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Marcos do Val se vê como Superman, mas age como 'kriptonita' em Brasília

O senador Marcos do Val (Podemos-ES), no elevador que leva ao seu gabinete, em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress
O senador Marcos do Val (Podemos-ES), no elevador que leva ao seu gabinete, em Brasília
Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

André Borges

Colaboração para o TAB, de Brasília

01/08/2023 04h01

Quem sai do elevador no 18º andar da torre do Senado, no Congresso Nacional, vê uma foto gigantesca do senador Marcos do Val (Podemos-ES), 52, arregaçando o paletó e puxando a gravata para o lado, como quem quer revelar sua verdadeira "identidade", tal qual um Clark Kent. Em vez de um "S" de Superman, Do Val traz no peito a sigla "Swat" (armas e táticas especiais, em inglês), com o logotipo da unidade de polícia norte-americana da qual ele se gaba de participar.

No fim do corredor está a porta que dá acesso a seu gabinete pessoal, mais reservado, tomado por medalhas de honra e referências a "heróis" — um pomposo elmo romano com crista vermelha, uma espada samurai, bonequinhos de soldados armados e almofadas estampadas com águias douradas e as letras "SPQR", abreviação para "Senatus Populusque Romanus" (o senado e o povo romanos, em tradução literal). Na mesa, o senador deixou uma Bíblia aberta na página da "Oração de Habacuque", que diz: "Tenho ouvido, ó Senhor, as tuas declarações, e me sinto alarmado".

Quem também anda alarmado é o comando do Podemos, e não pelas declarações do Senhor, mas do senador.

Não é de hoje que integrantes da legenda que abriga o parlamentar desde agosto de 2019, políticos de sua base no Espírito Santo e seus convivas no Congresso dizem que Do Val tem lhes provocado constrangimento. Ao TAB, eles contam que, muitas vezes, não conseguem nem compreender a lógica dos passos erráticos do senador, que parecem oscilar entre ficção e realidade.

Diante das diferentes versões que o senador deu sobre uma tentativa de golpe pelo governo Jair Bolsonaro (PL), a própria Polícia Federal tem encontrado dificuldade não só para separar o que é verdade ou mentira, mas para compreender, no fim das contas, quais são as reais intenções de Do Val.

Gabinete do senador Marcos do Val - André Borges/UOL - André Borges/UOL
Imagem: André Borges/UOL
Gabinete do senador Marcos do Val - André Borges/UOL - André Borges/UOL
Imagem: André Borges/UOL
Gabinete do senador Marcos do Val (Podemos-ES) - André Borges/UOL - André Borges/UOL
Gabinete do senador Marcos do Val, no 18º andar da torre do Senado
Imagem: André Borges/UOL

'Cada um usa a arma que tem'

Dentro do comando do Podemos, os nervos ficaram à flor da pele, mais uma vez, em 1º de junho, quando o senador entrou na arena do Twitter para atacar Flávio Dino (PSB). Dessa vez, Do Val quis comparar o "volume" de sua sunga com a do ministro da Justiça.

Dino, que não tinha nada a ver com a rinha digital do dia, acabou arrastado à confusão: Do Val fizera um post mais uma vez citando seus cursos na Swat, um usuário o chamou de "anão" e, de pronto, o senador publicou uma fotomontagem ao lado do ministro, com a legenda "cada um usa a arma que tem".

A fixação de Do Val com Dino não é de agora. "O senhor tem se dedicado a vídeos difamatórios, agressivos contra mim, obsessivos", comentou o ministro, durante audiência no Senado, em 5 de maio. "Se o senhor é da Swat, eu sou dos Vingadores", ironizou.

"O partido ficou de cabelo em pé com o episódio da sunga", resume uma fonte da alta cúpula do Podemos. "Achei que ia ser a gota d'água para ele, depois de tudo o que estamos vendo." Não foi.

Na legenda, dizem interlocutores, espera-se que o senador submerja. Não há clima para propor sua expulsão, mas, nos bastidores, nenhum correligionário do alto escalão lamentaria se o senador pedisse para sair.

E Do Val quase saiu. Em fevereiro, ele estava de malas prontas para o PL, partido de Bolsonaro, até que eclodiu o caso da trama golpista, revelado pela revista Veja — à época, o senador declarou que foi coagido pelo ex-presidente e pelo ex-deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) para se aliar a eles num golpe de Estado. Precisou desfazer as malas.

Surfando a onda bolsonarista, Do Val teve 863 mil votos e foi eleito pelo PPS (atual Cidadania), em 2018. Mudou para o Podemos, em 2019, engrossando a então segunda maior bancada do Senado.

O senador Marcos do Val durante a CPMI do 8 de Janeiro, em Brasília - Wallace Martins/Futura Press/Folhapress - Wallace Martins/Futura Press/Folhapress
13.jun.2023 | O senador durante sessão da CPMI do Atos de 8 de Janeiro
Imagem: Wallace Martins/Futura Press/Folhapress

Bastidores

Até entre amigos muito próximos, há quem admita simplesmente não entender as jogadas políticas do senador. Em dezembro, quando conversava no WhatsApp com suas "Amigas para a eternidade", um grupo com quatro amigas, Do Val discorreu sobre detalhes do suposto golpe.

Embora fizesse questão de destacar que estava envolvido num assunto extremamente sigiloso, que seria capaz de mudar os rumos do país, o senador se sentiu à vontade para enviar "prints" de conversas com Silveira e Bolsonaro, além de mensagens encaminhadas ao ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal). Segundo ele, a ideia era gravar clandestinamente uma declaração comprometedora (hipotética) do ministro para, ao fim, pedir a anulação das eleições de 2022.

As amigas festejavam a chance de impedir Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de assumir a Presidência. "Eu tô vibrando, vibrando, mas já vou apagar a mensagem!", dizia uma delas. "Tudo aqui é secreto."

O senador jactava-se de poder definir o destino de dois presidentes da República. "Estou com a bomba da [sic] mão para destruir Bolsonaro e outra para destruir o Lula", escreveu. Bolsonaristas, as amigas não entenderam o raciocínio ambíguo de Do Val — como destruir Bolsonaro também seria de seu interesse? Elas tentaram lembrá-lo de quem deveria ser seu alvo efetivo. "Amigo?. prioridades", escreveu uma delas.

"Amores, acabei de sair da Granja do Torto. Ele [Bolsonaro] me chamou com urgência e me pediu uma ajuda em uma missão para o Lula não ser empossado", escreveu em outra mensagem às amigas, tratando de um possível plano para golpe com a trivialidade de quem vai comprar pão na padaria.

Ao depor na PF, o senador mudou de versão. Procurou isentar Bolsonaro e direcionou a autoria do golpe a Silveira. Também escreveu para o ex-presidente, culpando Silveira e dizendo ainda que tinha contado "tudo" para Moraes. Bolsonaro respondeu, resumindo a história com apenas três palavras: "Coisa de maluco".

Até os agentes da Polícia Federal que analisaram as conversas tresloucadas de Do Val ficaram sem entender qual era o papel de cada um nessa trama. No relatório de 54 páginas de análise do celular do senador, a PF achou melhor elencar hipóteses.

N.º 1: Silveira estaria usando o nome de Bolsonaro para tentar dar credibilidade à sua tentativa de orquestrar um golpe. N.º 2: Silveira, Do Val e Bolsonaro se encontraram, mas para tratar de outros assuntos. N.º 3: "a atuação de caráter absolutamente ambíguo de Marcos do Val", alimentada por "prints de conversas com as mais altas autoridades da República, colocando-as umas contra as outras", tinha um propósito específico: "angariar prestígio pessoal e político". Em outras palavras, tentar parecer importante para aliados e amigas.

Depois, Do Val disse que tudo não passou de "técnicas de inteligência" e que havia "manipulado" a imprensa com informações intencionalmente desencontradas. Teve de voltar à PF para prestar novos esclarecimentos. Dessa vez, disse que, para se afastar da empreitada golpista, sugeriu submeter o plano à "inteligência americana" para enganar Silveira.

Senador Marcos do Val (Podemos-ES) e o secretário-geral adjunto da Mesa do Senado Federal, Ivan Furlan Falconi - Jefferson Rudy/Jefferson Rudy/Agência Senado - Jefferson Rudy/Jefferson Rudy/Agência Senado
19.jun.2023 | Do Val, pouco antes de sair de licença médica por burnout
Imagem: Jefferson Rudy/Jefferson Rudy/Agência Senado

Burnout

Do Val tem um jeito um tanto singular de lidar com a imprensa — o TAB viu de perto. No fim de julho, a reportagem abordou a assessoria do senador sobre as recorrentes menções de sua atuação na Swat, nos Estados Unidos. Após mostrar os diplomas e uma homenagem de "membro honorário" que o parlamentar recebeu, em 2003, a assessoria compartilhou o contato de dois agentes norte-americanos.

Eram o tenente Kelly Cole e o policial Christian D'Alesandro, ambos do Texas. D'Alesandro também se apresenta como instrutor da empresa de Marcos do Val, a Cati, voltada para treinamento policial. A reportagem procurou os agentes por escrito, citou dados públicos utilizados pelo próprio senador sobre sua atuação na Swat, e apenas perguntou se eles queriam comentar o assunto. Eles não responderam.

Já Do Val pegou "prints" da pergunta do TAB (que os números atribuídos aos agentes lhes enviaram) e os expôs num grupo de jornalistas, acusando a reportagem de parcialidade. "Será que [eu] conseguiria enganar esses policiais, a imprensa e os brasileiros por tantos anos? Não se convenceram ainda que é verdade [que faço parte da Swat]? Há 30 anos, dou aulas para policiais ao redor do mundo", escreveu. Após o episódio, a assessoria pediu desculpas e disse que não sabia o que o senador faria.

Num longo texto, disse que é alvo de perseguições políticas e que "por trás do senador Marcos do Val, há um homem cansado de lutar sozinho". Atribuiu a si a luta para "descobrir os responsáveis" e revelar a verdade na CPMI que investiga os atos golpistas de 8 de janeiro — embora tenha pedido licença médica, em 20 de junho, no início das investigações e, segundo sua própria assessoria, não tenha data confirmada para retornar ao Congresso. Enquanto os demais parlamentares voltam do recesso nesta terça (1º), Do Val depende de um novo parecer médico, mas "o desejo dele é voltar", segundo sua assessoria.

Três dias depois, D'Alesandro respondeu dizendo que os dados citados pelo TAB eram "precisos". "Marcos [do Val] trouxe um aspecto totalmente novo para as equipes táticas da Swat no Texas. Ele deve ser considerado um tesouro nacional para todos os brasileiros."

A despeito da mística ao redor da Swat, há outros detalhes no currículo que Do Val divulga. Depois de servir o Exército, diz que se tornou mestre em aikido, uma arte marcial japonesa. Em suas passagens pelos Estados Unidos, afirma que treinou agentes do FBI, da DEA, a agência antidrogas norte-americana, e da Nasa, a agência espacial. Também diz que treinou militares das Forças Armadas daquele país e que deu instruções para a Academia Nacional de Polícia em Roma, na Itália, onde instruiu seguranças do papa.

No Espírito Santo, diz um membro do alto escalão do governo estadual, a expectativa de eleitores e do governo é a de que o senador passe a se concentrar nas pautas do estado que o elegeu. Recém-eleito, Do Val disse que entregaria o mandato, mas depois desistiu da ideia, em 2 de fevereiro.

No seu aniversário de 52 anos, em 15 de junho, foi alvo de uma operação de busca e apreensão da PF, que, além de passar por seu gabinete no Congresso, visitou seus endereços em Brasília e Vitória. No dia seguinte, o senador lançou um livro sobre seus feitos nos primeiros quatro anos de mandato, na capital capixaba.

Quatro dias depois, passou mal no gabinete e teve de ser atendido pelo serviço médico do Senado. O mal-estar foi um processo de "burnout", um forte estresse emocional e psicológico, de acordo com sua assessoria. A vaga que ele ocupava na CPMI do 8 de janeiro passou para o senador Marcos Rogério (PL-RO).

Do Val foi aconselhado a se afastar e "botar a cabeça no lugar", inclusive pelo presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-RO), segundo o TAB apurou.

"O que se espera é que ele atue como senador", diz um membro do Palácio Anchieta, sede do Poder Executivo no Espírito Santo. "Ele venceu a eleição num momento em que era moda aquela rejeição à experiência política, mas hoje ele é senador. Não dá para tratar Brasília como uma 'kriptonita'."

Nas ruas de Vitória, sem seu uniforme da Swat, Marcos do Val está longe de ser confundido com um super-herói. Enquanto passeava pela praia de Camburi, durante sua licença médica e recesso parlamentar, foi chamado de "maior vergonha da política capixaba, caminhando aqui de boa". O senador foi embora. "Foge mesmo, você tem que se tratar, e não é o coração, não. É a cabeça."