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Conselho tentou barrar pagamento de viagens para médicos, mas recuou

O CFM (Conselho Federal de Medicina) tentou proibir em 2010 que fabricantes de remédios e de próteses custeassem viagens de médicos a congressos. Mas recuou dois anos depois, sem explicar o motivo.

Não há restrição a esse tipo de patrocínio no país.

A indústria da saúde brasileira gasta milhões com presentes e mimos a médicos, o que abre portas para conflitos de interesse, conforme mostrou o UOL.

A maioria do dinheiro vai para passagens, hospedagens e inscrições de congressos e cursos.

"Por que [a indústria] paga a minha ida [para um congresso] e não paga o do colega ao lado? Por causa dos meus olhos verdes?", questionou Roberto d'Avila, então presidente do CFM, em entrevista à Folha, em 2010.

"O critério é a caneta. Ou pagam para quem já prescreve os produtos deles ou para quem não prescreve e precisa ser cativado."

O UOL procurou D'Avila, que disse não poder dar entrevista neste momento.

A iniciativa do CFM para tentar barrar a prática se alinhava a discussões internacionais. Os Estados Unidos lançaram em 2010 o Sunshine Act, legislação pioneira que exige da indústria a declaração de gastos com médicos.

Portugal, por exemplo, já proibia o patrocínio de viagens para congressos.

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O conselho discutiu por dois anos com a Interfarma, que representa as farmacêuticas, a proposta de vedar viagens. Ao final, a ideia acabou descartada.

Em vez disso, as entidades lançaram um posicionamento conjunto tratando de outros aspectos das relações entre médicos e indústria.

Viagens de lazer de médicos, até então permitidas, foram proibidas. Viagens de parentes de médicos, também. Já as viagens a congressos continuaram liberadas.

"Foi o máximo que conseguimos fazer. Era isso ou nada", afirmou d'Avila em nova entrevista à Folha, em 2012.

O documento do CFM com a Interfarma também estipulou que brindes e presentes a médicos não poderiam ultrapassar o valor de um terço do salário mínimo (equivalente hoje a cerca de R$ 470).

A restrição durou pouco. Em 2016, as entidades atualizaram o documento e retiraram o teto para os presentes.

O UOL perguntou seguidas vezes, desde fevereiro, qual é a posição atual do CFM sobre o patrocínio de viagens para congressos médicos. A entidade não respondeu.

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Muitos médicos acreditam não ser influenciados pelas refeições, brindes, hospitalidade e honorários da indústria. É incrível como afirmem tal coisa. Afinal, nenhuma indústria farmacêutica faz atos de generosidade desinteressada.

Medidas restritivas se impõem, como em outros países, tais como a proibição de aceitação de presentes, independente de seu valor, a regulamentação da oferta de amostras e o financiamento da participação em congressos e simpósios.

Adicionalmente, é inaceitável que médicos solicitem aos laboratórios farmacêuticos vantagens para prescrever seus produtos, tais como reforma de consultórios, televisores, móveis etc.

Roberto d'Avila, presidente do CFM de 2009 a 2014, em artigo publicado no livro "Reflexões sobre o novo Código de Ética Médica", lançado pelo conselho em 2010

Associação de próteses proibiu patrocínio a viagens

A proibição de viagens, que não avançou na discussão entre CFM e laboratórios, acabou sendo incorporada pelos fabricantes de próteses e equipamentos de saúde alguns anos depois.

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Em 2018, a Abimed, que reúne fabricantes do setor, proibiu que seus associados bancassem viagens de médicos a congressos organizados por terceiros.

O custeio de eventos organizados pelas próprias patrocinadoras, no entanto, continuou valendo.

A medida foi tomada após escândalos no Brasil e nos Estados Unidos envolvendo indústrias de próteses. Médicos foram descobertos recebendo comissões pelo uso de produtos ortopédicos em cirurgias, muitas desnecessárias.

"É vedado às empresas associadas patrocinar diretamente profissionais da saúde para participarem de eventos de terceiro, seja por meio de pagamento de inscrição, transporte, estadia e/ou alimentação", diz o documento de 2018.

A regra da Abimed surtiu efeito. Em Minas Gerais, o único estado do país que exige a divulgação dos gastos com médicos, as fabricantes de prótese e equipamentos de saúde foram responsáveis por apenas 9% dos valores.

Os 91% restantes foram pagos por farmacêuticas, setor em que as viagens estão todas liberadas.

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O médico mais patrocinado de Minas Gerais, no entanto, foi beneficiado com R$ 2,7 milhões pagos por uma empresa americana que produz equipamentos para cirurgias ortopédicas, a NuVasive.

O profissional, um ortopedista que já presidiu a Sociedade Brasileira de Coluna, negou conflito de interesse. A NuVasive não respondeu os questionamentos do UOL.

Transparência de pagamentos em pauta no CFM

A proposta do CFM para limitar patrocínio de viagens foi interrompida, mas a discussão sobre transparência entrou em pauta.

Este mês, a entidade incluiu em sua agenda interna o debate sobre uma resolução sobre a "divulgação de vínculos e recebimentos de benefícios de qualquer natureza por médicos no exercício da profissão".

A avaliação da proposta, entretanto, foi postergada.

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Mais de duas dezenas de países exigem a transparência dos gastos da indústria da saúde com médicos. O Brasil não é um deles.

Marcelo Queiroga, que elaborou o texto de uma medida provisória para tentar barrar mimos a médicos
Marcelo Queiroga, que elaborou o texto de uma medida provisória para tentar barrar mimos a médicos Imagem: Evarista Sá/AFP

Em 2022, Marcelo Queiroga, então ministro da Saúde, elaborou o texto de uma medida provisória sobre o tema, que não chegou a ser assinada por Jair Bolsonaro.

O Ministério da Saúde de Lula abandonou a ideia, dizendo que o assunto requer debate amplo.

O CFM disse em nota que "defende uma relação baseada na ética e na transparência entre os médicos e os diferentes segmentos da assistência [de saúde]".

Afirmou ainda que é "dever dos médicos explicitar possíveis conflitos de interesse na condução de suas atividades profissionais, inclusive em manifestações por meio de entrevistas e palestras em eventos científicos".

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