'Neonazismo não é fenômeno passageiro no Brasil', diz autor de relatório
Os ataques a escolas aumentaram no Brasil nos últimos anos. Na percepção de quem estuda o tema, pouco foi feito para desmantelar grupos radicalizados e impedir a disseminação do discurso extremista de direita entre adolescentes e jovens. Essa é a análise de Daniel Cara, professor e pesquisador da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo) que coordenou um grupo de análise sobre o perigo da extrema direita na população jovem, ao lado de mais 12 pesquisadoras e colaboradoras, entre elas Lola Aronovich. Com mais de 50 páginas, o relatório assinado pelo grupo foi entregue à equipe de transição do governo em dezembro de 2022, responsável pela área da educação.
Segundo Daniel Cara, a elaboração do relatório não estava prevista, mas o assunto se tornou urgente depois do atentado em Aracruz (ES), em que um menor de idade atacou dois colégios no mesmo dia, usando uma braçadeira com a suástica e uma máscara de caveira usada por grupos neonazistas. Três pessoas foram mortas.
Na última segunda-feira (13), um atentado frustrado em Monte Mor, no interior de São Paulo, tomou o noticiário. O autor, também menor de idade, levava consigo artefatos e objetos que faziam referência aos atentados anteriores. O evento carregava as mesmas características do de Aracruz.
Para Daniel Cara, que voltou a cobrar que o governo federal preste atenção no conteúdo do relatório, não há interesse político em atuar na prevenção de atentados em escolas, nem de desmantelar espaços virtuais em que o discurso extremista atinge majoritariamente jovens e adolescentes do gênero masculino.
Primórdios da violência
Da campanha presidencial, em 2018, até os quatro anos em que Jair Bolsonaro (PL) comandou o Poder Executivo, grupos virtuais em aplicativos de troca de mensagens e comunidades no Facebook ficaram cada vez mais em evidência na imprensa, e alimentaram estudos sobre o comportamento da base bolsonarista e os rumos da extrema direita brasileira.
Entretanto, os espaços virtuais onde predominam discursos fascistas e neonazistas, ideologias mais presentes na simbologia usada por autores de atentados, têm lastro anterior a esse período. O erro, de acordo com o pesquisador, é julgar que o neonazismo é um fenômeno recente no Brasil.
"O Brasil pensa que esse fenômeno é passageiro, mas começou nos anos 2000 e foi aumentando exponencialmente", afirma.
Há mais de duas décadas, fóruns virtuais, chans, sites, blogs e comunidades fechadas propagam discursos da extrema direita entre internautas brasileiros, especialmente os mais jovens. Alguns foram desaparecendo, como grande parte dos chans, mas deixaram um legado de discurso e vocabulário presentes até hoje em grupos de Telegram, canais de YouTube e comunidades virtuais.
O grau de hostilidade varia em cada ambiente, mas alguns conceitos parelhos saltam aos olhos, como a culpabilização de minorias — especialmente mulheres, LGBTQIA+ e negros — pelos problemas ecônomicos e sociais que os frequentadores sentem na pele.
Na visão de Cara, a desigualdade e a retração econômica agravadas pelo neoliberalismo criaram um caldo perfeito para o crescimento na adesão a ideias extremistas. "O resultado é que as pessoas buscam alternativas, e o discurso neonazista acaba apresentando alternativas mais simples de ação e compreensão do mundo", explica. "Pela questão econômica, esses jovens se sentem apartados da sociedade e escolhem inimigos que não têm nada a ver com a realidade que vivem."
Outro fator determinante é a ausência de punições mais severas vindas do Poder Judiciário contra o discurso de ódio promovido por grupos ou indivíduos de extrema direita. "Isso criou um clima de impunidade, porque eles acham que podem agir sem consequências."
Pouco interesse
O atentado frustrado em Monte Mor pode ser apenas uma amostra de uma espécie de ataque — antes mais associado à cultura das armas dos Estados Unidos — que, a cada ocorrência, gera novos admiradores e serve de inspiração.
Mesmo com o aumento de atentados a escolas no Brasil, um tipo de violência raro no país até a década passada, o pesquisador não notou, por parte do governo federal, qualquer tipo de interesse em criar estratégias para combater o extremismo de direita.
"O relatório está pronto, está na mão deles, e gerou problemas porque muita gente ficou incomodada com o que está escrito", conta Cara. "Existe uma falsa visão, absurda, de que esses grupos nunca vão alcançar o poder. O entendimento do governo é de que se trata de um movimento marginal e secundário, e por isso não precisa ser atacado."
Mesmo com o relatório e outros eventos de violência ligados à extrema direita nos últimos anos, pouco foi divulgado sobre possíveis medidas para desmantelar e monitorar espaços do tipo. "Se você trata isso como irrelevante, está sendo conivente com a violência."
O inimigo interno
Segundo o relatório, várias atitudes do governo Bolsonaro ajudaram no aumento no número de atentados dessa natureza. A flexibilização do porte de armas; o incentivo à perseguição de professores nas escolas públicas, acusados de estarem "doutrinando" alunos, ao abordarem assuntos vistos como "de esquerda"; e o próprio discurso do ex-presidente sobre minorias.
"Bolsonaro acaba sendo um canalizador dessa lógica discursiva, de que o problema está na luta pelos direitos humanos, no respeito à lei e na luta contra a desigualdade. Não dá para dizer que ele agiu em prol de grupos neonazistas, pois não temos provas suficientes, mas o discurso fortalece essa compreensão de um inimigo interno. É como se o bolsonarismo descesse às condições discursivas para emergir nesses grupos nazistas e fascistas", explica.
No entanto, é necessário compreender as peculiaridades dos grupos extremistas. Ainda que a postura do último governo tenha catalisado o crescimento de grupos neonazis, as visões são diversas dentro de cada um deles. Em grande parte das alas declaradamente antissemitas e violentas, como já apontado pelo TAB, existe uma rejeição à figura de Bolsonaro por seu vínculo com Israel e pela agenda econômica vista como "liberal".
"Esses grupos não consideram o Bolsonaro um herói, mas uma piada, mesmo que o bolsonarismo permita o caldo social para que eles se expandam. Enfrentar apenas o bolsonarismo não é enfrentar todo o fascismo", diz.
Círculo vicioso
Das medidas sugeridas no relatório, o docente destaca a necessidade de uma participação maior das escolas e dos pais dos alunos para combater o extremismo entre os jovens e adolescentes, e também a criação de um processo de monitoramento, em parceria com agências internacionais. "É preciso estabelecer protocolos de ação nesses casos, envolvendo todo mundo. São ações práticas que resolveriam o grosso do problema."
O desafio na prevenção de ataques contra escolas é quebrar um círculo vicioso em que um ato como esse, ao ser noticiado, sirva de inspiração para outro jovem. Manuais de redação voltados a jornalistas explicam as melhores abordagens — como, por exemplo, não citar o nome do autor nem divulgar manifestos e cartas deixadas para "justificar" o crime.
"Uma questão no curto prazo é criar um processo de desvalorização social dos atos e gerar uma punição que não eleve o jovem a herói", afirma Cara. "O que exige mais esforço em termos governamentais é a necessidade de se infiltrar e desbaratar esses grupos. É preciso desarticular, criar estratégias para evitar a cooptação dos jovens."
O TAB procurou a assessoria do Ministério da Educação, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. O texto será atualizado, caso haja retorno.
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