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'Consultório está sendo invadido', diz médico sobre vigilância da indústria

Por mais de dois meses, o oftalmologista Wallace Chamon, professor de Medicina na Unifesp, buscou saber que informações sobre suas prescrições estavam indo parar nas mãos da indústria farmacêutica.

Relator do comitê de ética em pesquisa da Unifesp, Chamon percebia que os dados estavam vazando, mas não sabia como. Procurado pelo UOL em outubro, tomou conhecimento de um esquema para monitorar o que o médico prescreve.

A operação é estruturada por duas empresas de dados, Close-Up e IQVIA, que obtêm informações junto às farmácias. Depois, revendem para fabricantes de remédios, que tentam influenciar o médico a mudar suas prescrições.

Chamon decidiu descobrir o que, exatamente, as duas empresas sabiam a seu respeito. Para isso, pediu acesso aos dados. É um direito previsto pela LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados).

"Uma das minhas maiores descobertas é que o consultório está sendo invadido. Um local que eu sempre achei tão privado, onde estamos eu e o paciente", diz Chamon.

Após os pedidos, o professor da Unifesp for informado que a IQVIA capturou 964 prescrições em seu nome em quatro anos. Como Chamon dedica mais tempo à universidade que ao consultório, é provável que os números obtidos em relação a médicos que apenas clinicam sejam muito maiores.

Já a Close-Up se negou a enviar os dados, após dois meses de pedidos — o prazo previsto em lei é de quinze dias. A reportagem questionou a empresa sobre a negativa, mas não obteve resposta.

Veja a seguir os principais trechos da entrevista concedida ao UOL.

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UOL: Os médicos brasileiros sabem que suas prescrições são monitoradas pela indústria farmacêutica?

Wallace Chamon: No meu meio de convívio, todos sabem que isso existe. Mas não sabem como funciona. Em algum momento, o médico ouviu um representante farmacêutico comentar algo sobre suas prescrições. Não conheço um médico que não tenha vivenciado uma situação como essa. O que os médicos muitas vezes questionam é: "mas então você sabe tudo que eu prescrevo?"

O que os representantes da indústria falam para os médicos sobre as prescrições?

É mais ou menos assim: "Poxa, doutor, o senhor está receitando muito mais o concorrente que o meu medicamento. E veja, o meu medicamento tem A, B e C características. Me ajuda aqui". Os médicos veem isso com desconfiança. Porque gera uma situação constrangedora com o propagandista [nome dado no setor para o representante comercial da indústria farmacêutica que faz visitas aos médicos].

Após ser procurado pela reportagem do UOL, o senhor quis investigar quais dados sobre suas prescrições estão sendo armazenados. O que o motivou?

Faço parte de um comitê de ética em pesquisa, onde a privacidade e a LGPD são discutidas diariamente. Quero que esse tema [monitoramento das prescrições médicas] se torne público, que as autoridades saibam o que está acontecendo. Ou, pelo menos, que as autoridades não possam negar que isso está acontecendo.

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O que o senhor descobriu ao longo desse processo?

Uma das maiores descobertas é que o consultório — que sempre achei tão privado, onde estamos eu e o paciente, e eu exerço meu livre-arbítrio para dar o melhor tratamento — está sendo invadido. Quando o paciente sair dali, uma terceira pessoa vai saber que eu fiz tal prescrição.

Meu medo é que isso pode, em algum momento, influenciar o meu livre-arbítrio. Talvez, com o próximo paciente que vier se consultar, eu tenha que ponderar: "Poxa, se eu não prescrever o medicamento A, aquele representante de laboratório vai ficar chateado, então vou prescrever". Eu não acho que isso é saudável para a sociedade.

Como é essa "invasão do consultório" que o senhor citou?

O médico faz uma receita. Essa receita vai para uma farmácia. A farmácia pega o CRM do médico e o nome do medicamento que foi prescrito, põe no banco de dados. Esse banco de dados da farmácia é transmitido para uma das duas — ou as duas — empresas que tratam esses dados [Close-Up e IQVIA]. De tal maneira que cria-se um banco de dados monstruoso. A informação daquele médico, associada àquele medicamento, é depois vendida para os fabricantes.

Qual é o objetivo da indústria farmacêutica em ter acesso aos dados das prescrições?

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Tentando ser imparcial, acho que o objetivo primário é saber como o mercado está funcionando. O objetivo secundário é ter uma ferramenta de marketing direta e personalizada para o médico. De modo que o representante pode virar e falar: "Eu sei o que você prescreve. E não adianta me enganar, porque você não está prescrevendo o que eu gostaria que você prescrevesse".

E isso pode ser levado a outros níveis, com um sistema de premiações por receitas médicas. "Doutor, eu não vou pagar para o senhor aquele congresso ou aquele curso, porque infelizmente o seu número de prescrição do colírio A, B e C não foi suficiente".

O senhor vê algum problema ético nessa operação?

Sem sombra de dúvida. Ou eu prescrevo o medicamento que eu quero, ou prescrevo o medicamento do representante comercial, porque eu sei que ele vai vir aqui, vai saber o que prescrevi e eu vou ficar em uma situação constrangedora.

A sociedade não pode permitir que alguém vigie o meu consultório, para saber o que eu estou receitando e tentar interferir no meu livre-arbítrio no tratamento do paciente. Vai contra o Código de Ética Médica. Seria o papel das autoridades evitar esse tipo de conflito de interesse e proibir que os dados das prescrições sejam compartilhados sem o consentimento.

O senhor deu consentimento para que os dados das suas prescrições fossem capturados, armazenados e vendidos para a indústria farmacêutica?

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Assim como qualquer pessoa, eu cliquei em "aceito" milhares de vezes na minha vida. O que posso dizer é o seguinte: eu nunca cliquei em "aceito" de nenhuma dessas empresas que hoje detêm o oligopólio de distribuição de informação [Close-Up e IQVIA], porque nunca tive contato com elas. Cabe a essas empresas provarem que eu dei o consentimento. Me mostrem onde está o "aceite".

Além de terem capturado os dados sem seu consentimento, essas empresas estão vendendo as informações. Isso o incomoda?

O que me incomoda é até que ponto alguém tem direito de pegar um ato médico meu, a minha receita, o meu CRM, e vender essa informação sem a minha autorização? Isso deveria incomodar a sociedade.

Como foi pedir acesso aos seus dados?

Foi um processo longo, cansativo, que demorou em torno de 60 dias, com inúmeros emails, algumas reuniões virtuais, fotos tiradas com senhas... Ainda assim, consegui apenas parcialmente acesso aos meus dados.

Que dados o senhor obteve da IQVIA?

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A IQVIA tentou me enganar. Na primeira resposta, mandaram apenas meu nome e o meu endereço. Eles sabiam que eu não queria saber o meu endereço. Eu sei o meu endereço. Isso me cheira a má-fé.

Eu insisti e passaram dados de 964 prescrições em meu nome nos últimos quatro anos, com informações sobre os medicamentos que receitei [nome, marca, apresentação] e data. A IQVIA disse que faz uma análise de qualidade nos dados para excluir possíveis erros. Das 964 prescrições capturadas nas farmácias, 467 são vendidas pela IQVIA para a indústria farmacêutica.

E na Close-Up?

A Close-Up me deu muito mais trabalho. Foram pelo menos 20 trocas de email. Primeiro, pediram que eu mandasse uma foto minha, segurando o CRM. Essa foto tinha que estar em um arquivo protegido por senha. A senha, eu teria que dar numa reunião por Zoom. Disseram que era para proteger meus dados. Como diria um amigo meu, é uma feridinha em uma lepra, porque não tem nenhuma informação minha resguardada pela Close-Up, pelo contrário.

Fiz a foto, coloquei senha. Na reunião por Zoom, perguntaram por que eu queria os dados. Disseram que poderiam chamar os advogados da empresa para tirar minhas dúvidas. Depois de toda essa ladainha, mandaram: nome completo, CRM, especialidade, endereço do consultório, telefone e e-mail. Nada das prescrições.

Continuei insistindo. Aí, me disseram que tinham 143 prescrições minhas dos últimos 17 meses. Mas se negaram a compartilhar os dados. Só mandaram uma tabela tosca com nomes — apenas nomes — de 62 remédios. Aí, pararam de me responder.

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O objetivo deles parece ser: "Vamos dar uma canseira que ele vai desistir". Mas eu não vou desistir. Já notifiquei a Autoridade Nacional de Proteção de Dados.

Em relação aos dados, o que o senhor observou? São fidedignos?

Pelo menos 20% dos dados não se referem a prescrições minhas. Medicamentos que nunca prescrevi. De áreas completamente diferentes, psiquiatria, dermatologia. Até medicamentos que eu sequer sabia do que se tratava. Eu falei isso para a IQVIA. E responderam: "Nossa, então nós estamos preocupados".

Além de toda a falha ética, estão lidando com dados ruins. Tem uma farmácia ganhando dinheiro vendendo um dado atrelado ao meu CRM. Tem outra empresa ganhando dinheiro, vendendo o que a farmácia vendeu para ela. E tem uma terceira empresa, que é a indústria farmacêutica, comprando dados que não são fidedignos, com objetivo de também ganhar dinheiro.

Qual deveria ser a ação de entidades médicas diante dessa descoberta? O Conselho Federal de Medicina, por exemplo?

O Conselho Federal de Medicina tem que defender avidamente o Código de Ética Médica. Deve banir esse tipo de atitude.

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