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'É um vírus': colecionador de selos exibe o 'Olho de Boi', que faz 180 anos

O filatelista paraense Paulo Ananias e o famoso Olho de Boi: selo raríssimo foi o primeiro a ser emitido, em 1º de agosto de 1843 - Ana Lima/UOL
O filatelista paraense Paulo Ananias e o famoso Olho de Boi: selo raríssimo foi o primeiro a ser emitido, em 1º de agosto de 1843 Imagem: Ana Lima/UOL

André Bernardo

Colaboração para o TAB, do Rio

02/08/2023 04h01

Em 50 anos dedicados à filatelia, Paulo Ananias Silva, 60, já recebeu os mais variados pedidos. Um deles, por exemplo, partiu do ex-jogador da seleção brasileira de basquete Oscar Schmidt. Não faz muito tempo o 'Mão Santa' pediu a Ananias que o ajudasse a encontrar um Olho de Boi de 90 réis — um dos mais valiosos do Brasil, por ter sido o primeiro a ser emitido, em 1º de agosto de 1843, e que completa este mês 180 anos.

Outro pedido recorrente é para avaliar coleções. Em 99% dos casos, conta, ele analisa selos herdados dos pais que, ao contrário do que pensam os filhos, não valem uma fortuna. "Não é porque o selo é antigo que ele é valioso, entende? A coleção só vale muito se tiver selos raros", explica.

O mais inusitado dos pedidos que recebeu veio de um amigo de Belém (PA). A mulher descobriu que ele gastara R$ 18 mil na compra de envelopes usados e, indignada, quis se separar do marido perdulário. Desesperado, o sujeito implorou a Ananias que atestasse o valor daquele "tesouro" e o ajudasse a salvar seu casamento. Conseguiu. "Em geral, mulher de filatelista não gosta de selo", admite. "Dizem que nos dedicamos demais a eles. Pior do que isso: gastamos muito com eles."

Ananias está em seu segundo casamento. Jura por tudo que é mais sagrado -- no caso, sua coleção de selos -- que o primeiro não terminou por causa deles. "Foi incompatibilidade mesmo", diz, sem entrar em detalhes. "Somos amigos até hoje."

O filatelista nascido em Belém do Pará começou a se interessar por selos ainda garoto, por influência de um tio, Raimundo, exímio colecionador. Seus primeiros selos foram os comemorativos da década de 1960. "No meu tempo de criança, não havia celular, internet, essas coisas. Meu videogame era a filatelia", compara. O tempo passou, Ananias cresceu, e seu amor pelos selos também. A ponto de cometer algumas "excentricidades": já comprou coleções inteiras por causa de um único selo. "Houve um tempo em que eu era meio compulsivo, sabe? Fazia de tudo para completar minha coleção", confessa, encabulado.

Filatelista Paulo Ananias - Ana Lima/UOL - Ana Lima/UOL
Ananias já comprou coleções inteiras por causa de um único selo: 'Eu era meio compulsivo, sabe?'
Imagem: Ana Lima/UOL

'Santo Graal' da filatelia

Cinquenta anos depois, Ananias não sabe dizer ao certo quantos selos tem. "Centenas de milhares", arrisca. Os itens mais valiosos, não à toa, são os três Olhos de Boi, de 30, 60 e 90 réis, que completaram em 1º de agosto, Dia Nacional do Selo, 180 anos.

"São o 'Santo Graal' da filatelia brasileira", define, orgulhoso. Para guardar sua coleção sã e salva de traças e outros bichos, Ananias aluga uma casa ao lado da sua, em Brasília (DF), onde mora há sete anos. Sua cidade natal não seria adequada à conservação de sua coleção. "É muito úmida. Atrai ferrugem", explica.

Funcionário público aposentado pela Embratel, Ananias mal acorda e já corre para o "escritório", apelido dado à casa onde guarda os selos. Lá, enquanto folheia dezenas de álbuns, o tempo parece parar. "Minha mulher reclama pra caramba, velho! Diz que passo mais tempo no escritório do que em casa."

Em abril de 2020, no comecinho da pandemia, Ananias fundou a Filabras (Associação dos Filatelistas Brasileiros), um clube filatélico virtual. Foi o que lhe ajudou, garante, a enfrentar o isolamento social. "Se eu não tivesse esse hobby, teria enlouquecido", conta. "Colecionar selos é uma terapia." Ele relata que houve filatelista, "aposentado" há mais de 30 anos, que voltou a colecionar selos durante a quarentena.

Hoje, a Filabras conta com 1,2 mil associados — desses, 80% têm mais de 50 anos. No Brasil, o total de filatelistas chega a estimados 5 mil. Crianças, jovens e mulheres são poucos. Entre outras iniciativas, Ananias organiza exposições virtuais, dá palestras em escolas e elege o selo mais bonito do Brasil. Tudo para incentivar sua paixão entre os mais jovens. "É difícil", reconhece. "Essa geração nunca mandou carta. Nem sabe o que é selo."

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No detalhe, o item que pode custar de R$ 200 até R$ 30 mil, de acordo com o estado de conservação
Imagem: Ana Lima/UOL

'Viajar sem sair de casa'

Ananias sabe bem do que está falando. Para sua tristeza, nenhum dos seus filhos — Camila, de 32, e Paulo, de 29 — se interessa por selos. "Por mais que eu tentasse, nunca gostaram." Por isso, já pensou, diversas vezes, em se desfazer de sua coleção. "Tem filatelista por aí que, quando morre, a família vende a coleção dele por um valor irrisório", explica.

Certa ocasião, comentou com um amigo de Santa Catarina que estava pensando em vender seus selos. No dia seguinte, recebeu duas propostas. "Não vendo por menos que R$ 100 mil", avisa. "Tem gente que compra para revender. Paga, no máximo, 10% do que vale."

Nas palestras que dá Brasil afora, Ananias explica que a filatelia é uma ciência que estuda os selos e a história postal de um país. "São verdadeiras obras de arte impressas em pedaço de papel", sintetiza.

Se o Olho de Boi é o primeiro selo impresso do Brasil, o Penny Black, com a efígie da Rainha Vitória (1819-1901), é o primeiro do mundo. Surgiu na Inglaterra, no dia 6 de maio de 1840. Até então, prossegue Ananias, não havia selos. Pagava a postagem quem recebia a carta, e não quem a mandava. "Por diversas vezes, quando o carteiro chegava para entregar a correspondência, o destinatário se recusava a pagar. E devolvia a carta."

Foi por isso que Rowland Hill (1795-1875), um membro do Parlamento Inglês, criou o selo postal. "Colecionar selos é viajar pelo mundo sem sair de casa", filosofa.

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'Filatelia é um vírus', diz o colecionador: 'Quando pega, rapaz, não tem cura'
Imagem: Ana Lima/UOL

'Vírus sem cura'

Para quem pensa em começar uma coleção, ele dá dicas. A primeira, e mais importante: definir um tema. Pode ser fauna, flora, esporte? Com exceção da Rainha Elizabeth II (1926-2022), a mais famosa filatelista do planeta, que recebia correspondência do mundo inteiro, ninguém consegue colecionar tudo. É praticamente impossível.

Ananias, por exemplo, gosta de selos do Brasil, tanto regulares quanto comemorativos. Tem especial predileção, diz, por selos aéreos e da Cruz Vermelha. Outra dica: a filatelia não é um hobby caro. Qualquer um pode iniciar uma coleção a partir de exemplares usados. "O que torna um selo caro é sua tiragem", revela. "Quanto menor a tiragem, mais valioso o selo".

Um bom exemplo disso é o One-Cent Magenta, da Guiana Britânica, impresso em 1856. Considerado o mais raro do mundo, foi arrematado por 6,2 milhões de libras, algo em torno de R$ 37,8 milhões, em um leilão realizado em 2021. Octogonal, foi impresso em preto sobre papel magenta e mede 29 milímetros por 26 milímetros. Traz um navio de três mastros com o lema Damus Petimus Que Vicissim ("Damos e Pedimos Que Devolvam", em livre tradução).

O colecionador também ensina que o valor de um selo depende de seu estado de conservação. Há Olhos de Boi, por exemplo, que podem sair por R$ 30 mil. Outros, no entanto, não custam mais do que R$ 200. Motivo? Estão rasgados. "Quando me perguntam o que é filatelia, respondo: um vírus. Quando pega, rapaz, não tem cura", brinca.