Mulher que passou 54 anos em trabalho escravo conta como é estar livre

Toda noite, quando a novela termina, Madalena Santiago, 64, arrasta a mesinha de centro para o canto da sala, pega o colchão que guarda atrás da porta e estende no chão para dormir. Já leva mais de um ano, mas ela ainda não consegue descansar na cama nova que fica no quarto novo da casa nova. Madalena foi vítima de trabalho análogo à escravidão por 54 anos e, em dezembro de 2021.

Depois de alguém escapar ou ser resgatado dessa situação, é levado a um abrigo até que a situação seja analisada. Madalena preferiu ficar na casa de uma vizinha por um tempo.

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O primeiro passo é tentar encontrar familiares — quando isso não acontece, a pessoa é inscrita no aluguel social e em outros programas de auxílio, de modo que possa recomeçar a vida. Ao mesmo tempo, iniciam-se consultas para lidar com os traumas.

Madalena, ou Madá, como as assistentes sociais se referem a ela, nasceu numa região de Amaralina, na periferia de Salvador. Aos oito anos, foi morar com um casal do bairro. Ela conta que tinha uma lista de tarefas a cumprir e que logo passou a trabalhar também em um sítio deles em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana.

"Eu fazia tudo, lavava, passava e cozinhava. Cuidava da casa e das filhas deles. Não tinha outra empregada, eu era a única. Fui muito maltratada. Nos dias que eu pedia uma folga para ver minha família, eles diziam 'pra quê você quer ver?', e falavam que eu tinha que ficar em casa com eles", conta.

Ela ainda se emociona ao lembrar do período em que trabalhava das 5h até a hora de dormir, sem salário, sem carteira assinada, sem férias e sem contato com os parentes. Madalena não frequentou a escola, não sabe ler e escrever e, por isso, tem dificuldade em fazer coisas como ir ao banco, ao médico e às sessões de terapia.

'Quer que eu faça almoço?'

A mulher que passou cinco décadas cuidando de uma família que não era a sua reencontrou os parentes, mas escolheu morar sozinha, de aluguel, em uma casa com quatro pequenos cômodos — por uma questão de segurança,o endereço não será revelado. Mas ela reclama do silêncio. "Ainda estou me acostumando, adoro receber visitas. Quer que eu faça um almoço para vocês?", pergunta à reportagem do TAB.

Dois anos depois de sair do lugar onde trabalhou e viveu por cinco décadas, Madá ainda caminha de cabeça baixa, tem voz suave e um leve sorriso.

"Quando a gente almoça na casa dela, ela põe a mesa e fica em pé. É preciso insistir para que ela se sente para almoçar junto ou para que nos deixe lavar a louça. Madá entende que essas são suas obrigações. É um processo lento de desconstrução", explica a assistente social Tânia Maia, 52.

Depois do resgate, Madalena teve a primeira festa surpresa de aniversário, realizou o sonho de abraçar Ivete Sangalo e estava animada porque iria conhecer a Arena Fonte Nova, principal estádio de futebol de Salvador. A empregada doméstica nunca tinha ido à praia.

"Depois que saí de lá [casa dos patrões], eu fui, mas não gostei muito. Não me senti à vontade", disse. Questionada por qual motivo, ela procurou as palavras. "Minha cor, não sei dizer... Não parece certo", diz.

Madalena conta que gostava de ver os repórteres na televisão e que, certa vez, disse para a patroa que tinha o sonho de ser jornalista. "Ela me respondeu, 'você já viu jornalista negra? Isso não é para você'. Aquilo me deixou muito mal, e eu nunca esqueci."

Hoje, ela passa os dias vendo telejornais e novelas. A psicóloga Ana Paula Gama conta que as primeiras sessões com Madalena foram as mais difíceis — ela chorava bastante. "Ela sentia que de alguma forma era uma pessoa inferior. Trabalhamos muito essa questão do racismo e hoje ela está melhor", conta.

Mesmo sem carteira assinada e sem salário, Madalena foi aposentada pela família que a explorou, mas não recebia o dinheiro. Foram feitos R$ 30 mil em empréstimos em seu nome.

Madá recebeu apoio de diversas partes do país. Ela guarda no quarto uma boneca preta enviada por alguém de Minas Gerais, ao lado do porta retrato com a única fotografia que possui. O registro foi feito logo após o resgate. Ela também foi a homenageada do movimento Julho das Pretas de 2023, que celebra a identidade negra.

Gota d'água

Madalena tem diversos relatos de agressões verbais por parte dos antigos empregadores, mas conta que a gota d'água veio depois de uma agressão física.

"Ele [o patrão] era mais tranquilo, mas ela me tratava muito mal. Me chamava de negra desgraçada e imunda, dizia que eu não tinha valor nenhum. Um dia, avançou em mim e tentou me sufocar. Naquele dia eu saí de lá chorando para nunca mais voltar", relata, enxugando as lágrimas.

Sem destino certo, Madalena bateu na porta de uma vizinha. Os moradores incentivaram que ela procurasse o MPT (Ministério Público do Trabalho). A história ganhou as manchetes dos jornais e provocou comoção depois que uma cena viralizou. Durante uma entrevista, a repórter, uma mulher branca, tentou tocar as mãos de Madalena, mas a vítima recusou argumentando que era errado e que ela tinha receio. "Tenho medo de sujar você", afirmou.

O MPT conseguiu o bloqueio de R$ 1 milhão em bens da família acusada de manter Madalena em trabalho análogo à escravidão. O valor é para arcar com os direitos trabalhistas e com a indenização. O processo ainda está em andamento. Gláucio Morais, coordenador da Secretaria de Políticas Afirmativas, Direitos Humanos e Igualdade Racial de Lauro de Freitas, explicou que os acusados estão respondendo também criminalmente e podem ser condenados a até 4 anos de prisão.

Em alguns casos, o poder público consegue intermediar postos de trabalho para os resgatados. Foi o que aconteceu, por exemplo, com 11 trabalhadores baianos que estavam em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves (RS).

Outras vítimas são acolhidas pela própria família, como foi o caso de uma mulher que foi morar com os familiares em São Gonçalo (BA), depois de 20 anos sendo explorada na capital.

As autoridades frisam que trabalho escravo é crime, independentemente do contexto, e que precisa ser denunciado. Existem canais específicos nos estados e o Disque 100, que é nacional. Não é necessário se identificar.