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Evangélicos portugueses avançam sobre a política inspirados no Brasil

Com a assessoria de políticos do Brasil, pastores portugueses estão trabalhando para formar uma bancada evangélica na Assembleia da República de Portugal, a casa legislativa do país.

Um encontro para que o deputado federal e pastor Marco Feliciano (PL-SP) passe "instruções" para os lusitanos está marcado para sexta-feira (3), na sede do parlamento, em Lisboa, afirma Paulo Nunes, coordenador da Bancada Evangélica Portuguesa.

O objetivo da Bancada Evangélica — que Paulo Nunes define como um "movimento político" — é fazer com que a "Bíblia Sagrada seja implantada dentro da Assembleia da República de Portugal".

"Nosso espelho é a bancada evangélica brasileira", diz.

Um folder com a imagem do rosto de Feliciano em destaque — com a Assembleia da República ao fundo — circula nas redes sociais em Portugal convocando para o evento.

Procurado pelo UOL, Feliciano não respondeu se estaria no encontro.

Marco Feliciano
Marco Feliciano Imagem: Ton Molina /Fotoarena/Folhapress

'Em nome de Jesus'

A palavra do Marco Feliciano é instrução para nós. Além de ser um pastor, é deputado. Ele nos orientará sobre como devemos nos comportar, o que fazer.
Paulo Nunes coordenador da Bancada Evangélica Portuguesa

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Ele concorreu a uma vaga na Assembleia nas eleições de 10 de março, mas não se elegeu.

Nunes foi candidato pela ADN (Alternativa Democrática Nacional), partido para o qual pastores brasileiros pediram votos em pregações às vésperas das eleições.

O baiano Abílio Santana, pastor da Assembleia de Deus Madureira e deputado federal entre 2019 e 2023 pelo PSC (Partido Social Cristão), fez campanha pela ADN em encontro com pastores em Lisboa, em 12 de fevereiro.

"No dia 10 de março você vai ter a oportunidade de eleger uma bancada evangélica, tomar a política do diabo, em nome de Jesus", pregou. Da plateia, outros pastores responderam "amém" e "glória a Deus".

"Para votar é muito simples: ADN. A de Abílio, D de Deus e N de Nazareno", disse, repetindo a sigla outras três vezes.

Santana definiu o partido como capaz de "barrar o projeto diabólico contra o aborto". A interrupção da gravidez é legalizada em Portugal.

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"ADN é por Deus, pela família e pela nação", disse o pastor. Ele não respondeu aos pedidos de entrevista do UOL.

Encontro de pastores em Lisboa
Encontro de pastores em Lisboa Imagem: Reprodução

'Força evangélica'

Embora não tenha feito nenhum deputado, em apenas dois anos a ADN multiplicou em dez vezes o número de votos de uma eleição para outra. Foram 10 mil em 2022 e 100 mil em 2024.

"O partido ADN estava morto, não era ninguém", avalia Paulo Nunes. Ele atribui o desempenho da sigla à "força evangélica", com destaque para o apoio declarado do deputado Marco Feliciano, que gravou um vídeo pedindo votos.

"Cerca de 80% dos votos da ADN foram dos evangélicos", contabiliza.

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Bruno Fialho, presidente da ADN, afirma que o apoio dos evangélicos foi importante, mas não sabe quanto, pois "o voto é secreto".

Malafaia com Marcus Santos, deputado brasileiro do Chega
Malafaia com Marcus Santos, deputado brasileiro do Chega Imagem: Reprodução/Instagram

Importação de táticas

Pastores portugueses adotam discurso semelhante ao dos evangélicos brasileiros.

Falam em combate à chamada "ideologia de gênero" e citam supostos projetos de lei em tramitação no Parlamento contrários à família, como um que puniria pais que procurassem ajuda psiquiátrica para "curar" os filhos que "querem trocar de sexo".

"É tanta informação que não sei de onde partiu essa", disse Paulo Nunes, quando questionado sobre quem seria o autor do projeto.

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À mistura de espiritualidade com teorias da conspiração, o sociólogo Valdinei Ferreira deu o nome de "conspiritualidade".

Ele é professor da Faculdade de Teologia da Igreja Presbiteriana Independente, em São Paulo.

O cristianismo trabalha com a ideia do bem e do mal. Quando a dicotomia é capturada pela política de extrema direita, o mal é projetado no outro.
Valdinei Ferreira sociólogo

Em suas pregações, os brasileiros ajudam a espalhar os rumores de que, na Assembleia da República, políticos "perseguem a família tradicional".

"Quem está do lado de fora não sabe o que acontece dentro do Parlamento", disse o baiano Abílio Santana no culto com os pastores em Lisboa.

Abílio Santana participa de evento em Portugal
Abílio Santana participa de evento em Portugal Imagem: Reprodução
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"Um pedido que faço à nação cristã do lado de cá do oceano: desperte! Existem projetos satânicos no Parlamento daqui. Carecemos de homens com sangue no olho, sem medo de falar que Jesus é o senhor", pregou.

'Barriga de aluguel'

Donizete Rodrigues, especialista em sociologia da religião e professor colaborador na Universidade de Columbia, em Nova York, suspeita que evangélicos pediram votos para a ADN porque o Chega "é o André Ventura", um católico.

André Ventura, deputado, é o principal nome da direita radical, enquanto o Chega é o maior partido desse espectro e terceira força política de Portugal

"A ADN seria uma espécie de barriga de aluguel", afirma.

Para abrigar o embrião conservador evangélico, porém, a sigla deveria ter requisitos como aqueles preenchidos pela ADN, cujo presidente, Bruno Fialho, é apoiador de Jair Bolsonaro.

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"O presidente Lula não merece a nossa confiança. É um globalista submisso, um criminoso condenado na Justiça que foi salvo por questões técnicas. É como se eu tivesse assassinado alguém e por uma questão técnica não estivesse preso", comparou Bruno Fialho.

O presidente Lula (PT) teve as condenações da Lava Jato anuladas pelo STF em 2021 e não é mais considerado criminoso pela Justiça.

Fialho também defende "valores da família tradicional" e é contra "o lobby LGBTQIA+, as letrinhas todas".

Paulo Nunes, coordenador da Bancada Evangélica Portuguesa.
Paulo Nunes, coordenador da Bancada Evangélica Portuguesa. Imagem: Reprodução/YouTube

'Pancada na canela'

Embora a Constituição de Portugal proíba a criação de partidos religiosos, Paulo Nunes quer transformar a Bancada Evangélica em uma sigla, "mas dentro da lei". Ele não detalha como.

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Uma das inspirações de Nunes, além de Feliciano, é o pastor Silas Malafaia, líder da Advec, a Assembleia de Deus Vitória em Cristo. "É um benefício estar perto dele", diz.

Se me seguem como modelo, a maior besteira que vão fazer é fundar um partido exclusivamente evangélico. Quando vieram com essa conversa no Brasil, dei logo uma pancada na canela. Temos que estar em diversos partidos. Não estamos aqui para fundar uma República Evangélica.
Silas Malafaia

O carioca Marcus Santos, um dos 50 deputados eleitos pelo Chega, participou do encontro com pastores em Lisboa, em fevereiro.

Depois, postou uma foto no Instagram ao lado de Malafaia, que apresentou como um "dos grandes líderes e lutadores da direita conservadora no Brasil".

"A ascensão da extrema direita em Portugal está totalmente relacionada à expansão das igrejas evangélicas brasileiras no país", afirma Donizete Rodrigues.

Silas Malafaia, inspiração para o pastor português Paulo Nunes
Silas Malafaia, inspiração para o pastor português Paulo Nunes Imagem: Renato Araújo/Câmara dos Deputados
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Desconfiança europeia

Evangélicos portugueses tradicionais não aprovam o envolvimento das igrejas com os partidos políticos.

Em março, a AEP (Aliança Evangélica Portuguesa), entidade que reúne "herdeiros da Reforma Protestante que têm as Escrituras como única regra de fé", divulgou uma nota em que afirmava a sua "natureza estritamente apartidária".

"Os europeus mantêm uma desconfiança no que diz respeito à mistura entre religião e Estado", afirma o batista Tiago Cavaco, pastor da Igreja da Lapa, em Lisboa, filiada à AEP.

Ele diz que a "agitação trazida pelas igrejas neopentecostais e a naturalidade com que tantos evangélicos brasileiros misturam os assuntos" estão mudando Portugal.

"Temos que lidar agora com essa complexidade. Para um português, o Brasil é uma babel religiosa", afirma Cavaco.

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"Acho interessante que os evangélicos possam se envolver na política ativamente, mas não a partir de um princípio de representação evangélica, pois somos diversos", afirma.

Ele pondera, no entanto, que "se a comunidade evangélica ganha espaço político é sinal de que a democracia está funcionando".

Vista geral da Assembleia da República portuguesa durante o ultimo dia da visita do presidente Lula a Portugal
Vista geral da Assembleia da República portuguesa durante o ultimo dia da visita do presidente Lula a Portugal Imagem: Bruno de Carvalho/Brazil Photo Press/Folhapress

Influência da imigração

Dos habitantes da Região Metropolitana de Lisboa, 5% são evangélicos, de acordo com estudo de 2018 da Fundação Manuel dos Santos.

Segundo o último censo do país, de 2021, os evangélicos correspondem a 2,1% da população. Dez anos antes, eram 0,9%. A resposta à pergunta sobre religião, no entanto, não é obrigatória no censo.

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O crescimento da população evangélica em Portugal coincide com o aumento da imigração brasileira.

Desde 2016, o número de brasileiros registrados em Portugal cresceu quase 400% — hoje, são perto de 400 mil cidadãos, sem contar os ilegais.

Brasileiros com cidadania portuguesa e os que possuem o estatuto de igualdade de direitos políticos podem votar nas eleições. O voto é facultativo e não há dados oficiais sobre o número de brasileiros votantes.

Segundo Donizete Rodrigues, "a grande maioria" dos imigrantes brasileiros em Portugal é evangélica.

"O dado estatístico é impossível de conseguir", afirma, mas é uma "maioria expressiva".

Ele chega a essa conclusão a partir da análise do perfil predominante da atual leva migratória, composta por "mão de obra não qualificada e de baixa escolaridade". "É o perfil dos evangélicos", afirma Rodrigues.

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Malafaia em culto na inauguração da Advec Lisboa, em 2018
Malafaia em culto na inauguração da Advec Lisboa, em 2018 Imagem: Reprodução

'Porta de entrada"

Levantamento da AEP com seus integrantes divulgado em 2023 revelou que os brasileiros representam 81,6% do total de fiéis estrangeiros das igrejas.

Dos que passaram a frequentar os cultos nos três anos mais recentes da pesquisa (a coleta de dados se encerrou em março de 2023), 61,3% são brasileiros.

Nos dois casos, o número real de brasileiros é maior do que informa a pesquisa, já que a AEP não congrega todas as denominações evangélicas presentes em Portugal.

A Igreja Universal do Reino de Deus, com 133 unidades — 63 apenas na Grande Lisboa — não integra a AEP, assim como a Advec, de Silas Malafaia.

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Em janeiro, Malafaia inaugurou a quarta Advec em Portugal. A primeira foi aberta no final de 2018, na capital do país. No total, a igreja tem mais de mil membros em Portugal.

"Vamos inaugurar outras igrejas. Portugal é a porta de entrada para o resto da Europa", afirmou.

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