Advogado galês das vítimas do desastre de Mariana criou 'unicórnio legal'
Na primeira vez em que ouviu falar do desastre ambiental de Mariana, o advogado Thomas Goodhead, 40, não sabia uma palavra de português, nunca havia visitado o Brasil, nem tinha conexão emocional com brasileiros. Ainda assim, reativou um medo de infância. Viu-se menino novamente, olhando pela janela da casa em que morava no vilarejo de Risca, no sul do País de Gales. Lembrou das cicatrizes deixadas na montanha, do outro lado do vidro, pela mineração de carvão.
Poderia ter sido com ele, com seu povoado e sua família. Desse momento nasceu uma obsessão profissional, uma paixão pessoal e a defesa de um caso: o que ele costuma definir como o maior processo coletivo de todos os tempos.
Thomas, ou Tom, como é chamado pela mídia britânica, é o advogado por trás de uma ação, na Inglaterra, contra a BHP Billiton, uma das acionistas da mineradora brasileira Samarco. Busca uma indenização de US$ 44 bilhões, cerca de R$ 230 bi, para as vítimas do desastre de Mariana.
O caso foi trazido para a justiça britânica por iniciativa dele, em 2018, atendendo a um pedido do advogado brasileiro Leonardo Amarante. Os dois se encontraram em 2017, numa conferência da Global Justice Network, rede formada por advogados que trabalham juntos em casos transfronteiriços. Amarante perguntou o que Tom poderia fazer para buscar uma reparação justa às vítimas do rompimento da barragem. E fez o convite que pode mudar o rumo da história dos crimes ambientais brasileiros: "Vem para o Brasil."
De Newport a Mariana
Durante o século 19 e o início do século 20, a mineração foi uma das principais forças da economia do País de Gales. Era comum em vilarejos como Risca, perto da cidade de Newport, onde Tom cresceu, ver as montanhas moldadas pela extração de carvão e ter boa parte da população empregada na área. O bisavô do advogado era um desses trabalhadores e aparece em álbuns da família coberto de fuligem. Por lá, as minas fecharam na década de 1990, deixando uma economia fragilizada, em comparação a outras áreas do Reino Unido, e uma população mentalmente abalada.
"Acho que ninguém diria: 'Eu gostaria de ter mais mineração na minha comunidade'", diz. Tom foi buscar inspiração em outros ancestrais para a vida profissional. Ele é sobrinho-neto de Aneurin Bevan, ex-ministro da saúde no Reino Unido, mais conhecido por ser o responsável pela criação do NHS, Serviço Nacional de Saúde — no qual o SUS (Sistema Único de Saúde) foi inspirado. Bevan ascendeu à política ao se destacar como líder sindical dos mineiros do Sul de Gales.
Durante a adolescência, Tom pensou em seguir carreira no parlamento e tinha o sonho de se tornar primeiro-ministro. Chegou a anunciar que concorreria a um cargo público em 2007, mas diz que foi melhor ter enveredado pelo mundo jurídico. "Há uma tendência horrível de as pessoas se tornarem políticos profissionais sem nunca ter feito nada mais. Portanto, se algum dia eu entrar para a política, espero que seja por ter tido uma vida e uma experiência, por ter conhecido o mundo real", afirma.
Tom tem licenciatura em Filosofia, Política e Economia pela Universidade de Oxford e mestrado em Política e Política Educacional pela Universidade de Cambridge. Também estudou advocacia na City University, em Londres. Um currículo habilitado a qualquer alto cargo de advogado de grandes corporações. Mas Tom, nem nas roupas casuais, nem no jeito despojado, deseja isso. Prefere fazer mudanças no mundo.
"Gosto de seres humanos. Quero que meus clientes sejam rostos com os quais eu possa me relacionar, que me lembrem meus familiares e amigos." Em seus primeiros sete anos de carreira, atuou em casos de negligência médica — a favor das vítimas e muitas vezes contra o NHS. Já advogou para quem ficou sem atendimento na emergência ou recebeu medicamento incorreto. Casos que o levaram a trabalhar com ações coletivas no exterior, envolvendo multinacionais e crimes ambientais. Como, por exemplo, o escândalo Dieselgate, quando a Volkswagen falsificou resultados das emissões de poluentes dos motores a diesel.
Não descarta a política, nem o antigo sonho do posto de primeiro-ministro, mas hoje tem outras prioridades. "Enfrentar essas grandes corporações em nome de pessoas que, de outra forma, não teriam acesso à justiça, é algo que me motiva."
Um gringo e um país
Em setembro de 2017, Tom embarcou para o Rio de Janeiro e ficou só quatro dias. A primeira impressão deixada não foi das melhores: a cidade vivia sob a tensão do conflito entre Nem e Rogério 157 pelo controle do tráfico de drogas na Rocinha. "A essa altura eu já estava viciado no caso Mariana e comecei a procurar pessoas que pudessem me ajudar. Eu não tinha um escritório de advocacia, era apenas um homem, sozinho", lembra Tom.
Sete meses depois, voltou ao Brasil, desta vez para Belo Horizonte. Conseguiu um motorista, que também era professor de inglês, foi até Mariana e ficou conversando com pessoas aleatórias nas ruas. Voltou em julho do mesmo ano, desta vez com advogados que contratou em Londres e passou quatro meses. As viagens ao Brasil repetiram-se pelo menos 60 vezes.
Boa parte do interesse de Tom em Mariana tem a ver com a paixão que adquiriu pelo Brasil. O advogado preenche todo o clichê de gringo fascinado pelas brasilidades, e não se incomoda em admitir. Ama o Rio de Janeiro. Não consegue acreditar ter conseguido um emprego que o permite estar à distância de um olhar do mar e da Mata Atlântica. Em São Paulo, tem convicção de que encontrou os melhores sushis e restaurantes do mundo. Ainda pretende conhecer as Cataratas de Foz do Iguaçu e as praias de Florianópolis.
A despeito dos estereótipos britânicos, abre sorriso fácil, aperta a mão com vigor e estica a conversa sem cansar. Não à toa, foi líder da Oxford Union, autointitulada "a sociedade de debates mais prestigiada do mundo", quando estudante. Ele presta atenção ao interlocutor, formula argumentos com facilidade e encadeia o raciocínio sem perder a lógica. Sente-se confortável com os brasileiros, entre os quais achou amigos de longa data.
"É um país em que as pessoas são tão amigáveis, calorosas, receptivas, abertas, como nunca vi em nenhum outro lugar do mundo", diz. Tom sonha se mudar para cá por seis meses, mas ainda não conseguiu convencer a esposa.
Um advogado e um escritório
É difícil precisar se a carreira e a personalidade de Tom forjaram os últimos cinco anos jurídicos do caso Mariana ou se o caso Mariana determinou os últimos cinco anos da vida profissional do advogado. Naqueles quatro meses que passou no Brasil, ele percorreu as cidades do entorno da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, conversando com advogados das vítimas, lideranças indígenas e quilombolas, gestores municipais, padres e pastores, clubes de futebol. Brasileiros que, em comum, foram atingidos pela lama. O objetivo era reunir interessados em abrir o caso na justiça inglesa. Reuniu 200 mil pessoas.
Na época, sua equipe jurídica não passava de 15 profissionais. Mariana forjou o Pogust Goodhead, considerado o "primeiro unicórnio legal", com um aporte recebido de US$ 300 milhões. A empresa está no décimo primeiro andar de um prédio espelhado, quase nas margens do Rio Tâmisa, com vista para a Torre de Londres e a Tower Bridge, mas nem de longe se assemelha ao conceito de riqueza baseado em mesas de mármore e piso de porcelanato.
O luxo de lá está entre um terraço semiaberto com sofás, local preferido dos brasileiros pela exposição ao sol, e os casos que lidera. O Pogust atende também vítimas da Braskem, pelos afundamentos em Maceió (AL); atingidos pela contaminação provocada pela Norsk Hydro em Barcarena (PA); afetados pela TÜV SÜD, no rompimento da barragem em Brumadinho; e aos que tiveram a vida comprometida com o afundamento do navio Haidar (PA).
O escritório cresceu, tem cerca de 900 funcionários, dos quais 550 no Brasil. No caso Mariana, ele trabalha em parceria com outros 3 mil advogados, representantes de vítimas. Ao todo, são 850 mil brasileiros depositando as esperanças na equipe.
Tom, e sua disponibilidade com os clientes, é um trunfo. Eleito em janeiro deste ano como um dos 100 melhores advogados do Reino Unido pela The Lawyer, ele ocupa os cargos de sócio e CEO do escritório. Apesar da pompa dos nomes, está bem próximo da operação e faz questão de manter essa relação direta com os afetados. Só no ano passado, foi pelo menos seis vezes a Minas Gerais.
'Senso de justiça'
Tom conta que viaja porque precisa ver o rosto das pessoas. Quer conhecer as vítimas, os impactos e discutir com outros advogados a situação individual de cada um. O escritório tem um questionário para mensurar o dano na realidade de cada vítima. "Ele tem um senso de justiça e é realmente apaixonado pelo caso", diz a brasileira Caroline Narvaez Leite, 34, diretora jurídica no Pogust. "Sabemos que é um negócio, claro, mas Tom é uma pessoa com excelente coração. Nós temos uma reunião semanal, e a maior preocupação dele é sempre com as pessoas", garante ela.
Mesmo emocionado com as belezas brasileiras, Tom sabe tudo da política nacional e reconhece os desafios socioeconômicos do país. Sabe que alguns danos nunca serão reparados, como a relação do povo Krenak com o Rio Doce, mas dá o mínimo que pode: atenção. "Ele sempre esteve na aldeia, explicando o andamento do processo, cada passo. Isso traz proximidade, e as pessoas sentem mais confiança. Não é uma relação de piedade, é transparente com os ganhos de cada lado, é de companheirismo", afirma Marcelo Krenak, 32, vice-cacique de uma das oito aldeias Krenak, em Resplendor (MG).
Tom dá atenção às pessoas e quer que o mundo também dê, mesmo oito anos após o ocorrido em Mariana. Em outubro de 2024, ocorrerão as audiências para julgar as responsabilidades da BHP. Há esperança por um acordo. É por isso que ele trabalha dia e noite e sequer conseguiu terminar de assistir a terceira temporada de Succession. Não tem o tempo que desejaria para ocupar a cabeça com os streamings, mas chegou ao episódio da 3ª temporada de The Crown em que a rainha Elizabeth Segunda visita a vila de Aberfan, em Gales, destruída após o colapso de uma mina.
Nesse caso célebre, 144 pessoas morreram, foi provado que a organização responsável ignorou os alertas de risco, mas ninguém foi criminalmente punido. Tom espera que o processo de Mariana abra novos caminhos. "É muito importante trabalhar o tempo todo para conscientizar as pessoas de que elas só podem viver a vida que vivem porque alguém está se dedicando à mineração em um país da América Latina. E que, quando algo dá errado lá, há um dever moral de corrigir o problema", conclui.
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