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No fogo cruzado entre Estado e crime, população do Guarujá fica em risco

O morador pobre do Guarujá, que vive sob o fogo cruzado entre a força do Estado e a força paralela, tem receios: o de não saber se irá jantar, não saber se terá trabalho, não saber por quanto tempo terá saúde ou mesmo se estará vivo no dia seguinte.

Se, além de pobre, esse morador for negro e com passagem criminal, o medo é dobrado.

A cidade, que nas últimas semanas foi alvo da Operação Escudo da Polícia Militar28 pessoas foram mortas—, tem pouco mais de 280 mil habitantes e um IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) considerado médio.

Quem tem mais acesso a educação, saúde, lazer, esporte, cultura, segurança, e, consequentemente, a uma vida mais tranquila mora perto da orla, próximo a uma das praias paradisíacas de norte a sul do município.

Longe do mar, em morros e sertões, há muitos bairros periféricos e favelas. Ali, a população tem de conviver diariamente com terra batida e lama. A fome e a violência são escancaradas.

Sem acesso a itens básicos de sobrevivência, alguns jovens abraçam a ideia da organização criminosa local, compreendida como a única a oferecer o mínimo de atenção à população carente.

Favela de palafita no Guarujá; do outro lado, porto de Santos
Favela de palafita no Guarujá; do outro lado, porto de Santos Imagem: Luís Adorno/UOL

Criminalidade cresce no Guarujá

Quem vive bem, próximo aos quiosques das praias das Astúrias, Pitangueiras, Enseada e Perequê, também sente medo, mas de um jeito diferente: o temor é alguém tomar aquilo conquistado honestamente.

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Essas pessoas costumam dizer, nas padarias e restaurantes da região, que o Guarujá não é mais o mesmo. E estão certas. No primeiro semestre, 4.103 roubos e furtos foram registrados na cidade —crescimento de 25% ante o mesmo período de 2022.

Historicamente, a violência urbana tem como boom a desigualdade social: quanto mais pobre a população de um local, maior tende a ser o desemprego e, consequentemente, o risco de violência.

A falta de atenção do Estado vira uma arma poderosa para o PCC, que tem na Baixada Santista um de seus QGs mais fortes devido ao porto de Santos. Essa realidade afeta todas as cidades da região, independentemente da classe social.

Área de mangue onde PMs mataram pessoas na favela de Morrinhos 4, segundo testemunhas
Área de mangue onde PMs mataram pessoas na favela de Morrinhos 4, segundo testemunhas Imagem: Luís Adorno/UOL

População à deriva

Em uma favela próxima à praia de Pernambuco, Joana (nome trocado pela reportagem) vai à orla todos os dias empurrando um carrinho de raspadinhas para levar sustento a ela e seus filhos.

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Pouco depois da morte do soldado Patrick, que desencadeou a Operação Escudo da PM, ela foi acordada por um dos filhos de madrugada: "Mãe, tem polícia aí".

"Eu estava deitada na minha cama. Entraram na minha casa com uns cachorros e, quando eu fui ver, estavam na sala armados. Entraram no quarto, apontando arma para mulher, criança. Entram na casa de cidadão de bem como se a gente fosse lixo", afirmou.

Vista de barraco na favela Sítio Conceiçãozinha, no Guarujá
Vista de barraco na favela Sítio Conceiçãozinha, no Guarujá Imagem: Luís Adorno/UOL

A trabalhadora disse que policiais não encontraram nada ilegal após uma vistoria. "Eu fui a primeira: 'Quer documento? Tome'. Mas ao menos peça para entrar. Não é assim. Pegam a pessoa de surpresa, dormindo. Meus filhos ficaram apavorados."

"Depois, disseram: 'Disponham da Baep'. Mas depois que entraram na minha casa? Fazem isso na casa de todo mundo. Entram sem permissão e matam quem acham que deve morrer, por uma tatuagem ou por erro do passado."

Eles têm o trabalho deles, a gente respeita, cada um com o seu trabalho. Mas que façam o certo, a justiça certa. Não matem só porque acham que a pessoa é bandida. Procurem saber direito.
Joana, moradora de favela próxima da praia de Pernambuco

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Bem distante dali, nas palafitas da favela de Sítio Paecara, em Vicente de Carvalho, vive Rafaela (nome também alterado pela reportagem), em uma casa de madeira sobre a maré, que tem como vista os navios cargueiros do porto de Santos.

Ela trabalha de domingo a domingo como catadora nas praias do Guarujá. E o pouco que tinha de bens materiais foi quebrado em três invasões que policiais fizeram em seu barraco durante a Operação Escudo.

"Na primeira vez, quando cheguei em casa, estava tudo arrombado. Aí, a vizinha falou que PMs tinham estourado o cadeado. A televisão foi jogada no chão e o DVD ficou todo quebrado", disse, com olhar triste, sentada em seu colchão tomado por ácaros.

Ela mostrou à reportagem o que restou na casa: uma geladeira vazia com a porta quebrada e um fogão de quatro bocas.

Em outra favela, em Morrinhos 4, os relatos são similares.

"É muito triste o que está passando a comunidade. Trabalhadores andam com muito medo. Não existe mais sono tranquilo aqui. Toda hora a polícia vem. Muitas casas arrombadas, sustos. Você sai com medo", afirmou Diana (nome alterado pela reportagem).

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Se a casa está vazia, arrombam e reviram tudo. Quando têm pessoas, fazem bastante perguntas. Mas, fora isso, continuam vindo aqui na comunidade várias vezes por dia. Chegaram a vir de manhã e às vezes a noite.

A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo informou que a intervenção policial durante a Operação Escudo está em investigação pela Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais) de Santos, com o apoio do DHPP (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa), e pela Polícia Militar.

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