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'Sou quem mais perdeu': sócio das Americanas poupa parceiros e culpa ex-CEO

Sócio e membro do conselho de administração das Americanas, o empresário Carlos Alberto Sicupira diz se ver como o maior prejudicado pela fraude bilionária na empresa, um dos símbolos do varejo no país.

"Eu sou o que mais perdeu", disse ele em depoimento à CVM (Comissão de Valores Mobiliários) em maio de 2023, ao qual o UOL teve acesso.

Fundada em 1929, a varejista vive hoje um calvário sobre o que aconteceu em seus balanços nos últimos anos.

Investigações conduzidas pela Polícia Federal, Ministério Público Federal e CVM apontam que uma ação fraudulenta orquestrada por diretores deixou mais de R$ 40 bilhões em dívidas.

"Eu não queria fazer nenhum juízo antes de ter a investigação. Eu fico aflito, tá? Muito aflito. Eu sou o que mais perdeu. Estou aflito, mas eu acho que tenho de ser disciplinado e esperar um veredito", afirma Sicupira.

O empresário tem patrimônio estimado em mais de US$ 9 bilhões (mais de R$ 50 bilhões).

Sicupira ganhou notoriedade no mercado financeiro nos anos 1970, quando virou sócio de Jorge Paulo Lemann e Marcel Telles no Banco Garantia, que culminou na criação da 3G Capital.

O trio ficou conhecido por fisgar oportunidades, como a entrada em empresas como Brahma e Alpargatas.

Em 1982, o Garantia tornou-se o controlador das Lojas Americanas. Na sequência, Sicupira ascendeu à presidência da varejista.

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A descoberta do rombo

Após sair da presidência da companhia, em 1991, Sicupira assumiu o conselho de administração, cargo que ocupou até renunciar, em 2020.

Nessa época, conviveu com Miguel Gutierrez, presidente da companhia por duas décadas e o único dos diretores que chegou a ser preso até agora.

Segundo os depoimentos colhidos pela CVM, Gutierrez fazia tudo para bater as metas.

Sicupira disse que ficou "em choque" ao receber uma ligação de Sergio Rial, sucessor de Gutierrez, apontando "inconsistências contábeis" de cerca de R$ 20 bilhões nos balanços.

A conversa ocorreu em 5 de janeiro de 2023.

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"Primeiro, eu estava em choque, caindo para trás. Depois, o Rial me falou para agir com o cérebro e não atrapalhar."

Egresso do Santander e recém-empossado no cargo, Rial teria orientado Sicupira a manter a calma e não assumir um papel "inquisidor", a fim de não prejudicar as investigações.

Segundo Sicupira, Rial disse na ocasião: "Tudo está saindo aqui a conta-gotas e a gente joga contra o tempo".

No dia seguinte, Rial organizou uma reunião com os principais executivos da companhia.

Participaram da conversa ex-diretores como Anna Saicali, Fabio Abrate, José Timotheo Barros, Marcio Cruz e Marcelo Nunes, que foi quem explicou o ocorrido nas contas da varejista.

Além de Rial e Sicupira, estavam presentes o presidente do conselho de administração, Eduardo Saggioro, e André Covre, que havia assumido a diretoria financeira.

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"Só o Marcelo Nunes falou e ninguém desdisse o Marcelo Nunes. Quem cala consente", afirmou Sicupira ao relatar a reunião.

Na conversa, Nunes explicou como as Americanas tinham adotado uma prática de financiamento junto aos bancos via risco sacado.

Esse tipo de operação ficava "escondida" no balanço da empresa e virou o principal instrumento da fraude.

Segundo Sicupira, essas operações deveriam ser comunicadas ao conselho de administração e ao comitê de auditoria da empresa, mas não eram.

"O comitê de auditoria perguntou se [a empresa] tinha risco sacado e foi informado que a resposta era não. Isso foi perguntado várias vezes."

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Como o risco sacado não era mencionado no balanço, nem como dívida, nem como empréstimo, a empresa ganhava espaço para manipular os números e apresentar uma situação financeira distorcida, geralmente com dados melhores do que a expectativa do mercado.

Sicupira apontou que um boleto antecipado pela fabricante P&G com as próprias Americanas gerou um sinal de alerta entre os membros do comitê de auditoria.

Ele disse que, ao questionar Gutierrez sobre a operação, o ex-CEO teria mencionado que o pedido da P&G fazia sentido e reforçara que a companhia não trabalhava com risco sacado.

Esse tipo de operação de antecipação com caixa próprio, apontada por Gutierrez, se dava geralmente entre Americanas e pequenas e médias empresas.

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Imagem: Reuters

Envolvimento generalizado

Nem os comitês internos, tampouco as auditorias independentes, conseguiram detectar as fraudes.

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A investigação concluiu que, para essa operação ser bem sucedida, vários diretores deveriam participar ou consentir com as fraudes, já que seria fácil detectar irregularidades por meio dos comandos de controle da empresa.

"Aparentemente, a gente tem o envolvimento de todas as áreas. Tem envolvimento da tesouraria, da controladoria, que fazia esse negócio todo, e envolvimento comercial", disse Sicupira. "É um negócio sistêmico que passa por cima de tudo que é controle."

O empresário disse que a corrupção generalizada nos cargos executivos da companhia atrapalhou a escolha de um sucessor para Rial, que ficou pouco mais de dez dias no cargo.

O nome de José Timotheo Barros, ex-diretor de Lojas Físicas, Logística e Tecnologia, era um dos preferidos, tanto de Gutierrez como de Sicupira, mas a primeira decisão a ser tomada foi a retirada dos envolvidos do dia a dia da varejista.

"O normal seria indicar um daqueles caras que estavam na sala, mas se o cara estava naquela sala ele não poderia ser o CEO. Então, nós procuramos alguém que conhecesse a operação da companhia e que nunca estivesse ligado à área financeira, comercial ou contábil da empresa. Era o caso [do diretor] de sistemas", disse Sicupira, ao destacar a escolha pelo então diretor de recursos humanos João Guerra para ser o CEO interino.

Guerra foi demitido das Americanas em setembro de 2023, após oito meses no cargo.

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Segundo relatório da Polícia Federal, Guerra "tinha plena ciência das fraudes cometidas e, chefiando os departamentos de tecnologia e informação, era o responsável por operacionalizar tecnicamente as fraudes, além de dificultar as auditorias".

Hoje, o executivo Leonardo Coelho Pereira, indicado pela consultoria Alvarez & Marsal, atua como CEO das Americanas e tem a missão de reestruturar a companhia.

Miguel Gutierrez, ex-CEO das Americanas
Miguel Gutierrez, ex-CEO das Americanas Imagem: Reprodução

Relação com Gutierrez

Em depoimento, Miguel Gutierrez, que chegou a ser preso na Espanha, disse que todas as decisões que ele tomava à frente da empresa eram discutidas previamente com Sicupira.

O acionista nega e refuta qualquer vínculo com o ex-CEO em seu depoimento à CVM.

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"Eu nunca tive relações pessoais com ninguém da administração. Nunca fui à casa de nenhum deles. O Miguel deve ter ido à minha casa uma vez, numa tarde, mas não era para falar da companhia", disse Sicupira.

"Eu conheci a família do Miguel na missa de sétimo dia da mãe dele e uma vez eu cruzei com ele e os filhos em um restaurante", completou.

Sicupira também apontou que Gutierrez recebeu, em 2018, o comunicado de que seria trocado do comando da companhia.

A ideia era que a substituição ocorresse em 2020, mas os planos foram atrapalhados pela pandemia de covid-19.

O conselho entendeu que a troca naquele momento incerto seria temerária e estendeu o contrato do CEO por mais dois anos.

A substituição veio na esteira de uma intenção de diversificar as fontes de receita, com a abertura de um banco e a internacionalização das Americanas.

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A ideia, segundo uma fonte interna, era transformar as Americanas na "Amazon brasileira".

Sicupira apontou que Gutierrez tinha o intuito de fazer seu sucessor dentro da companhia: os nomes de Anna Saicali e Timotheo Barros eram seus preferidos.

Até por isso, Gutierrez recebeu mal o comunicado de que o novo CEO viria de fora.

Sicupira avalia que Gutierrez boicotou Rial, negando-se a compartilhar informações prévias sobre os balanços da empresa e excluindo-o de qualquer reunião da alta cúpula da Americanas em seus últimos meses de mandato.

Antes de assumir a empresa, Rial firmou um contrato como consultor da Americanas por quatro meses antes do fim de 2022.

"O Miguel, que eu saiba, não dava feedback nem para o Eduardo [Saggioro, presidente do conselho] nem para o Rial", disse Sicupira.

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"Ele levou ao extremo que quem não é da companhia não pode ver os resultados. O fato é que tinha uma reclamação grande do Rial de que ele não tinha acesso às informações que ele pedia e não participava das reuniões operacionais. Ele queria estar olhando a auditoria, queria participar", afirma o acionista.

Carlos Alberto Sicupira, Jorge Paulo Lemann e Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, acionistas das Americanas
Carlos Alberto Sicupira, Jorge Paulo Lemann e Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, acionistas das Americanas Imagem: Divulgação

Gutierrez chegou a pedir para que Rial não participasse de sua última reunião como dirigente das Americanas, mas Saggioro bateu o pé.

Em 27 de dezembro de 2022, eles se reuniram para ver uma apresentação na qual Gutierrez mostrou números falsos sobre a operação e se vangloriava de seu "legado" à frente da companhia.

O primeiro contato de Sicupira com Rial foi quando voltou a morar no Brasil em 2020, depois de 16 anos no exterior. "Eu tive que internalizar uma porção de coisas e fui ao Santander, onde fui apresentado ao Sergio Rial. Nunca tinha visto ele antes", apontou.

Em dezembro daquele ano, Sicupira teve a ideia de chamar Rial para o conselho de administração das Americanas. O acionista pensou que ele era um bom nome para o novo momento da companhia.

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Rial negou a investida, pois já participava de diversos conselhos. Tudo mudou quando o ex-CEO do Santander Brasil soube que seu nome era um dos cotados para o comando da varejista.

"Ele soube do processo de contratação, me ligou e disse que tinha interesse na posição. Eu caí para trás. Nunca pensei que ele ia topar um negócio desses", disse Sicupira.

As Americanas contrataram uma consultoria estadunidense, a Spencer Stuart, para mapear possíveis sucessores ao comando da empresa.

A consultoria detectou que todos os perfis encontrados eram de "executivos" e não de pessoas com condições de transformar o negócio.

O contrato entre Rial e as Americanas foi costurado por Cláudio Garcia, presidente do comitê de gente da companhia.

"Era um pacote em que 70% eram em ações e 30% seriam remuneração por cotas."

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"O Rial tinha três metas. A primeira meta era fazer a sucessão em cinco anos. A segunda era criar um negócio financeiro que fosse significativo em termos de resultados para a companhia e a terceira meta era a internacionalização", disse Sicupira.

Em poucos meses como consultor, Rial conquistou a confiança dos diretores que, segundo a investigação, operavam a fraude.

Quando Gutierrez saiu da operação, Anna Saicali e Timotheo decidiram delatar o caso.

"Eu acho que tentaram cooptar o Rial achando que ele iria resolver o problema. Essa é uma ilação. Eles preferiram colocar o cara [Rial] como sócio a ele achar por si próprio", disse Sicupira.

O ex-CEO Miguel Gutierrez foi preso, mas solto posteriormente. Anna Saicali está com o passaporte detido. Os outros respondem em liberdade.

Sicupira nega que tivesse ciência prévia das inconsistências.

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