a pessoa desesperada que não via saída. Então fomos pensando nuns vídeos pra ajudar os desesperados. O canal se chama Empreender é uma saída de mestre. A gente tem oito inscritos. O que eu tento passar nos vídeos é que a pessoa não precisa fazer curso de vendas nem ter experiência pra vender no farol. Eu dou o caminho. Às vezes a pessoa não sabe nada de vendas, tipo você, mas se ela me imitar já consegue tirar o pé da lama. O objetivo não é monetizar o conteúdo. É ajudar o cara a enxergar uma saída. É pegar na mão dele e dizer 'Calma, irmão, eu tenho uma saída pra você'. Uma saída de mestre.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Sim, foi isso. Eu comecei a trabalhar no farol pra gravar os vídeos, mas me diz se tem como parar? Em três, quatro horas vendendo paçoquinhas são 400, 500 paus. Vamos colocar 400, vai, porque se chove eu não vou. Então, tirando um dia pelo outro dá R$ 400 reais por dia. Em 22 dias, 8 paus e 800 no mês. Custo? Que custo, cara? Isso é livre. Assim, ó. Uma caixa de paçoquinha lá no Bom Baiano da Lapa custa R$ 27 e vem com 110 unidades. Eu faço onze kits com dez paçoquinhas cada. Vendo a R$ 10 o kit. Conta você sabe fazer. Quanto dá isso aí? Aê, cara! Isso aí. R$ 110 reais por caixa que eu paguei R$ 27. Eu só tiro o gasto com os saquinhos das embalagens, pronto, R$ 80 de lucro. Num dia fraco eu vendo três caixas. Mas normalmente são cinco ou seis. Tá ruim? Claro que não, né? Tá ótimo. É uma grana que ajuda demais a minha família nesse momento.

O negócio do Pix da confiança, bom, aí entrou a minha experiência de vendedor, né? Pensei Ok, vou empreender, mas que dificuldades vou ter? O que não estão fazendo nesse segmento de mercado que eu posso fazer? O que já fazem que eu posso fazer melhor? No que eu posso inovar? O empreendedor tem que se antecipar às dificuldades, entende? Eu não posso ir pro farol vender paçoquinha sabendo que ninguém mais tem dinheiro em espécie no bolso. Isso é um dado da realidade, já está lá. É burrice querer mudar a realidade. Pra empreender você tem que se adaptar a ela. Foi assim que surgiu o pix da confiança.

Até agora a reação mais engraçada foi a de um rapaz que me disse assim: Cara, eu não vou levar suas paçoquinhas porque não vou te pagar. Não por maldade, mas porque eu vou esquecer. Achei legal da parte dele, foi honesto. E é isso mesmo que eu quero. Com o Pix da confiança eu tô desafiando a pessoa a ser honesta comigo, percebe? Cê entende como isso tira a pessoa do eixo? Isso é técnica de venda. E eu uso várias pra vender paçoquinha no farol. Lógico, cara, tem um estudo por trás. No final da abordagem eu digo: Primeiramente, obrigado por me ouvir. Aí a pessoa já se sente importante, porque você está reconhecendo que ela te deu atenção. Provavelmente foi o primeiro voto de confiança que ela recebeu naquele dia, naquela semana. Não vai querer me dar calote. Eu continuo: Em segundo lugar, obrigado por sua ajuda, ela é muito importante pra me ajudar a sustentar a minha família. E é verdade, cara. Não tô mentindo. Pensa bem. Eu tenho prestação de dois apartamentos pra pagar.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Quer ver outra técnica? Eu só vou em carro com o vidro aberto ou entreaberto. Foi uma estratégia que eu adotei. Se tá fechado eu nem perco tempo, sei que a pessoa não quer ser incomodada pelo mundo exterior. Assim: rico tá sempre de vidro fechado, pobre tá mais de vidro aberto. Não, peraí, volta, vamos colocar em outros termos: a pessoa no carro com maior valor comercial está sempre de vidro fechado e a pessoa no carro com menor valor comercial está mais de vidro aberto. Outra diferença que eu notei é que a pessoa do carro simples se solidariza mais comigo, com a minha história, a minha dificuldade. Ela me olha e pensa: Porra, podia ser eu nessa situação. É mais de igual pra igual. Já quando tem um carro sofisticado de vidro entreaberto e eu consigo me aproximar, é diferente. No olhar da pessoa dá pra sacar. Não passa na cabeça dela que podia ser ela. Aí eu fico pensando se, em vez de solidariedade, o que ela sente é um pouco de culpa. Porra, eu tô aqui no bem bom e o rapaz aí ralando pra levar comida pra casa. Sei lá, é o que eu sinto ali na hora. Mas são essas pessoas que mandam os Pix de 50 paus. Elas me ajudam também.

Não, aí não. Sei de uns caras que trabalham no farol, chegam e trocam de roupa, por uma mais zoadinha, mais velhinha. Eu vou com a minha roupa do dia a dia mesmo. Só não vou de bermuda, nem de chinelo e nem com o manto do Timão. Porque dificulta, cara. Certeza. Se pego um palmeirense pela frente, já viu. Apesar de até pruma situação dessa eu ter saída. O cara me fala: Não vou comprar suas paçoquinhas porque você é corintiano. Dá pra reverter, sabia? Eu diria pra ele: Cara, eu sou um corintiano como você nunca conheceu: sou formado, tenho todos os dentes na boca, nunca fui preso. Se bem que preso eu já fui, mas não por crime. Foi por deixar de pagar pensão alimentícia. Ah, casei com 19 anos, não deu certo. Minha ex-mulher queria fazer swing e pra mim não dava. Nada contra quem curte, mas meu estômago não aceita. Aí, anos depois da separação, em outro momento desesperado meu, desemprego, todo ferrado, não consegui pagar a pensão. O camburão veio me buscar em casa. Fiquei duas semanas, passei Natal e Ano Novo com mais quinze devedores de pensão numa cela de três por três. Mas, diz aí, você não é corintiano, né?

— Claro que sou.

Ah, é nada.

— Olha aqui uma foto da minha neta Clarice, xará da sua caçula. Ela não tira o manto nem pra tomar banho.

Pô, achei que você fosse são-paulino.

— Caramba! Desculpa ter causado essa péssima impressão.

Sabe que na lembrança de infância mais antiga que eu tenho eu tô com uma roupinha verde? Foi um dia de tirar retrato. Minha mãe me vestiu, me penteou e eu tô segurando um telefone, assim, feliz, rindo. Lembro perfeitamente. Eu devia ter uns dois aninhos.

— No telefone? Já devia estar tentando vender alguma coisa, né?

Hahaha. Provavelmente. Eu sempre quis ser advogado, na verdade. Não sei se você já percebeu, mas eu tenho essa facilidade de falar, de argumentar, persuadir. Sempre fui assim. Na escola eu era disputado pelos grupos, porque diziam que ninguém apresentava o trabalho lá na frente tão bem. Ó, cara, vou te dizer. Na conversa, modéstia à parte, eu me garanto. Se me derem 30 segundos de atenção é difícil sair.

— Xi, eu já te dei 59 minutos. Tô ferrado.

Então eu vou aproveitar pra te vender um produto que um sucesso espetacular lá no marketplace do meu amigo: o gel Pau de Cavalo.

— !

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

É um estimulante sexual masculino. Ele pagava R$ 15,60 a unidade pra revender. Vendia uns 500 frascos por mês. Aí eu negociei com o fornecedor e baixei pra R$ 11,50. As vendas subiram pruns 2 mil frascos/mês. Depois você pesquisa o preço pro consumidor no Mercado Livre e vê se não é um puta negócio. Nunca experimentei, mas imagino que funcione, sim, porque é um produto com excelente recorrência de compra. Isso, recorrência de compra. Muitos clientes compram direto, o ano todo. E tudo que um vendedor quer na vida é isso: cliente comprando e recomprando, recomprando, recomprando. Então? Vai um Pau de Cavalo hoje?

Wesley Camargo Marcelino, 41 anos

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro -- é fundamental parar -- e escuto. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.