Golden Cross controlava igreja de fachada que tem dívida de R$ 606 milhões
A igreja que mais deve à União não tem fiéis nem templos.
O Instituto Geral Evangélico (IGE) é uma organização religiosa que, por anos, foi controlada pela seguradora de saúde Golden Cross. O objetivo "religioso" foi estabelecido em 2019 como uma manobra para escapar das dívidas.
Para a Justiça, o IGE existe apenas para "administrar o milionário passivo trabalhista e tributário" e os imóveis registrados no nome do instituto. A dívida ativa do instituto está em R$ 606 milhões, mas as chances de recuperar esse valor são escassas.
O instituto está na mira da Receita Federal desde o final dos anos 1990, quando ainda se chamava Instituto Geral de Assistência Social Evangélica (Igase) e atuava como uma administradora de serviços financeiros com estatuto de entidade filantrópica.
Entidades filantrópicas e religiosas são isentas de alguns tipos de impostos.
Em 1999, auditores da Receita Federal identificaram fraudes nas contas e uso irregular da isenção do instituto. Segundo o órgão, benefícios trabalhistas de 6.000 funcionários eram contabilizados como "filantropia".
No mesmo ano, o Conselho Nacional de Assistência Social cassou o certificado de entidade filantrópica do Igase.
Em 2019, quando alterou seu estatuto e se tornou a organização religiosa IGE, o instituto foi condenado a quitar uma dívida previdenciária de R$ 1,5 milhão, mas não foi encontrado para execução fiscal no endereço cadastrado no Fisco. A Justiça autorizou a apreensão do dinheiro do instituto em cinco bancos diferentes, mas todas as contas estavam zeradas.
A reportagem do UOL identificou pelo menos cem estabelecimentos de saúde registrados como filiais do IGE, em 11 estados. A maioria, aberta na década de 1980 e fechada nos anos 2000, quando o instituto chamou a atenção da Receita.
A crise fez hospitais e clínicas serem fechados.
Procurada, a Golden Cross, que foi comprada pelo grupo Brasilmed em 2019, disse que não vai se pronunciar.
Os antigos donos negam a relação entre as instituições, mas o UOL teve acesso a documentos e relatos que indicam o elo entre as empresas.
Associação-fantasma
Mais de 50 anos após a fundação — sem capital de giro, sem dinheiro nas contas, sem pagar impostos e sem atualizar endereço para cobrança —, o antigo Igase e atual IGE conseguiu sumir do mapa. A Justiça caracterizou o "sumiço" como uma dissolução informal, mas não houve pedido de falência.
A sede atual do IGE fica numa sala comercial no centro do Rio. Não havia ninguém quando a reportagem esteve lá, mas um pedaço de papel na porta indicava a caixa postal do instituto.
No papel, o sócio-presidente do IGE é José Augusto Cavalcanti Wanderley, jornalista que reside num sítio em Petrópolis (RJ) em homenagem à obra "O Pequeno Príncipe", de Antoine de Saint-Exupéry.
Wanderley virou gerente de marketing da Golden Cross nos anos 1990. Em 2010, foi "indicado" para presidir o instituto. "A empresa não devia estar numa situação boa, aí eu deixei rolar e ficou [assim]", diz.
Ele diz que não tem nenhuma função na empresa e não soube explicar a mudança no estatuto social para fins religiosos.
"Devia ter coisa evangélica, né? Porque eles [a família do fundador da Golden Cross, Milton Soldani Afonso] são evangélicos."
A reportagem entrou em contato com o advogado de Milton Soldani Afonso, por telefone, no dia 1º de dezembro. Ele informou que falaria com seu cliente e, caso ele quisesse se manifestar, retornaria a ligação. Não houve retorno até a publicação desta reportagem.
O UOL fez duas novas ligações no dia 11 de dezembro, mas ninguém atendeu.
Relação com a Golden Cross
Outro processo, movido por um sindicato de trabalhadores da Bahia contra a Golden Cross e o Igase (atual IGE), corre desde 1992
A defesa da Golden Cross argumentou que a rede nunca teve relações societárias com o Igase, CNPJ "totalmente estranho" à seguradora de saúde, segundo os advogados.
Entretanto, o presidente do Igase à época, Benjamin Carvalho da Silva, era diretor da Golden Cross.
Todo o conselho administrativo do instituto era formado pela cúpula da seguradora, incluindo os filhos de Milton Soldani Afonso, segundo ata de reunião do Igase a qual o UOL tece acesso. O documento, de 1988, trata da abertura de dez novos hospitais no país.
Em 1996, em comemoração aos 25 anos da empresa, a Golden Cross publicou uma série de textos publicitários no Jornal do Brasil.
Um deles explica que o Igase "passou a pertencer à Golden Cross" em 1987 e que, à época, administrava 45 centros médicos, 14 hospitais e dois laboratórios onde os segurados poderiam realizar tratamentos dos planos Golden Med e Golden Keeper.
Filantropia paga
Ana (nome fictício), 53, trabalhou num laboratório do Igase no Rio de 1990 a 1997 como recepcionista, digitadora e secretária.
"O Igase sempre se colocou como entidade filantrópica da Golden Cross, mas de filantropia não tinha nada", relata. "Se as pessoas tinham que pagar pelo atendimento, então não era filantropia."
Em 2021, Ana descobriu que dez meses de sua contribuição previdenciária não foram pagos pela empresa ao INSS. Como não conseguiu ligar para o Igase (que já havia trocado de nome e endereço), procurou a Golden Cross, que negou a relação.
O instituto ainda responde a outros processos trabalhistas e tributários.
Em 2017, foi condenado a pagar as contribuições previdenciárias num processo aberto por um sindicato de trabalhadores de Ribeirão Preto (SP).
O Tribunal Superior do Trabalho julgou que o instituto usava a fachada filantrópica como "subterfúgio inovatório" para não pagar os tributos.
Colaboraram Camila Brandalise e Juliana Sayuri, de São Paulo
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