'Vida Além do Trabalho': movimento nascido no TikTok luta contra escala 6x1
Uma nova maneira de reivindicar mudanças nas relações de trabalho no Brasil se organiza a partir das redes sociais.
Propondo a extinção da jornada de trabalho de 6x1 (trabalha seis dias e folga um) e a implementação da escala 4x3 (trabalha quatro dias e folga três) sem redução salarial, o Movimento VAT (Vida Além do Trabalho) conquistou adesão inédita no TikTok.
Criado em setembro, quando teve seu primeiro post publicado, o VAT tem mais de 131 mil seguidores e supera 1 milhão de curtidas no TikTok — segundo o DataReportal, cerca de 82 milhões de brasileiros maiores de 18 anos estão cadastrados na plataforma.
Criador e líder do movimento, Ricardo Azevedo vivia a jornada de muitos brasileiros que atuam no setor de varejo e serviços, a 6x1.
Suas mensagens em vídeos curtos encontraram eco especialmente entre trabalhadores desse setor da economia, e a adesão resultou em mais de meio milhão de assinaturas na petição online do VAT pelo fim do 6x1.
"Recebemos muitos relatos de pessoas trabalhando como caixa de supermercado, telemarketing e vendedores de shopping center", afirma Azevedo.
Entre panfletagens e ações no mundo offline, o objetivo do movimento para 2024 é levar a pauta ao Congresso. Até o momento, Azevedo recebeu apoio de políticos como os deputados federais Glauber Braga (PSOL-RJ) e Erika Hilton (PSOL-SP).
Se não nós, quem?
Natural de Palmas (TO) e morador de Niterói (RJ), Rick, 30, não se considerava uma pessoa politizada. A maioria dos vídeos que produzia para as redes sociais era sobre cultura pop — até a questão trabalhista entrar no caminho.
"Como nós estamos vendo isso e não fazendo nada?", questionou Azevedo em um post no TikTok em setembro. Na época, ele trabalhava como balconista em uma farmácia e havia acabado de ouvir da chefe que precisaria entrar mais cedo que o combinado no dia seguinte à sua folga.
Esgotado pela carga de trabalho, que não foi reduzida nem mesmo na fase mais crítica da pandemia, Azevedo resolveu gravar o desabafo.
"Publiquei e fui trabalhar", lembra. Só depois do expediente ele viu que tinha viralizado. Boa parte dos milhares de comentários concordavam que a escala 6x1 não permite aos trabalhadores uma vida fora do trabalho.
"O sofrimento está aqui", resumiu Azevedo sobre as histórias que ouviu desde a primeira publicação. "Já imaginava que seria uma experiência tão comum, mas não imaginava que eu acabaria sendo a voz deles."
Com o crescimento do Movimento VAT, Azevedo saiu do emprego de balconista de farmácia para se dedicar integralmente ao fim da jornada 6x1. Entre um vídeo de TikTok e outro, ele afirma: "Nós temos que fazer a revolução".
Panfletagem offline
Embora o movimento tenha sido criado há poucos meses em um ambiente digital, a pequena revolução TikToker tem encontrado as ruas.
Azevedo e voluntários têm panfletado em locais com grande circulação de trabalhadores. Em novembro, na região da rua 25 de Março, principal centro de compras de São Paulo, o grupo disputava espaço nas vias tomadas por camelôs e sacoleiros.
De loja em loja, eles deixavam nas mãos dos vendedores panfletos com as mensagens "uma folga nunca foi e nunca será suficiente", "pela vida além do trabalho" e "pelo fim da escala 6x1".
Muitos vendedores reconheceram Azevedo por causa dos vídeos e threads no TikTok. "Só não deixa o meu gerente ver que estou pegando isso", disse uma vendedora de uma loja de eletrônicos próxima à Ladeira Porto Geral.
Enquanto alguns gerentes e donos dos estabelecimentos torciam o nariz, funcionários discretamente pediam mais panfletos para serem distribuídos entre familiares e amigos.
Precarização no varejo
De acordo com Luana Pinto Moraes, psicóloga e pesquisadora no campo da psicologia social e do trabalho, o varejo é um dos principais setores atingidos pela precarização do trabalho nos últimos anos, com salários mais baixos, jornada de trabalho pesada e acúmulo de funções.
Segundo a RAIS (Relação Anual de Informações Sociais) de 2021 do Governo Federal, mais de 6 milhões de brasileiros atuam no setor varejista e mais de 18 milhões no setor de serviços — os dados, no caso, referem-se apenas aos trabalhadores formais desses setores.
"Um primeiro indicador se evidencia na pouca exigência de qualificação profissional, para grande parte de seus operadores", afirma a psicóloga.
"Os trabalhadores no varejo são vistos como reposições mais rápidas e fácil mão de obra. Isso cria uma desconexão da pessoa com o trabalho, ele perde o sentido. Somado à jornada e o tempo de deslocamento, há um quadro comum de trabalhadores com estresse, depressão e ansiedade", completa Luana.
Procurada, a Fecomercio (Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo) do estado de São Paulo preferiu não comentar o Movimento VAT e a jornada 6x1, por falta de estudos sobre o tema.
"Para mim a escala 6x1 é uma forma de escravização disfarçada, onde moramos no trabalho e vamos pra casa só pra visitar", afirma Lauriane Chystina, apoiadora do Movimento VAT no Rio Grande do Sul e operadora de loja em um mercado.
"Nos últimos 5 anos posso resumir minha vida em dois assaltos a caminho de casa, pois na pandemia meu setor era essencial; e duas faculdades abandonadas, porque não tinha condições físicas e psicológicas, nem tempo pra estudar e frequentar as aulas", afirma Lauriane.
Ela também relata dificuldades de criar a filha devido à jornada. "Ela foi morar com a avó em outro estado porque eu não tinha tempo nem condições para cuidar dela", conta. "Hoje minha filha está com 11 anos e perdi todas as fases dela de descobertas."
@rickazzevedo Até quando essa escravidão?? #clt #escala6x1 #fy ? som original - Rick Azevedo
Revolução TikToker?
O Movimento VAT não é o único nas redes sociais a questionar modelos de trabalho. Cada vez mais jovens as usam para se posicionar contra a precarização do trabalho.
Manifestações antitrabalho não são novidade na história, mas foram repaginadas com o agravamento da crise econômica devido à pandemia.
Nos Estados Unidos, a comunidade virtual /antiwork no Reddit tem quase três milhões de membros e serve hoje como uma central de informações e espaço para pessoas insatisfeitas com suas jornadas de trabalho.
Na mesma direção, usuários brasileiros criaram no Reddit o /antitrampo, fórum sobre reivindicações trabalhistas que também recebe depoimentos. Criada em 2021, a comunidade conta com quase 90 mil membros.
"O que está está acontecendo é uma reorganização do movimento dos trabalhadores de forma bastante silenciosa e inovadora, um novo jeito de se organizar, se informar e lutar por direitos trabalhistas", escreveu ao UOL um dos moderadores do subreddit /antitrampo.
@rickazzevedo Que orgulho de vcs! Obrigado por fazerem acontecer. Ainda temos muito trabalho. Vamos pra cima Sigam o perfil da nossa causa @movimento_vat . FAREMOS HISTÓRIA! #ESCALA6X1NÃO #REVOLUÇÃ #reformatrabalhista #fy #clt ? Que Pais É Este - Legiao Urbana
No caso do Movimento VAT, o crescimento foi orgânico, mas não tardou para receber apoio de sindicatos. No Rio, Azevedo fez um ato na Central do Brasil com o apoio do Sindicato dos Comerciários do estado.
Para Daniel Ferrer, economista do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), a redução da jornada de trabalho nunca deixou de ser uma das reivindicações centrais dos sindicatos de trabalhadores.
"O que me parece que tem de novo agora é que ainda existe uma dificuldade dos movimentos sociais se apropriarem do diálogo nas redes sociais para acessar a juventude. O Rick [Azevedo] teve o mérito de conseguir fazer comunicação e meio de campo, mas não houve um abandono da pauta por parte dos sindicatos", explica o economista.
A mobilização da força de trabalho nos setores varejistas e de serviços, segundo Ferrer, é ainda mais custosa por serem setores pulverizados.
"No comércio e serviços, por abrigar trabalhadores com um perfil mais jovem, o canal de transmissão e acesso à informação é diferente. É por isso que o movimento reverbera nesse tipo de perfil", analisa.
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