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Adolescente trans exposta por Nikolas revela drama: 'Me senti usada'

Ela é uma menina trans. Tem 15 anos e mora com a mãe em um bairro de classe média de Belo Horizonte. Como muitas adolescentes, vai a pé para a escola, gosta de rock e, na pandemia, deixou o cabelo crescer.

Mas, desde maio de 2022, desenvolveu um medo que poucos de sua idade conhecem: o medo de ir ao banheiro.

O sentimento nasceu após ser filmada por uma colega quando matava aula no banheiro feminino do Colégio Santa Maria Minas. A aluna era a irmã do então vereador Nikolas Ferreira (PL-MG), e o vídeo foi parar no canal do parlamentar, hoje deputado federal. Na postagem, ele conclamava pais a boicotarem o colégio.

"Basicamente o que eles estão fazendo é que um homem, que é um potencial estuprador, fique num ambiente cheio de mulheres", dizia Nikolas Ferreira.

Desde a postagem, a menina virou alvo de críticas e ameaças que levaram à deterioração de sua saúde mental. Seu quadro preexistente de TDAH, depressão e ansiedade agravou-se.

O vídeo alcançou 236 mil visualizações e tem mais de 5.000 comentários. No perfil da escola do Instagram, um homem escreveu: "Se continuar deixando traveco usar banheiro feminino, o bicho vai pegar pra vocês. Não desafiem os pais porque vai ser pior pra vocês".

"Fiquei arrasada, me senti muito usada e desrespeitada", disse a adolescente ao UOL.

A reportagem conversou com ela e com sua mãe para entender como a publicação do vídeo afetou o cotidiano da família. O texto não revelará seus nomes para evitar que sejam alvo de outros ataques.

"Quando vi o vídeo, mexeu muito comigo. Ele disse que a minha filha era um possível estuprador, um homem que tem pinto. Eu ia comentar, defendendo, cheguei a começar a digitar, mas desisti", afirma a mãe.

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Deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) coloca peruca e faz um discurso preconceituoso e transfóbico contra colegas no Dia Internacional da Mulher
Deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) coloca peruca e faz um discurso preconceituoso e transfóbico contra colegas no Dia Internacional da Mulher Imagem: Reprodução/Pablo Valadares - 8.mar.2023/Câmara dos Deputados

Caso foi parar na Justiça

Feito com celular, o vídeo mostra a adolescente lavando as mãos enquanto é confrontada pela irmã do deputado, que afirma que a colega não tinha direito de usar o banheiro feminino por "ser menino".

Uma funcionária da escola defende a adolescente ofendida, que se controla para não levantar a voz. A discussão foi gravada.

Quatro meses após a publicação do vídeo, Nikolas Ferreira foi eleito deputado federal pelo PL —o mais votado do Brasil em 2022 com mais de 1,47 milhão de votos.

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Em abril de 2023, o Ministério Público de Minas Gerais o denunciou pelo crime de transfobia, que desde 2019 pode ser equiparado ao de racismo, conforme decisão do STF (Supremo Tribunal Federal).

A Justiça analisou as provas do processo e, em setembro, aceitou a denúncia, tornando Nikolas réu. Se for condenado, ele pode ter de pagar indenização e perder direitos políticos. Não há previsão para a conclusão do processo.

A defesa argumenta que o deputado apenas exerceu seu papel de vereador defendendo valores conservadores próprios, amparado no direito à liberdade de expressão.

"O vídeo feito pela irmã do então vereador, que se sentiu constrangida, posteriormente foi divulgado nas redes sociais sem citar nomes ou mostrar rosto. O deputado aguarda a citação referente ao processo e informa que exercerá todos os meios de defesa nos autos do processo para ter sua imunidade parlamentar e defesa de sua manifestação do pensamento preservados", escreveram os advogados de Nikolas em nota enviada ao UOL.

Colégio Santa Maria Minas, no bairro Nova Suíça, em Belo Horizonte
Colégio Santa Maria Minas, no bairro Nova Suíça, em Belo Horizonte Imagem: Divulgação

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Caos no colégio

Mais de 50 pais e mães de crianças do ensino infantil, do fundamental e do médio ameaçaram tirar os filhos do colégio caso a adolescente continuasse a usar o banheiro feminino.

A gravação virou assunto de grupos de mães e pais da escola nos meses seguintes e mobilizou o promotor Mário Konichi Higuchi Júnior, que colheu depoimentos e reunir provas para embasar a denúncia contra Nikolas.

Marcelo Moreira, o diretor da escola, disse ao promotor que a direção se amparou na Resolução 12 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, que desde 2015 garante a estudantes trans o direito de usar o banheiro de seu gênero.

"Os pais questionaram a posição do colégio, dizendo que nós somos uma instituição católica, que não deveria permitir o uso do banheiro feminino. Isso nos trouxe muito transtorno", disse o diretor.

Alguns pais pediram a expulsão da adolescente. Outros queriam que a direção construísse um banheiro para uso exclusivo da única aluna trans da escola.

As críticas vieram também nas redes sociais, que foram inundadas de mensagens contra o colégio. "Os pais não aceitavam. Por parte dos alunos, não tivemos problema nenhum", disse o diretor.

A exceção foram dois estudantes do terceiro ano do ensino médio, que ameaçaram bater na adolescente se ela voltasse a usar o banheiro. A cena foi presenciada por outra aluna, que a confirmou ao MP.

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No entendimento do promotor, um deputado tem imunidade para dar opiniões desde que elas não configurem crime de ódio. "O então vereador incitou o ódio contra pessoas trans", afirmou Mário Higuchi.

O promotor rastreou o homem que chamou a adolescente de "traveco" nos comentários do vídeo. Ele prestou depoimento, e a cena, registrada pelo MP, serve como prova da capacidade de mobilização do discurso de Nikolas.

"Me deixei levar pelo momento e postei com raiva, por imaginar minha filha nessa situação, mas eu não conhecia as crianças envolvidas. Fui conduzido a isso, estou com muita vergonha", disse o homem em depoimento.

Mas o estrago estava feito. Nas páginas do processo, consta o laudo da psicóloga Daniela Arouca Martins, atestando que a menina trans "sentiu-se acuada, ofendida e pressionada" após a exibição do vídeo.

A adolescente já vinha sendo acompanhada pela profissional para o tratamento de ansiedade, depressão e TDAH.

"Infelizmente, por um período de tempo, [ela] foi o centro de olhares e opiniões, algumas vezes compreensivas e, em outros momentos, agressivas, a deixando assustada e voltando a ampliar seu quadro de ansiedade e medo", escreveu a psicóloga.

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"Hoje vivemos um abismo social sobre o tema no Brasil", diz o advogado Carlos Nicodemos, que representa a ONG Minha Criança Trans, que atua na defesa dos direitos dessa população e tenta se tornar parte do processo.

O deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG)
O deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) Imagem: Karoline Barreto/CMBH

Medo de ir ao banheiro em shopping

Um ano e quatro meses após o vídeo ser postado, a adolescente afirma que a escola continua respeitando seus direitos. Seu nome social está na lista de presença, no boletim e nas provas.

Quando a turma se divide nas aulas de educação física, ela fica no grupo das meninas. Nas aulas de história e de sociologia, professores orientam alunos sobre os direitos das minorias.

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Ela tem o apoio da mãe, mas o pai ainda não entendeu que agora tem uma filha, não um filho.

Seu humor tem variado. Em alguns dias se diz bem. Em outros, péssima. Mas ressalta que o tempo deve curar as feridas.

Ela afirma que ainda tem medo de usar o banheiro feminino do shopping, mas voltou a entrar tranquila nos da escola. Nenhuma outra estudante reclamou da presença dela desde então, conta.

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