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'Vendo a mãe e entrego': filho de Elis mantém obra viva com ajuda da IA

A voz da Elis Regina (1945-1982) sai límpida na caixa de som em frente ao filho. Ele sorri satisfeito em ouvir a mãe soar viva e renovada, 42 anos depois.

João Marcello Bôscoli, 53 anos, é o principal responsável por manter viva a obra da mãe, agora com uso de inteligência artificial, uma das grandes tendências da música.

"Tenho de ter olhar de restaurador. Saber até onde ir e não tirar muita tinta", diz o produtor, às vésperas do Dia das Mães.

"Sou um filho profissional, vendo a mãe e entrego, não aceito reclamações", brinca.

João Marcello Bôscoli com a mãe Elis Regina
João Marcello Bôscoli com a mãe Elis Regina Imagem: Divulgação

O trabalho do momento é a música "Para Lennon e McCartney", famosa pela versão de Milton Nascimento, gravada por Elis em 1976 durante um programa da TV Bandeirantes.

A canção chegou nesta sexta (10) às plataformas de streaming com nova roupagem, voz tinindo e arranjo nunca ouvido. Graças aos avanços de programas de IA.

Não se trata de criar uma voz fake de Elis. A ferramenta limpou a gravação repleta de ruídos, distorções e barulhos na boca da cantora, que usava um microfone não profissional.

Para harmonizar com a tecnologia, João chamou músicos que regravaram a base perdida. Foram usados somente instrumentos fabricados antes de 1976.

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"A Inteligência artificial pode ser usada de muitas formas. É como uma harmonização facial, uma venda casada", compara o produtor, defensor da tecnologia e de como ela tem ajudado a apresentar Elis às novas gerações.

Ele ignora as críticas de parte dos fãs, que veem oportunismo na empreitada, mas faz uma ressalva.

A tecnologia ajuda, mas quem aprova ainda é a gente. Isso é importante. Se ela cair na mão errada, pode ficar muito falso. João Marcello Bôscoli

João Marcello Bôscoli no estúdio da Trama em São Paulo
João Marcello Bôscoli no estúdio da Trama em São Paulo Imagem: Adriano Delgado/UOL


Seguindo os passos dos Beatles

A ferramenta usada por João é parecida com a empregada no documentário "The Beatles: Get Back" (2021), de Peter Jackson, e na canção "Now and Then".

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A faixa inédita só pôde ser lançada devido à inteligência artificial, que conseguiu o feito de separar e tratar voz e instrumentos da gravação caseira deixada por John Lennon em uma fita K7 empoeirada.

Não é a primeira vez que a inteligência artificial serviu para Elis Regina reaparecer e fazer emocionar. Em 2023, uma propaganda milionária permitiu que sua filha, a cantora Maria Rita, pudesse cantar com a mãe.

São os três filhos da cantora, João Marcelo, Maria Rita e Pedro Mariano, que avaliam, juntos ou separadamente, os pedidos de publicidade para Elis.

"A gente confia um no outro. Temos a política do 'cada um cuide da mamãe'.", diz João.

O resultado transformou o comercial de carro num dos assuntos mais comentados do Brasil por semanas. E levantou um debate sobre o uso da imagem por essa tecnologia.

O uso da imagem de uma pessoa "ressuscitada" via inteligência artificial chegou a ser discutido no Senado.

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"Ela não está em posição de opinar. Ela deixou os filhos para isso. Elis ficou quatro vezes maior do que era em termos de audiência. E continua assim."

Apesar de muitas ofertas, os filhos aceitaram apenas quatro trabalhos publicitários envolvendo Elis. No caso do comercial de IA, ele diz, foram levantadas algumas questões.

Rosto de Elis Regina criado por inteligência artificial em comercial
Rosto de Elis Regina criado por inteligência artificial em comercial Imagem: Reprodução/Vídeo

Minha mãe faria um anúncio com a filha? Claro. Cantar com uma filha que se encontra no mesmo campo de atuação com excelência? Tudo sim. Alguém perdeu um emprego? Não. Tinha modelo fazendo a Elis na gravação João Marcello Bôscoli

"O que incomodava ela era a questão humana. E ali a ferramenta tinha uma função. Não era só o Morgan Freeman dizendo que não era o Morgan Freeman."

João agora faz um apelo aos fãs de Elis, caso alguém tenha guardado alguma gravação pirata.

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A descoberta mais recente foi a do registro do show "Falso Brilhante", também de 1976, que será restaurado para 2026, quando a obra completar 50 anos.

"Até lá, estou rezando para aparecer mais uma tecnologia para nos ajudar."

Elis Regina no camarim do espetáculo "Falso Brilhante", em 1976
Elis Regina no camarim do espetáculo "Falso Brilhante", em 1976 Imagem: Bob Wolfenson/Acervo pessoal

Elis marca o retorno da Trama

A tecnologia é uma das marcas da gravadora Trama, que João criou em 1998 com o empresário André Szajman e que agora retorna com o lançamento de Elis.

A gravadora mudou o cenário musical brasileiro nos anos 2000, resgatando nomes lendários como Gal Costa, Jair Rodrigues e Baden Powell.

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Também introduziu artistas que jogavam a brasilidade no eletrônico e no rap, como, Max de Castro, Rappin' Hood e Cansei de Ser Sexy.

"Números nunca fizeram muito sentido para a Trama. Não dá para você falar da importância de um Baden Powell com base em quantas pessoas o escutam online. Não dá pra ter retorno financeiro como se você investisse em dólar ou açaí."

A gravadora também mantinha a plataforma Trama Virtual, pioneira no mercado de música digital, com download gratuito — anos antes do streaming se tornar o formato mais ouvido.

A Trama, que chegou a ter cem funcionários, nunca foi fechada, mas passou os últimos anos sem gravar e lançar artistas.

João, conta que teve três ataques epilépticos durante o período de crise e que desistiu de comandar a empresa, embora não cogitasse vendê-la.

"Não queria colocar um executivo no lugar. Sempre fomos uma gravadora independente, um estúdio com liberdade", completa, citando os sonhos da mãe, que usou o nome Trama na própria empresa nos anos 1970.

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A gravadora continua com a intenção de revelar nomes. E, principalmente, trabalhar com seu catálogo e toda a tecnologia disponível.

O acervo conta com 23 mil mídias, incluindo músicas de Elis Regina e gravações com Gal Costa. "Coisas lindas, como uma jam session de Elza Soares com Hermeto Pascoal e uma das últimas apresentações de Cássia Eller."

João Marcello Bôscoli em seu estúdio, em São Paulo
João Marcello Bôscoli em seu estúdio, em São Paulo Imagem: Adriano Delgado/UOL

'Música do passado é o futuro'

Os avanços da inteligência artificial são fundamentais para a nova fase da gravadora, mas João não deixa de olhar para a tecnologia com preocupação.

A IA tem sido capaz de criar músicas e até bandas artificialmente — os experimentos podem ser ouvidos nas redes sociais.

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A gente vai ver uma disputa dos artistas humanos com os artistas computacionais. Já tem isso na Coreia do Sul, com bandas virtuais. O grande ponto nesse negócio todo é o controle humano. Aqui a gente usa tudo, mas ninguém perde o emprego.

Nesse futuro, a aposta do produtor é manter Elis sendo quem sempre foi — e com a melhor qualidade possível.

"As melhores músicas que vamos ouvir no futuro já foram gravadas", entende ele.

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