Só para assinantesAssine UOL

'Respiramos a morte': os seis meses de guerra entre Israel e Hamas

A bandeira preta, branca, verde e vermelha chama a atenção no rótulo de uma garrafa de água distribuída a turistas de Tel Aviv, em Israel. Nela, é possível ler "da Palestina" em letras pequenas.

A cerca de 100 quilômetros dali, na Faixa de Gaza, o jogador de futebol palestino Belal Atef Shaqura, 24, armazena água do mar em baldes para matar a sede, cozinhar e lavar roupas da família.

A falta de recursos em um dos lados do conflito é uma das faces mais cruéis impostas pela guerra entre Israel e Hamas, que completou seis meses.

Empresas israelenses controlam a produção de água em territórios palestinos há quase sete décadas. Hoje, a distribuição da água continua na Cisjordânia, mas não na Faixa de Gaza. E a violência contra palestinos se impôs ainda mais forte sobre esse bem essencial após o início do conflito.

Moradores e produtores palestinos são punidos caso tentem abrir poços próprios. A punição a quem abrir poços é acimentá-los.

O acesso à comida, então, é quase inexistente na região de Gaza.

O desespero dos palestinos que se amontoam e muitas vezes se afogam no mar por sacos de farinha jogados de aviões, contrasta com o entusiasmo de israelenses que passeiam em meio à fatura do mercado público de Jerusalém.

Palestinos se amontoam para receber alimentos em Gaza
Palestinos se amontoam para receber alimentos em Gaza Imagem: Mahmoud Issa/Reuters

Continua após a publicidade

"Os poucos alimentos que entram são muito caros", diz uma mulher palestina que vive na Faixa de Gaza e prefere não se identificar. Os preços explodiram diante do agravamento do conflito.

Açúcar é um dos tantos alimentos escassos em Gaza. Antes da guerra, um quilo custava 3 shekels (equivalente a R$ 4). Agora, a mesma porção não custa menos de 70 shekels (quase R$ 96) - cerca de 23 vezes mais.

A aflição mais latente em Tel Aviv é a ausência das pessoas sequestradas pelo Hamas. Faixas e cartazes pendurados em postes e prédios lembram a todo momento que o país está em guerra. As mensagens são unânimes no apelo à liberação das vítimas presas pelo grupo extremista.

Garrafa d'água com bandeira da Palestina, e alimentos e temperos expostos no mercado público de Jerusalém
Garrafa d'água com bandeira da Palestina, e alimentos e temperos expostos no mercado público de Jerusalém Imagem: Fabíola Perez/UOL

Tudo é contraste

No centro de Jerusalém, uma maratona despertou corredores antes das 7h na primeira semana de março. Os israelenses que esperavam os maratonistas liberarem as ruas se divertiam ao som de músicas agitadas.

Continua após a publicidade

É o oposto ao silêncio que vem de Gaza. O único movimento entre as ruínas e a destruição das ruas de Khan Yunis, no sul do território, é o de pessoas a pé ou em carroças deixando a região.

No pequeno kibutz de Nir Oz (espécie de condomínio cuja administração é feita pelos próprios moradores), na região sul de Israel, o cheiro das casas queimadas se mistura ao odor dos corpos aglomerados por membros do Hamas.

O local foi um dos mais atingidos pelos ataques do grupo.

Percorrer o espaço ainda provoca náuseas. Palestinos relatam na Faixa de Gaza, a menos de 3 km dali, que o cheiro sobe das ruas todos os dias a cada novo bombardeio.

"Respiramos a morte", diz Belal Atef Shaqura.

Hospital Nasser em Khan Yunis, no sul da Faixa de Gaza, invadido por militares israelenses
Hospital Nasser em Khan Yunis, no sul da Faixa de Gaza, invadido por militares israelenses Imagem: AFP
Continua após a publicidade

O Conselho de Segurança da ONU aprovou em 25 de março uma resolução que exige o cessar-fogo imediato em Gaza, após cinco tentativas.

Mas autoridades acreditam que a proposta só terá efeito se for respeitada pelos países envolvidos e seguida de medidas emergenciais.

Um Estado-membro da ONU que se nega a cumprir uma resolução deve ser punido até respeitar sua condição como membro.
Ibrahim Alzeben, embaixador da Palestina no Brasil

A resolução foi bem recebida, embora todos aqui sejam muito céticos e realistas em relação à possibilidade de sua efetiva implementação.
Alessandro Candeas, embaixador do Brasil na Cisjordânia

A miséria como rotina

Belal acorda, sai em busca de comida e enche baldes de água do mar. Ele vive em uma barraca improvisada em um campo de refugiados em Rafah, no extremo sul de Gaza.

Continua após a publicidade

Ele também cuida da mãe, Ahlam, hospitalizada há mais de um mês.

O jovem toma banho de mar vez ou outra para tentar esquecer dos oito parentes que viu morrer na cidade de Khan Yunis, onde vivia antes dos bombardeios.

Os meses de inverno foram duros.

O frio e a chuva invadiram as barracas entre dezembro e março e deixaram os alojamentos ainda mais precários. A população desabrigada vive em tendas muito próximas uma das outras, com banheiros e fornos compartilhados.

11.03.2024 - Palestinos compartilham fornos e banheiros em Rafah
11.03.2024 - Palestinos compartilham fornos e banheiros em Rafah Imagem: Mohammed Abed/AFP

Continua após a publicidade

Belal conta que, em um dia enregelante, a mãe teve de dormir no chão de areia dentro da tenda, mesmo com asma, dores nas articulações e problemas neurológicos.

A sensação de desamparo fez o jovem acreditar que só a morte o faria escapar de tudo.

Ele, que treinava para representar à seleção palestina, abandonou tudo e começou a juntar dinheiro e doações para transferir a mãe para um hospital no Egito.

A falta de atendimento médico em Gaza exaspera.

Crianças com ferimentos graves são atendidas em corredores. Tratamentos de saúde foram interrompidos. A população enfrenta surtos de diarreia, sarna, piolho e doenças de pele.

No norte de Israel há um hospital público com área emergencial pronta para receber pacientes caso um conflito com o grupo Hezbollah ganhe força.

Continua após a publicidade

A maioria das instalações, porém, está vazia.

A miséria castiga a população palestina. Homens se sujeitam a ataques, tumultos e à morte nos pontos de distribuição de alimentos e ajuda humanitária, seja por terra ou por céu.

As mulheres se veem obrigadas a dividir banheiro com centenas de pessoas e a utilizar pedaços de tecido de barracas para improvisar absorventes durante o período menstrual.

Crianças se reúnem em ponto de distribuição de alimentos em Khan Yunis, no sul da Faixa de Gaza
Crianças se reúnem em ponto de distribuição de alimentos em Khan Yunis, no sul da Faixa de Gaza Imagem: AFP

A estrada da morte

A população de Israel vive a ferida aberta pelo Hamas.

Continua após a publicidade

O aeroporto de Tel Aviv avisa viajantes de que o país está em guerra. Nas rampas que levam à saída, é possível ver cartazes com os rostos de cada um dos 134 sequestrados pelo grupo.

A praia de Zikim, a pouco mais de 2 km da Faixa de Gaza, foi um dos primeiros lugares atacados pelo grupo extremista em outubro de 2023.

"Tudo começou às 7h. Chegaram aqui entre sete e oito barcos do Hamas, vindos de Gaza. Alguns foram impedidos pelo Exército de chegar à praia pela Marinha, mas dois ou três conseguiram", diz Moshiko Moskovitz, reservista do Exército.

Havia um grupo de pescadores e adolescentes acampando no local.

Hoje, o banheiro onde os jovens se esconderam tem paredes e placas informativas vazadas por disparos - marcas do confronto entre soldados israelenses e membros do Hamas.

O que parecia ser um comércio ao lado dos banheiros está destruído: objetos quebrados, prateleiras vazias e pedaços de madeira pelo chão.

Continua após a publicidade

Segundo Moskovitz, pescadores se esconderam em um abrigo terrestre próximo, mas não resistiram à explosão de uma granada.

Trinta e quatro pessoas morreram, incluindo quatro adolescentes.

Até hoje, o local que serviria para proteção tem restos de objetos, dejetos e cheiro de morte.

A poucos quilômetros da praia, está a área em que ocorreu o festival de música eletrônica de origem brasileira, Universo Paralelo, na qual morreram cerca de 360 israelenses.

A região é tão próxima à Faixa de Gaza que, quando a reportagem do UOL visitou o local, foi possível ouvir um estampido — um dos militares se apressou em dizer que era algo normal por ali.

O espaço possui um memorial com fotos, velas e bandeiras de Israel em homenagem às vítimas dos ataques.

Continua após a publicidade

A menos de meia hora dali, em Tkuma, há um cemitério de carros — veículos apreendidos que teriam sido do grupo extremista.

O trajeto é realizado pela Rodovia 232, a "estrada da morte", como passou a ser chamada após os ataques de outubro. Carcaças de carros levadas por moradores de kibutz próximos mobilizam uma espécie de turismo de guerra.

As memórias da data inicial da guerra têm cores, cheiros e contornos ainda mais fortes em Nir Oz.

Refeitório dentro do kibutz de Nir Oz onde foram armazenados os corpos das vítimas dos ataques
Refeitório dentro do kibutz de Nir Oz onde foram armazenados os corpos das vítimas dos ataques Imagem: Fabíola Perez/UOL

As casas do kibutz possuem códigos com letras e números marcados pelo Exército para sinalizar o número de civis mortos, sequestrados e integrantes do Hamas mortos.

Continua após a publicidade

Alguns imóveis estão completamente incinerados. O cheiro de queimado provocado pelas granadas provoca tosse.

Em uma das salas, um piano abandonado surge em destroços abaixo da janela. Um refeitório do kibutz era utilizado para armazenar corpos das vítimas.

Em meio à destruição, a argentina Silvia Cunio, 63, caminha introspectiva.

Ela se lembra do último contato que tiveram. "Ele me ligou e disse: 'mãe, me salva, queimaram minha casa'", diz com voz embargada, próxima da janela da casa do filho.

Mãe de David, 33, e Ariel, 26, ela vive no país há 38 anos. O mais velho é casado e tem duas filhas.

Silvia conta que David tentou fechar as portas do abrigo interno - em Israel, a maioria das casas possui um quarto de segurança.

Continua após a publicidade

"Dispararam contra a janela e a irmã da minha nora disse que preferia morrer com uma bala na cabeça a ser asfixiada. Abriram a janela e se entregaram", lembra.

"Separaram meu filho da esposa e das crianças. Até agora, não se sabe de mais nada."

O mais novo, Ariel, que vivia com a namorada e um cachorro, também foi sequestrado. Nem a tranca da porta foi suficiente para impedir a entrada dos membros do Hamas, ela diz. Conseguiram entrar pela janela.

"Até hoje, não sei nada deles", diz.

Silvia lembra que tentaram entrar ao menos quatro vezes em sua casa — o marido conseguiu segurar a porta, afirma. Com imagens dos filhos nas mãos, ela atravessa as ruas vazias do kibutz.

"Quero a paz e que me devolvam meus filhos e todos os sequestrados, tanto os vivos quanto os mortos", diz ela, enquanto ajeita os cartazes nas portas que restaram no local.

Continua após a publicidade
Silvia Cunio segura a foto de um dos filhos sequestrados pelo Hamas
Silvia Cunio segura a foto de um dos filhos sequestrados pelo Hamas Imagem: Fabíola Perez/UOL

Israel vive crise de confiança

A exaustão após seis meses de guerra tem provocado manifestações nas principais ruas do país.

No centro de Tel Aviv, a poucos metros da Praça dos Sequestrados, uma homenagem aos reféns no dia 2 de março deu lugar a protestos com milhares de pessoas pedindo o fim do governo de Netanyahu.

Novos protestos voltaram a mobilizar a população menos de um mês depois. Israelenses de diferentes inclinações políticas exigem novas eleições.

Continua após a publicidade

Algumas faixas se referem a Bibi, conforme é chamado nas ruas, como "ministro do crime". Outras estampam sua imagem com um alerta de perigo em hebraico.

Mesmo com o clamor nacional pela libertação dos sequestrados, há um incômodo em Israel.

*A jornalista viajou a Israel a convite da ONG Stand With Us Brasil

Deixe seu comentário

Só para assinantes