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'Ser travesti é posição política', diz major que pode ser expulsa da PM

 A major Lumen Lohn, 44, da Polícia Militar de Santa Catarina: governador Jorginho Mello (PL) quer avaliar "capacidade moral" da policial - Caio Cezar/UOL
A major Lumen Lohn, 44, da Polícia Militar de Santa Catarina: governador Jorginho Mello (PL) quer avaliar 'capacidade moral' da policial
Imagem: Caio Cezar/UOL

Abinoan Santiago

Colaboração para o TAB, de Santo Amaro da Imperatriz (SC)

05/05/2023 04h01

"Olá, eu sou a major Lumen, uma pessoa transgênero." Foi assim que a primeira oficial travesti da PMSC (Polícia Militar de Santa Catarina), Lumen Lohn, 44, iniciou sua apresentação aos colegas de farda para falar sobre sua mudança de identidade de gênero.

A cena ocorreu em janeiro, numa sala na SSP (Secretaria de Segurança Pública) de Florianópolis. A major preparou slides em um Powerpoint, que projetou durante a comunicação. "Comecei de trás para frente, porque se eu explicasse primeiro o que era uma transgênero, iriam pensar 'ok, mas o que isso tem a ver com a gente?'. Primeiro saí do armário para depois explicar o que era isso", lembra a major, que tem 25 anos de carreira.

A reação dos policiais presentes, lembra ela, foi um misto de admiração, emoção e curiosidade. "Foi tão maravilhoso que me derreto até agora. Teve uma colega que chorou, outras bateram palmas. Alguns já desconfiavam. É provável que isso já estivesse nos bastidores, mas a reação foi positiva", conta.

Embora entre o círculo mais próximo de policiais a repercussão tenha sido positiva, desde o fim de abril não se pode dizer o mesmo em relação à cúpula da corporação.

Major trans da PMSC - Caio Cezar/UOL - Caio Cezar/UOL
A major se declarou transgênero aos colegas, em uma apresentação com slides em Powerpoint, em janeiro
Imagem: Caio Cezar/UOL

'Capacidade moral'

No dia 24 de abril, o governador Jorginho Mello (PL) acatou a abertura de um Conselho de Justificação — colegiado que julga oficiais — contra a major para avaliar "sua capacidade moral e profissional". O pedido, que foi feito pela PM em dezembro de 2022, quando Lumen já estava em transição, pode resultar em expulsão.

Meu principal medo é perder meu emprego. A representatividade desse processo é muito mais ampla do que 'a major Lumen', é de uma pessoa trans ocupando um alto cargo na polícia, fora da expectativa de marginalização associada a uma travesti

Lumen Lohn, major travesti da PMSC

Em nota divulgada em 27 de abril, a PMSC afirma não haver perseguição no pedido para julgar a conduta moral da major (ao final da reportagem).

Apesar do processo, Lumen diz manter sua admiração pela PM. "Não consigo distorcer minha visão da polícia. Ser policial é muito mais do que prestar segurança, mas cuidar das pessoas."

Major trans da PMSC - Caio Cezar/UOL - Caio Cezar/UOL
Lumen e a esposa, a professora Lisiane Freitas, 44: 'Parecia que já nos conhecíamos há sete anos'
Imagem: Caio Cezar/UOL

'Me olhava no espelho, mas não me via'

Major Lumen mora em Santo Amaro da Imperatriz, na Grande Florianópolis. No bairro onde nasceu e cresceu, é conhecida e respeitada pelos vizinhos. Foi ainda na infância que ela percebeu que "não se encaixava" no uniforme do homem cisgênero.

"Sempre carreguei essa sensação de [ser] inadequado, de não me sentir confortável. Hoje eu sei o que era, mas na época não conseguia verbalizar. Com 10 ou 11 anos já me sentia assim. Me olhava no espelho, mas não me via."

Lumen se descobriu tarde, após ter filhos — hoje com 20, 11 e 7 anos — em outro relacionamento. Ela conta que entendeu melhor as questões de gênero, e descobriu quem realmente era, a partir de trocas de experiências com amigos LGBTQIA+. Hoje, casada de novo e transicionada, diz se olhar no espelho e enxergar quem sempre quis.

"Mesmo com uma eventual rejeição social, me sinto muito melhor. Estou mais forte, resiliente e consigo lidar melhor com essas questões", afirma.

O círculo familiar recebeu bem a mudança. Filha de um coronel da reserva da PM, de 70 anos, e de uma professora aposentada, de 77, ela decidiu primeiro contar aos dois irmãos mais novos. Ambos "deram todo o suporte".

Quando a transição enfim ocorreu, Lumen não enfrentou resistência dos pais. "Nunca houve afastamento, um confronto, exposição ou briga."

Major trans da PMSC - Caio Cezar/UOL - Caio Cezar/UOL
'Ninguém acorda e decide sofrer numa sociedade transfóbica e patriarcal. A pessoa é trans porque é', diz Lisiane
Imagem: Caio Cezar/UOL

Amor em outra chave

No entanto, foi dentro de casa que Lumen recebeu o principal afago, o da esposa, a professora Lisiane Freitas, 44. Juntas desde novembro de 2017, elas se conheceram num aplicativo de namoro. Fãs de "Star Wars", Darth Vader virou o improvável cupido depois que a professora se interessou por Lumen ao ver a foto do personagem em seu perfil.

Um mês depois, o casal se formou e a oficialização do casamento está marcada para julho de 2023. "Parecia que já nos conhecíamos há sete anos", elogia Lisiane. "Ela foge do padrão de forma positiva. É bem autêntica, o que é atraente", retribui Lumen.

Na residência do casal, a sintonia entre as duas é evidente, tudo sob os olhares dos quatro pets: os gatos Serena e Miojo, a cadela Charlotte e o cágado Tutu.

Lisiane foi a primeira a saber da transição de Lumen, depois de incentivá-la a se abrir. "Comecei a perceber coisas diferentes, que ela não estava me falando. Numa conversa, eu trouxe essas dúvidas. Ela, então, me falou que eu tinha razão e que achava que era uma pessoa trans", lembra a professora.

Major trans da PMSC - Caio Cezar/UOL - Caio Cezar/UOL
'Quando me olhei no espelho pela primeira com farda feminina, pensei: 'Que pessoa mais linda é essa?''
Imagem: Caio Cezar/UOL

Não foi escolha

Lisiane conta que se sentiu insegura, mas de uma coisa tinha certeza: a transição era inerente à sua companheira, não era uma escolha. "Ninguém acorda de um dia para outro e decide sofrer numa sociedade transfóbica e patriarcal. A pessoa é trans porque é trans", diz a professora, acrescentando que se "viu validada" ao ler relatos semelhantes nas redes sociais.

"Não me senti sozinha. Quando vi que as dúvidas eram normais, especialmente na sociedade em que vivemos, fiquei mais tranquila."

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Em casa, paixão por pets: os gatos Serena e Miojo, a cadela Charlotte e o cágado Tutu
Imagem: Caio Cezar/UOL

A primeira farda feminina

Foi só após compartilhar a questão com a esposa, a família e os amigos que Lumen iniciou sua transição, em setembro de 2022. A terapia hormonal começou em novembro. Em paralelo, aprendeu a se maquiar, se vestir e usar adereços associados às mulheres.

A esposa virou uma espécie de "personal stylist" a ponto de a major dizer "que existe um pouco de Lisiane" nela.

Hoje, Lumen lida bem com maquiagem e diz se sentir realizada ao usar a farda feminina, como sempre desejou. Inicialmente, ela chegava "montada" como trans no trabalho, mas trocava de roupa.

Quando me olhei no espelho pela primeira vez no trabalho com farda feminina, pensei: 'Que pessoa mais linda é essa? Era disso que eu precisava'. Foi um momento bem mágico

Lumen Lohn, major travesti da PMSC

O nome Lumen, que significa feixe de luz, foi escolhido por ela para confirmar a mudança de vida para melhor. "Tenho ideia de que vivi sempre na escuridão, mesmo sem perceber. Lumen agora ilumina meu caminho."

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'Ter alguém que é travesti, mas não ligado a isso [a marginalidade], pode dar um novo sentido ao termo', diz
Imagem: Caio Cezar/UOL

Posição política

Lumen quer ser chamada de travesti. Ela diz que não se enxerga totalmente como mulher, mas uma pessoa do gênero feminino. Sua escolha pelo termo travesti busca contornar a resistência social que a palavra carrega, associada à marginalidade.

A major da PM quer mostrar que uma travesti também pode chegar a postos altos. "Ser travesti é uma posição política, [pois este é] um termo muito ligado à marginalidade. Ter alguém que é travesti, mas não ligado a isso [a marginalidade], pode ajudar a dar um novo sentido para o termo. Deixa de ser um xingamento", diz.

Formada em direito, Lumen também atua como voluntária ensinando matemática para vestibulandos carentes, em Florianópolis. Prestes a se aposentar, ela nutre o sonho de terminar "em paz" seus últimos cinco anos de serviço na PM para então se dedicar ao voluntariado e ajudar a iluminar o mundo de quem, como ela no passado, não consegue se afirmar.

"Quero me aposentar no posto de coronel e me dedicar ao trabalho voluntário o resto da minha vida. A Lumen é alguém que quer fazer o bem e tornar o mundo melhor, ao mesmo tempo em que quer ser respeitada."

O que diz a PM

Após a medida do governador questionando a "moral" da major Lumen, a assessoria da PMSC divulgou uma primeira nota, afirmando que a policial respondia a processo, protegido por sigilo, por "fatos relatados e apurados a respeito da conduta profissional", e que a corporação "não poderia divulgar, por uma questão de preservação e respeito com a privacidade da major Lumen".

Contudo, após a repercussão do caso, a Polícia Militar enviou nova nota listando 17 infrações que teriam sido cometidas pela major entre 1999 e 2020.

Lumen e sua defesa afirmam que não puderam ter acesso aos autos, e que não há qualquer infração recente. Sustentam não haver crime militar na lista divulgada pela PM e que o artigo 18 da lei que cria o Conselho de Justificação, onde corre o processo, desconsidera infrações prescritas após seis anos.

Também não fica claro por que a PM decidiu levar o caso da major para o Conselho apenas em 2022, dois anos depois que a última infração teria sido cometida.

O TAB solicitou na terça-feira (2) mais esclarecimentos sobre o processo à secretaria de comunicação do governo de Santa Catarina. "A respeito dos questionamentos, aguardaremos a conclusão do Conselho de Justificação instaurado ser concluído", respondeu o órgão.