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'É como contestar Deus': desafios extremos são comuns em empresas de Marçal

O empresário Pablo Marçal - Reprodução/@pablomarcal1
O empresário Pablo Marçal Imagem: Reprodução/@pablomarcal1

Colaboração para o TAB, de Valinhos (SP)

26/06/2023 11h35

Desafios extremos, como os que levaram à morte o colaborador Bruno Teixeira, de 26 anos, fazem parte dos cursos e da cultura das empresas ligadas a Pablo Marçal.

É o que afirmam quatro pessoas que trabalharam diretamente com o influencer, em conversa com a reportagem do TAB. Quase todas têm entre 30 e 40 anos e falaram sob condição de anonimato.

"A morte do Bruno mexeu muito comigo", diz Vanessa*, uma ex-colaboradora. "É um lugar que realmente te leva para além do limite. Eles são completamente sem noção."

"Ele inventa as coisas e aí vira a loucura da vez", diz José*, também ex-colaborador.

Nos últimos anos, além da escalada do Pico dos Marins (SP) e as maratonas improvisadas, ele levou seus seguidores e colaboradores a corridas de kart, saltos de pára-quedas, dietas de emagrecimento rápido e até à obsessão por política, quando quis ser presidente e levou seguidores a se filiar a seu partido.

Esses "desafios" não envolvem apenas seguidores, mas também sócios e colaboradores. Uma das razões é que um dos critérios para trabalhar lá é passar pelas mentorias que tornaram Marçal uma espécie de "guru de seita". Ou seja: os parceiros são quase todos seguidores.

Um desses cursos é "O Pior Ano da Sua Vida", que leva os seguidores a vivenciarem situações extremas, de banho gelado a escalada na montanha, para aprender a tomar decisões difíceis e prosperar.

O envolvimento de colaboradores, segundo os entrevistados, tem vários propósitos. Eles acabam servindo de mão de obra de apoio em incursões fora do expediente e também como propaganda ("se eles conseguem, todos conseguem", diz uma fonte). Eles são testados também a mostrar fidelidade ao líder. A família de Bruno, por exemplo, conta que o sonho do rapaz era fazer-se notar por Marçal, o que o levou a aceitar todo tipo de desafio lançado dentro e fora da Plataforma Internacional, onde ficam as sedes das empresas.

Segundo José, Marçal demonstra necessidade de andar em grupo para se sentir um líder. "Ele nunca consegue se inserir em outro grupo. Às vezes tenta, mas logo percebe que as pessoas não estão interessadas nele, apenas nos números de seguidores que ele tem. Já a seita o coloca em um lugar de destaque sempre. Acompanhar os desafios dele é como um teste de fidelidade. E, na cabeça deles, esses desafios aproximam as pessoas de Deus."

Questionada, a assessoria de Pablo Marçal enviou a seguinte resposta à reportagem: "Todas essas informações são inverdades sem fundamentos, onde as pessoas que fazem esse tipo de acusação não têm como provar, porque não é real. Em respeito ao bom jornalismo, como também para não realimentar o denuncismo descabido de quem por desejos contestáveis quer macular reputações, não vamos comentar especulações e inverdades plantadas na mídia para fraturar a verdade. Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus. Mateus 5:10.".

Nos detalhes

Nas redes sociais, há diversas postagens de colaboradores e "generais", como ele chama seus "mentorados", que recebem incentivo de Pablo ao fim de uma tarefa árdua, como completar uma corrida de 42 quilômetros.

Os entrevistados dizem que, a princípio, ninguém é obrigado a participar de desafios do tipo, geralmente combinados de última hora. Mas a ordem, afirmam eles, fica sempre subentendida. "Tudo está nos detalhes. O Pablo Marçal enfrenta você, encontra seus defeitos pra te manter ali e fazer você achar que precisa dele. É como o guru de uma seita. Todos seguem o que ele fala. E fica todo mundo cego", diz Vanessa.

Vanessa afirma que os colaboradores da Plataforma são submetidos a "horas e horas a mais de trabalho" com salário baixo e poucos direitos.

"Como ele fala de Deus o tempo todo, contestar é como contestar Deus", diz Sabrina*, que passou a trabalhar para Marçal depois de contratar o "Método IP," principal curso do grupo, que chega a custar até R$ 15 mil e promete "eliminar os bloqueios emocionais que te impedem de viver uma vida feliz e plena". Ela dizia estar em um momento difícil da vida e demorou quase um ano para sair.

Segundo ela, casos de humilhações contra quem mostrava "fragilidade" eram comuns. Mas poucos têm coragem de denunciar. "As pessoas lá estão totalmente cegas. Qualquer coisa que ele fala vira lei sem questionamentos porque isso envolve fé, teologia da prosperidade e muita simulação", diz ela, que se negou, por exemplo, a saltar de pára-quedas com outros colegas da empresa.

"Muita gente se deprime quando percebe que não consegue alcançar a 'frequência' ou a riqueza que ele vende. Mas muita coisa do que ele diz não é verdade. Na época das dietas, ele mostrava resultado com exercício, mas tomava medicamento", afirma Sabrina, que vê na obsessão com testes físicos uma forma de acionar a adrenalina e a sensação de bem estar de quem sonha em "destravar" na vida. Outras duas pessoas ouvidas pelo TAB confirmam a informação.

Segundo os entrevistados, as pessoas se submetem às jornadas de trabalho com a ilusão de que podem ser sócias de Pablo um dia. A remuneração seria, assim, uma "ajuda de custo", até a pessoa aprender a empreender. "O salário é baixo para a pessoa não se acomodar e evoluir", descreve José. "Ele só leva para perto pessoas menosprezadas, que estavam em uma situação financeira ruim. E para essas pessoas as migalhas que caem da mesa são suficientes", diz.

"Ali são todos fãs que querem estar do lado dele. Ele prega que estão ali para 'servir'. Tem muita coisa abusiva e zero direito trabalhista. Foi o lugar mais tóxico em que já trabalhei", confirma Vanessa. "Eu custei a pedir demissão. Me sentia fraca. Não conseguia falar. Tive que fingir que estava sendo grata, mas tudo o que eu queria era fugir."

Sabrina observa em Marçal as mesmas estratégias de persuasão presentes no livro "48 Leis do Poder", de Robert Greene. A obra é dividida em capítulos como "Chame a atenção a qualquer preço", "Faça os outros trabalharem por você, mas fique sempre com o crédito", "Aprenda a manter as pessoas dependentes de você" e "Cultive uma atmosfera de imprevisibilidade".

Era exatamente assim o ambiente de trabalho, segundo ela.

'Vai, seu corpo aguenta'

Carolina*, outra ex-parceira de Pablo, pontua: no tempo em que trabalhou com ele, "foi bom ver a velocidade com que as coisas aconteceram". "Colhi muitos frutos e colho até hoje. Fiz muitos trabalhos braçais, que nem sabia que era capaz. Mas sempre foi por livre e espontânea vontade", diz.

Segundo ela, existia, da parte de Marçal, um incentivo para os colaboradores superarem limites físicos e mentais. "Mas sempre foi respeitando cada um", pondera. "Por várias vezes a gente acabava o horário de trabalho, ele precisava que ficássemos para mais alguma coisa, e dizia: 'se alguém quiser ficar, vou dar acesso ao meu curso X ou R$ 50'. Ele sempre foi muito claro no que ele queria e como ele recompensaria. Éramos nós que falávamos sim", diz. "A única coisa que sinto com tudo isso é que éramos pouco recompensados pelo que fazíamos, mas ele nunca enganou a gente em nada."

O problema, afirma ela, é que escaladas e corridas exigem profissionalismo, não coach profissional. "Tudo lá é sem recurso, muito barato e sem estrutura. Eles sempre acham que não vai acontecer nada e tudo é feito de última hora. Pessoas inocentes, que de alguma maneira são movidas por um resultado, acreditam no que é falado. Elas ouvem 'Vai, seu corpo aguenta'. É uma grande irresponsabilidade."

Para ela, os brasileiros estão à procura de um "messias tangível" - quando alguém "com a força e o resultado que ele tem" fala diretamente a essas pessoas, elas tomam como verdade. "Vi pessoas fazendo loucuras, se distanciando da família, saindo do trabalho, mudando para Alphaville, só pra ficar perto dele. Não tinha como ele ter controle sobre o que as pessoas estavam fazendo para segui-lo."

Ela lembra que, no ambiente de trabalho, ninguém, por exemplo, podia ligar o ar-condicionado. "Os líderes diziam 'você tem bloqueio com calor'. As pessoas perto dele eram as pessoas mais bloqueadas da vida. Eram fanáticas. E se aproximavam dele pra beber dessa fonte, do movimento que ele criou. Aquilo virou um ciclo vicioso de pessoas deslumbradas e despreparadas."

Um exemplo citado pelos entrevistados é o de Nezio Monteiro, um dos sócios de Marçal que se acidentou há duas semanas em uma corrida automobilística em Interlagos e, para não demonstrar fraqueza, postava vídeos fazendo exercícios enquanto se recuperava no hospital.

"Qual limite você superou recentemente?", perguntava ele aos seus seguidores após uma batida em outros veículos.

"Para uns é emocionante, mas para quem trabalha lá é muito preocupante", escreveu em suas redes uma mulher que estava no autódromo. "Problemas com freio todos podem ter, mas saber o que fazer na hora e pensar no coletivo é para poucos."

*Nomes trocados a pedido dos entrevistados