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'Boatos de que estava na pior': Luisa Marilac volta à Europa como youtuber

Bênção, Vaticano: a travesti cujo vídeo viralizou em 2011 monetizou suas redes e voltou à Europa "de cabeça erguida" para comemorar seus 45 anos - Arquivo pessoal
Bênção, Vaticano: a travesti cujo vídeo viralizou em 2011 monetizou suas redes e voltou à Europa 'de cabeça erguida' para comemorar seus 45 anos Imagem: Arquivo pessoal

Adriano Alves

Colaboração para o TAB, de Juazeiro (BA)

04/06/2023 04h01

"Buon giorno, direttamente dall'Italia", disse Luisa Marilac aos seguidores que acompanhavam a live de sua viagem à Europa, em maio. Doze anos depois do meme que a deixou famosa — "e teve boatos de que eu ainda estava na pior" —, a hoje youtuber postou nas redes sociais a sua volta ao Velho Continente para comemorar 45 anos de vida.

"Sou bonita, sou europeia", brincava ela, saltitante pelas ruas de Roma, em um dos conteúdos compartilhados. Foram quatro dias de turismo na Itália e outros quatro na França, com um único drama: entrar no avião, pois ela conta ter fobia de voar.

Desde que ficou famosa, a travesti brasileira ainda não tinha cruzado o Atlântico "de cabeça erguida", como diz: desta vez, sem a necessidade de se prostituir. "Não tenho nada contra a prostituição", ressalta ela. "Vivi disso durante anos, só que nunca foi o que eu quis pra mim. Eu queria trilhar um destino diferente pra minha vida e consegui, com os meus fãs."

Apesar do sucesso na nova carreira, voltar a morar fora não está nos planos da youtuber. "A Europa não é mais a mesma. Mudou muita coisa, para melhor e para pior. Há muito lixo nas ruas. E você sabia que lá também tem cracolândia?"

Por trás do meme

O vídeo que deixou Luisa Marilac famosa no Brasil foi gravado de forma despretensiosa. Era, na verdade, uma mensagem para o ex-namorado, com quem tinha viajado para Espanha, onde já se celebravam casamentos LGBTQIA+, para oficializar a relação. Só que o noivo fugiu de casa, levando todo o seu dinheiro e documentos.

"Depois que consegui me reerguer e aluguei aquela casa [do vídeo], mesmo ainda triste e deprimida porque meu grande amor me roubou, mandei essa indireta pra ele ver que eu não estava na pior", lembra.

Marilac diz que não imaginava que um desabafo online transformaria tanto sua vida. Os bordões contidos no vídeo de menos de um minuto, gravado na piscina da cobertura de um prédio em 2011, foram imortalizados. Até hoje se ouve por aí o famoso "tomando uns bons drinks", disparado por Marilac no fim da gravação. Os memes foram parar até em gibis da Turma da Mônica.

Luisa Marilac na Europa - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Há 12 anos, Marilac não soube pegar o bonde da fama, mas correu atrás e hoje vive de lives e publicidade
Imagem: Arquivo pessoal

Ela conta que ganhou um bom dinheiro já na época, mas não soube lidar com a fama. Na volta ao Brasil, um convite para paticipar de um reality show acabou não se confirmando e a travesti teve que voltar a trabalhar nas ruas. "Tiraram muito proveito de mim. Infelizmente, na época que estourou o vídeo eu não tinha a maturidade que tenho hoje", analisa.

A fama sem a riqueza esperada também trouxe dores de cabeça. Marilac diz que chegou a sofrer uma tentativa de sequestro e teve sua casa roubada três vezes. "Tudo para mim sai mais caro. Eu tenho que mandar alguém antes para saber o preço, senão cobram mais", queixa-se.

Luisa Marilac na Europa - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Sucesso colossal: com 123 mil seguidores, ela ganhou o interesse das marcas: 'Como travesti, isso é uma vitória'
Imagem: Arquivo pessoal

Entre fãs e haters

Quem segue as redes sociais de Marilac, notou nos últimos dias a transformação visual para a nova fase da vida. Acompanhada dos amigos André Teixeira e Victor Augusto, que fazem seu 'hair style' há mais de um ano, ela gravou seu processo de mudança para o ruivo.

As suas piadas e bordões típicos continuam. Nos vídeos, por exemplo, ela grita "olha a neca" sempre que um homem bonito passa durante as gravações. Mas o conteúdo revela um lado mais crítico à sociedade, abordando temas como preconceito e discriminação com as travestis.

A influenciadora vive da monetização de seu canal no YouTube, que tem hoje 123 mil seguidores. Embora a conta exista desde 2010, ela só conseguiu passar a receber em 2019. Marilac também faz campanhas publicitárias — a mais recente foi para a linha de maquiagens Vult. "Pra mim, como travesti, isso é uma vitória", diz.

Mesmo vivendo da internet, Marilac conta que tem uma relação difícil com o mundo digital. Chegou a ter crises de pânico por causa dos haters e passou dois meses sem conseguir gravar. "A internet é muito tóxica. As pessoas descontam toda a frustração que elas têm em cima da gente", afirma

"Sei que tem muitas pessoas que me amam, mas também sei que muito hater não aceita a minha evolução. Eles aceitam uma Virgínia [Fonseca, influenciadora brasileira nascida nos EUA] ficar rica e comprar avião, mas não uma pobre travesti conquistar suas coisas e ter o seu espaço."

Nos casos de ofensas mais graves, Marilac conta que já teve que recorrer à via judicial. "As pessoas têm que aprender que a internet não é terra sem lei. Pode demorar, mas quando menos espera chega uma cartinha judicial minha", diz.

Luisa Marilac na Europa  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Com os amigos André Teixeira e Victor Augusto, responsáveis pelo 'hair style' da influenciadora
Imagem: Arquivo pessoal

Uma sobrevivente

Nascida em Além Paraíba, cidade de 35 mil habitantes no interior de Minas Gerais, numa família conservadora, ela teve um processo de transição de gênero difícil. Conta que foi muitas vezes abusada na infância. Aos 17 anos, se assumiu travesti e, aos 19, começou na prostituição.

A entrada no ramo sexual, como no caso de muitas travestis, foi por falta de emprego. "Desde quando me entendo por gente, não tive oportunidade de emprego. Sempre que apareceu, agarrei e trabalhei. Tenho alguns anos de carteira assinada, nunca gostei da prostituição", revela.

Ainda assim, ativista das causas LGBTQIAP+, ela diz que prefere ser chamada de travesti. "Travesti para mim não é uma forma pejorativa, é resistência." O cotidiano, ela conta, ainda não é fácil. Chegou a ter infecção nos rins, porque segura ao máximo o xixi para não entrar nos banheiros femininos e sofrer agressões.

Luisa Marilac na Europa - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ela se tornou uma ativista LGBTQIAP+: 'Travesti para mim não é uma forma pejorativa, é resistência'
Imagem: Arquivo pessoal

'A melhor versão de mim mesma'

Ano passado, Marilac foi internada por infecção em uma prótese mamária e pensou que ia morrer. Os problemas nos seios são de quando tinha silicone industrial, que necrosou e a fez passar por cirurgias durante um ano. "Venho de uma época que não tinha informação, acabei fazendo a besteira de colocar o silicone industrial no meu seios. Foi traumatizante passar por tudo aquilo, oito cirurgias, dreno, bactéria. Não quero saber de colocar seios novamente", diz.

O sofrimento por conta dos problemas de saúde foi agravado pela transfobia. Marilac entrou com processo na justiça contra um hospital por negar atendimento e discriminação pelo uso de pronomes masculinos. "Ultimamente, eu estou assim. Se está dentro dos meus direitos, eu estou processando, porque as pessoas só aprendem assim."

Aos 45, Luisa Marilac se considera uma sobrevivente em um país em que a expectativa de vida para uma mulher trans é de 35 anos. "Basta de travesti estar sempre mendigando, pedindo esmola, sempre na pior. Eu não me enquadro nesse papel, meu amor. Eu sou vitoriosa. E quero ser a melhor versão que puder de mim mesma para que outras pessoas se inspirem em mim e se tornem melhores."