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Os bastidores do reality de Pablo Marçal que podem chacoalhar investigação

Provas que colocam em risco a saúde de participantes, rotinas forçadas de exercício e violência física.

Todas essas agressões foram parar na Justiça e são parte de um processo judicial movido contra o coach e pré-candidato à Prefeitura de São Paulo Pablo Marçal.

O UOL teve acesso ao processo e confirmou com outras testemunhas os pontos-chave da denúncia.

Elas afirmam que Marçal promoveu treinos extenuantes de três horas, sem exame médico prévio, e uma prova em um lago que está sendo investigada por possível descumprimento de ordem judicial.

Gravado em maio, o reality La Casa Digital 3 colocou 13 participantes em uma fazenda em Itu (SP) para realizar provas de resistência com a promessa de melhorarem de vida com os ensinamentos do coach.

O evento ocorreu um ano após a morte de um colaborador de Marçal durante uma maratona promovida por uma de suas empresas, a Xgrow, e dois anos após o coach colocar a vida de 30 pessoas em risco numa desastrosa tentativa de escalar o Pico dos Marins (SP) numa madrugada chuvosa.

Desde janeiro de 2022, Marçal está proibido pela Justiça de realizar atividades externas desse tipo sem supervisão e aprovação prévia de autoridades.

Ele é investigado em dois inquéritos policiais: um em Barueri (SP), que trata do caso da morte durante a corrida, e outro em Piquete (SP), que trata do incidente no Pico dos Marins.

Promotora do caso de Piquete, Renata Galhardo diz que irá investigar se houve descumprimento da decisão judicial.

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"Tomei conhecimento disso. Vou solicitar informações para a delegacia que está responsável e investigar o que aconteceu nesse evento, nesse reality. Vindo a informação para o nosso inquérito, vou analisar se foi ou não descumprida a medida judicial", disse.

O advogado de Marçal, Tassio Renan Botelho, nega que ele tenha desobedecido à determinação.

"Pablo atuou apenas como apresentador, não como organizador do evento."

A Fazenda Toscana Ltda., onde aconteceu o reality, pertence a Marçal.

Participante entre em lago durante reality La Casa Digital 3, de Pablo Marçal
Participante entre em lago durante reality La Casa Digital 3, de Pablo Marçal Imagem: Reprodução

Tapas e socos

A ação foi movida por Gabriel Godoy, 35, e apresenta fotos e vídeos que revelam a rotina de gravações de La Casa Digital 3, denunciando situações de abuso.

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O ex-participante afirma que um dos organizadores do reality o agrediu com um tapa no peito, socos na barriga e rasgou sua camiseta durante uma atividade que visava provocar uma reação emocional.

Godoy diz que, por resistir à metodologia violenta, teve de dormir em uma barraca afastada da casa como punição. Ele gravou um vídeo do castigo e registrou um boletim de ocorrência por agressão física.

A reportagem também teve acesso a depoimentos de outros participantes da edição do reality que confirmam os episódios. Nenhum outro participante, entretanto, quis dar entrevista.

Segundo os relatos, pessoas chegaram a vomitar de exaustão, sem que tivessem realizado avaliação médica. O UOL confirmou que pelo menos três participantes não fizeram nenhum exame para entrar no reality.

A defesa de Marçal contraria os participantes e diz que havia um médico de plantão.

Segundo o escritório, "é crucial enfatizar que todos os participantes concordaram com um termo de aceitação contratual, detalhando todas as atividades a serem executadas no evento".

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O UOL pediu à equipe do coach dados do profissional e documentos que mostrassem que os participantes passaram por alguma avaliação médica, mas nenhum material foi fornecido.

Imagem do reality La Casa Digital 3, de Pablo Marçal
Imagem do reality La Casa Digital 3, de Pablo Marçal Imagem: Reprodução

'Deixa de ser fraco, caralho'

No reality, Godoy e os demais participantes foram divididos em dois grupos. As atividades eram acompanhadas por mentores, que insistiam para que os participantes fossem levados ao limite, gritando para que deixassem de ser fracos ou covardes.

Vídeos publicados nas redes sociais pelo mentor Adonis Carnevale mostram essa atividade. Em um deles, Adonis grita para um participante, que parece exausto: "Deixa de ser fraco, caralho".

Segundo Godoy, a rotina obrigatória de exercícios se repetia diariamente.

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A reportagem teve acesso a vídeos e ao depoimento de outra participante. Uma das provas envolveu a travessia em um lago — a decisão que proíbe Marçal de promover atividades externas na natureza cita expressamente "montanhas, picos, rios, lagos, mares e correlatos".

A ex-participante afirma que a água estava suja e que algumas das pessoas relutaram em entrar no lago. Uma delas passou mal após a prova, com dores estomacais.

Um vídeo postado pelo mentor Adonis mostra ele "cancelando" a dor em nome de Jesus Cristo.

O UOL tentou entrar em contato com Adonis por meio da assessoria de imprensa, mas não recebeu resposta até a publicação da reportagem.

Rafael Francelli, um dos organizadores do reality, é acusado de agressão na ação movida por Godoy. Ele também não respondeu às mensagens enviadas pelo UOL.

É essencial destacar que nossos eventos visam o desenvolvimento humano e não apoiamos nem incentivamos qualquer forma de agressão, seja física ou psicológica. Não temos conhecimento de qualquer agressão cometida por nossos colaboradores. Contudo, se algum agressor for identificado, ele deverá responder legalmente por seus atos, que não refletem os princípios da nossa organização.
Equipe de Pablo Marçal em nota

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Em contato com a reportagem, a Prefeitura de Itu e a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, responsável por polícia e bombeiros, confirmam que não receberam pedidos de autorização para a realização do reality.

Imagem de divulgação do reality de Pablo Marçal
Imagem de divulgação do reality de Pablo Marçal Imagem: Reprodução/Instagram

Contra o ecossistema Marçal

La Casa Digital 3 terminou para os participantes do grupo de Godoy no dia 12 de maio, em um evento noturno no Canindé, em São Paulo, transmitido ao vivo.

O encerramento do programa foi caótico. Participantes afirmam terem sido dispensados na madrugada sem ajuda de custo, sem dinheiro, sem alimentação e sem meios de voltarem para casa.

O programa acabou, [Marçal] não conversou com ninguém sobre vencedores e dispensou os eliminados sem haver uma regra ou critério, às 2h da manhã, com os custos por conta própria de cada participante. Gabriel Godoy

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O ex-participante diz ter tentado contato com a equipe de Pablo Marçal após deixar o reality.

Ele pediu à advogada Allinne Garcia, que integra a equipe do coach, uma cópia do contrato assinado pelos participantes na entrada no programa, mas não foi atendido.

Troca de mensagens entre Gabriel Godoy e a advogada da equipe de Pablo Marçal
Troca de mensagens entre Gabriel Godoy e a advogada da equipe de Pablo Marçal Imagem: Reprodução

O UOL questionou a advogada sobre a negativa.

"Busquei estabelecer um diálogo com o Sr. Gabriel e depois com seu advogado. Ficou evidente que não havia a intenção de resolver a questão de forma amigável, mas sim tornar a situação pública e midiática. Diante disso, minha resposta final foi no sentido de não fornecer mais nenhuma informação ou documento sobre o assunto", disse ela.

Dias depois, Godoy foi procurado pelo advogado Tassio Renam de Souza Botelho, que representa Pablo Marçal em várias ações judiciais e se apresentou como CEO do grupo do coach.

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Godoy gravou a conversa e revelou seu conteúdo ao UOL. Nela, o representante de Marçal sugere um acordo e tenta fazer com que ele exclua seu advogado das tratativas.

"Acredito que a gente não precisa ir por esse lado. [Se] você realmente achar que [a discussão] é para esse lado, [a questão] vai pro tribunal. Assim, modéstia à parte, eu sou advogado titular do Pablo e não costumo perder nenhuma", diz.

"A procura por um acordo ou reparação é uma prática comum em casos de desacordo, e nossa abordagem padrão é sempre buscar uma conciliação. Isso não significa a admissão de erros, mas sim um esforço para resolver a situação de maneira amistosa e proteger a reputação do programa e do participante envolvido", disse Botelho à reportagem.

Godoy pede uma indenização de R$ 200 mil e que Marçal seja proibido de usar sua imagem em material promocional.
"Estou defendendo um direito meu. Não estou querendo nada além do que é certo", diz.

Pablo Marçal
Pablo Marçal Imagem: Divulgação

'Só os irresponsáveis chegam no topo'

Expor seguidores a riscos testando seus limites físicos não é algo novo no "método" de Pablo Marçal.

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No documento que embasa a medida relacionada ao episódio de Pico dos Marins, há o depoimento do sargento Douglas Nogueira, do Corpo de Bombeiros, que comandou o resgate.

"Este resgate foi muito difícil em razão das chuvas intensas, vento intenso, pedras escorregadias, ribanceiras escorregadias, frio intenso, neblina, pouca visibilidade, lama, risco de escorregar na lama, risco de cair em ribanceiras durante a caminhada, penhasco no local, caminho estreito, pessoas com nenhuma experiência em realizar trilhas, equipamentos inadequados, roupas inadequadas, preparo físico e psicológico inadequados, com altíssimo grau de dificuldade."

Foram considerados agravantes na ocasião o fato de Marçal prosseguir com a escalada após a desistência de metade do grupo e contra a recomendação de um guia local.

A investigação aponta que ele postou nas redes sociais no dia as frases "só os irresponsáveis chegam no topo" e "a gente correu muito risco... Você que não quer correr risco fica na sua casa assistindo stories".

Pablo Marçal entrou com um habeas corpus para tentar reverter a decisão, liberar a proibição e arquivar o inquérito, mas a ação foi rejeitada.

Ele recorreu, mas não teve sucesso. A investigação corre sob segredo de Justiça.

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A promotora Renata Galhardo afirmou ao UOL que irá solicitar informações para investigar descumprimento de decisão judicial envolvendo as novas acusações no caso do reality La Casa Digital 3.

Em junho de 2023, Bruno Teixeira, então com 26 anos, morreu durante uma maratona surpresa organizada pela Xgrow, empresa fundada por Pablo Marçal.

O caso também resultou em um inquérito relatado em Barueri e enviado à Justiça. A família do jovem responsabiliza o coach.

"Essa foi uma loucura que partiu do próprio Pablo Marçal, que tem vídeos dele fazendo maratona e incentivando pessoas a fazer. Mas as pessoas ali não tinham preparo nenhum pra fazer a corrida", disse Luciano Teixeira, irmão da vítima, à TV Bandeirantes na época.

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