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Funkeiros ucranianos aliviam medo da guerra com batidão brasileiro

Jovens ucranianos encontraram no funk brasileiro uma forma de aliviar a tensão e traduzir sentimentos de raiva e incerteza causados pela guerra.

Mesmo sem entender português, eles ouvem faixas brasileiras e se inspiram para criar músicas com vocais em português.

Resultado: funkeiros brasileiros passaram a faturar mais e a ter mais público. Emplacar um hit no leste europeu pode render até R$ 500 mil, apurou o UOL.

Essa conexão já mudou a vida de artistas da periferia do Rio e de SP.

DJs ucranianos se inspiram no funk bruxaria e produzem a variante que chamam de "Brazilian phonk". Dez das 50 músicas virais do Spotify da Ucrânia hoje são do gênero.

Eles também criaram a Ukranian Phonk Community (Comunidade Phonk Ucraniana), que promove eventos musicais na capital, Kiev, e em outras cidades não invadidas pela Rússia.

Nessas festas, que têm renda doada ao exército da Ucrânia, o gênero mais popular é Brazilian phonk.

A conexão também é forte no streaming. A curitibana Bibi Babydoll lançou em 2023 "Automotivo Bibi Fogosa", com o DJ carioca Brunin XM, e foi número 1 no Spotify ucraniano.

O hit da vez é "Ela Joga na Hora", de Pogba e o DJ paulista Guih da ZO, que chegou ao topo da parada viral do Spotify ucraniano em julho.

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O Brazilian phonk também cresce em países como Turquia, Alemanha e México, mas o elo brasileiro com a Ucrânia é especial, dizem os próprios DJs.

Som pesado traduz pesadelo

Em 2021, Misha* comprou seu primeiro computador. Queria jogar com os amigos, mas acabou descobrindo nas redes o FL Studio, programa de produção musical.

Tempos depois, ele e os amigos de Kiev descobriram no TikTok o mandelão e outros subgêneros do funk, como o bruxaria, com batidas soturnas.

Parecia a rotina de um adolescente comum, mas a vida já não era normal. A Rússia tentou invadir a cidade.

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A capital resistiu, mas os russos ocuparam o leste ucraniano e começaram a guerra que já matou mais de 23 mil civis e 500 mil soldados, segundo a ONU e o governo dos EUA.

Misha vive hoje um sonho e um pesadelo. Com sua habilidade no FL Studio, virou o DJ MSHT, emplacou hits de Brazilian phonk e conquistou 1 milhão de ouvintes mensais no Spotify.

Misha, também conhecido como DJ MSHT
Misha, também conhecido como DJ MSHT Imagem: Divulgação

Ele consegue viver de música enquanto faz faculdade de computação.

Mas não há paz à vista. O recente contra-ataque surpresa da Ucrânia na Rússia fez a guerra ficar ainda mais incerta.

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A idade de convocação oficial é 25 anos. Misha tem 21. O exército pode não esperar até lá.

"Você pode estar andando na rua, um alistador te botar num ônibus e te levar para a guerra. É duro para a saúde mental, porque você vê isso todo dia. Mas é a nossa vida agora."

Mesmo assim, ele quer ficar e, se necessário, defender seu país.

Misha recorre à música com batidas sombrias e às letras brasileiras que não entende para lidar com uma angústia que nem sabe explicar.

Qual é o sentido de usar vocais que não entende? O rapaz dá a mesma explicação dos DJs compatriotas que falaram ao UOL: o ritmo que os brasileiros colocam na voz.

Os DJs ucranianos de Brazilian phonk encontram esses vocais brasileiros nos chamados "packs", pacotes de batidas e vozes que circulam na internet.

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Essa é uma prática comum no Brasil. MCs divulgam vozes sem batidas no site Soundcloud ou via arquivos avulsos. DJs podem usá-las de graça.

Caso uma dessas produções faça muito sucesso, os MCs pedem parte da renda, mas é comum que os áudios circulem tanto que o crédito se perca — a maioria dos funkeiros não é requisitada.

Volodymyr faz cosplay de funkeiro brasileiro
Volodymyr faz cosplay de funkeiro brasileiro Imagem: Reprodução

Funk feito com Google Tradutor

"Gosto de como os MCs brasileiros brincam com a entonação", explica Volodymyr*, 20 anos, o DJ Screwboy, que vive em Vinítsia, centro-oeste da Ucrânia. A cidade já foi bombardeada pelo exército russo.

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"Compor e ouvir este estilo me ajuda a liberar sentimentos de raiva e desanuviar minha cabeça. Curto a variedade de sons e a construção do ritmo. Adoro esse gênero, vivo por ele", diz.

Quase todas as músicas dele têm títulos em português. Volodymyr pensa numa ideia que o som evoca e coloca no Google Tradutor.

Assim surgem nomes como "Aumento dos Níveis de Testosterona" e "Melodia de Trollo".

O contraste entre título e letra é engraçado para um brasileiro. O tom é sério, sombrio, mas os versos mixados são eróticos.

Volodymyr ainda trabalha como designer e editor de vídeo. Ele emplacou recentemente uma faixa na playlist "Military Phonk", que tem 230 mil seguidores.

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São músicas que fazem sucesso em vídeos no TikTok para exaltar soldados e comemorar bombardeios — tanto por ucranianos quanto por russos.

"Já conheci soldados que ouviam brazilian phonk e se sentiam motivados e energizados por isso. Pessoas no campo de batalha ou que não estão mais entre nós", lamenta.

Alexey, o DJ SNXFF
Alexey, o DJ SNXFF Imagem: Reprodução/Instagram

Ajuda militar

"Estamos trabalhando em um evento, sobre o qual não posso falar muito, mas vai ajudar o nosso exército", diz Alexey, 19 anos, o DJ Snxff.

Ele é um dos membros mais ativos da UPC. A primeira festa aconteceu em abril de 2023 e reuniu 800 pessoas.

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A maioria dos membros e fãs do coletivo tem menos de 25 anos, a idade de convocação. "Ainda não posso ir para a guerra, mas, se precisar, vou", diz Alexey.

Em 2024, eles fizeram outros dois eventos em Kiev e mais dois em Lviv, no leste, e Dnipro, no oeste do país. Há um álbum de brazilian phonk em produção.

"Estamos tentando viajar para o Brasil, tentando encontrar recursos. Vendo documentos com pessoas do nosso governo", diz o DJ.

O plano soa pouco plausível. A lei marcial ucraniana dificulta a saída e entrada no país, inclusive para cidadãos. Por enquanto, o jeito é curtir o Brasil à distância.

O brasileiro MC Pogba
O brasileiro MC Pogba Imagem: Divulgação

Adeus, mototáxi

"Ela Joga na Hora", de Jefferson Fernandes de Oliveira, o MC Pogba, se espalhou no TikTok e caiu no gosto de Alexey e outros ucranianos.

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MC Pogba, 31, começou a fazer funk na favela da Rocinha, no Rio. Ele se mudou em 2019 para São Paulo, onde sua voz cavernosa ficou conhecida na cena do mandelão.

Pogba, que trabalhava como mototaxista de aplicativo, nem sabia que a música poderia ser ouvida em outro país. Ele conseguiu largar o trabalho na 99Taxi e focar no funk.

"Quando bateu essa na Ucrânia, mudou minha vida", comemora.

Pogba conta que vendeu os direitos da música a uma distribuidora estrangeira por US$ 95 mil (R$ 513 mil, valor dividido por ele com o DJ Guih da ZO e seus empresários).

O MC não recebeu convite para tocar na Ucrânia, mas diz que não teria problemas com a viagem.

"Só botar Deus na frente e ir. Morar na Rocinha até que era tranquilo. Uma, duas vezes por ano rola uma guerrinha. Estou acostumado."

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Pogba poderia ter feito um negócio até melhor se não vendesse o direito da música para uma empresa e ficasse com a renda direta dela nas plataformas.

Lucas Araújo de Holanda, 22, o DJ Holanda, que até 2023 trabalhava como suporte de TI em Diadema (SP), estourou na Alemanha e leste europeu com "Montagem Coral".

Ele largou o emprego e, hoje, tem 1,2 milhão de ouvintes mensais no Spotify. Consegue monetizar o uso das faixas no TikTok e Instagram.

Suas músicas geram até R$ 180 mil por mês segundo Daniel Siviero, da Bull Talent, que o agencia.

Vitor Luis Silva de Jesus, 21, o DJ VTZE, era jovem aprendiz em um supermercado de Ribeirão Pires (SP) e ganhava R$ 600 por mês.

Seu brazilian phonk "Montagem Diamante Rosa" chegou à 33ª posição no Spotify da Ucrânia em julho. A faixa também foi bem no Cazaquistão, Bielorrússia e outros países da região.

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"Já ganhei mais de 300 meses do que ganharia de salário no supermercado", conta.

"Orquestra Maldita", single de brazilian phonk do DJ TRASHXRL
"Orquestra Maldita", single de brazilian phonk do DJ TRASHXRL Imagem: Reprodução

Doação para a Ucrânia

Além de gerar hits inusitados, a conexão Brasil-Ucrânia também começa a gerar conexões pessoais.

Nick, 16, o DJ Pytt, fugiu com a família de Odessa logo que a guerra começou e hoje na Alemanha.

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Ele começou como os outros DJs ucranianos, buscando "packs" de vozes gratuitos na internet, mas percenbeu que levaria vantagem caso conseguisse vocais únicos.

"Comecei a mandar mensagem para todo mundo, pessoas aleatórias na internet."

As mensagens chegaram a GW, um dos funkeiros mais ouvidos do Brasil, que topou a parceria.

O "feat" resultou em "Montagem Imparável", que já tem 800 mil plays no Spotify.

Pytt também conseguiu contato com Bibi Babydoll, com quem lançou "Loura Mágica" e "Loura Mágica 2", com 550 mil plays. Ficaram amigos e hoje se ajudam além das produções.

A funkeira Bibi Babydoll
A funkeira Bibi Babydoll Imagem: Divulgação
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"Queria fazer uma doação para a Ucrânia, por causa da guerra. Quem me recomendou a plataforma de doação foi o Pytt, que me falou da situação difícil deles", conta Bibi.

Os dois têm ideias parecidas sobre o trabalho. "O mais importante é sentir a música, não ter produções caras. Você só precisa sentir a música e ter ideias doidas", diz Pytt.

"São timbres agressivos, com um tom periférico e um ritmo diferente. Acho que é um reflexo da megalópole que é São Paulo, do qual eles acabaram gostando também", diz Bibi.

*Os entrevistados pediram para não mencionarmos seus nomes completos.

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