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Cidade favorecida por Lula desviou para salários verba para tratar câncer

A cidade de Cabo Frio (RJ) usou milhões de reais repassados pelo Ministério da Saúde para pagar salários ao longo deste ano. O dinheiro deveria ser empregado em tratamentos de câncer e cardiológicos.

Já Mauá (SP), que reforçou o caixa com R$ 62,8 milhões da Saúde entre outubro de 2023 e junho deste ano, contratou a empresa de um estagiário de design de vitrines com uso de verba federal.

No mesmo período, os dois municípios receberam R$ 118 milhões após reuniões reservadas no Palácio do Planalto com o presidente Lula (PT) ou seu chefe de gabinete, Marco Aurélio Ribeiro, o Marcola.

Como revelou o UOL, Lula favoreceu seis prefeituras aliadas com R$ 1,4 bilhão de cinco ministérios.

Recursos foram liberados sem análise técnica, em até 24 horas e em processos que ferem a legislação e princípios da Constituição.

Cabo Frio colocou R$ 55,4 milhões para pagar a folha integral do pessoal da saúde — o que é vedado pelo Ministério da Saúde — e para comprar 300 mil aventais.

Os recursos deveriam ser usados em tratamentos cardiológicos, oncológicos, ortopedia, colostomia, diabete, hipertensão e exames radiológicos.

O UOL seguiu o dinheiro e descobriu que nenhum centavo foi destinado para isso.

A assessoria do Palácio do Planalto afirmou que os atendimentos de demandas levadas por prefeitos a Lula seguem "critérios objetivos" e que os recursos são liberados pelos ministérios "de forma documentada" (leia mais).

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O Ministério da Saúde afirmou, em nota, que os recursos repassados são submetidos a uma "série de procedimentos e instrumentos de prestação de contas" para serem usados em linha com os termos autorizados.

Procurada, a prefeitura de Mauá não se manifestou. A assessoria da prefeita Magdada, de Cabo Frio, disse que "todos os questionamentos sobre o uso da verba do Governo Federal enviada à Cabo Frio foram respondidos durante a CPI da Saúde realizada na Câmara Municipal. E que a verba poderia ser utilizada tanto para a folha de pagamento dos funcionários da Média e Alta Complexidade, como também para a compra de material hospitalar."

A prefeitura não esclareceu a razão de ter usado a verba para pagar funcionários que não atuam na média e alta complexidade e não ter aplicado o dinheiro nas doenças, como condicionado pela Saúde.

Mauá: dos cofres federais para empresa de estagiário

A Prefeitura de Mauá afirmou à Saúde, em um dos pedidos para reforçar seu caixa, que precisava de verba extra porque os valores repassados eram "insuficientes à execução das ações e serviços públicos de saúde de média e alta complexidades".

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O dinheiro foi liberado pela pasta em duas etapas e fora das regras:

  • O ministério enviou R$ 42,8 milhões em outubro de 2023. Para isso, a área técnica analisou um pedido de apenas R$ 250 mil;
  • Em junho, o ministério liberou mais R$ 20 milhões para Mauá sem estudo técnico -- o que é obrigatório.

A nota técnica da Saúde contém só três frases e não justifica a razão de repassar verba emergencial.

Em média, os documentos que contêm a análise dos técnicos sobre as demandas podem ter até 16 parágrafos.

Entre março e julho, a gestão de Marcelo Oliveira (PT) usou dinheiro federal para contratar a M2 Distribuidora e Projetos.

Foram destinados R$ 802 mil para comprar móveis para unidades de saúde, como cadeiras, mesas, roupeiros, armários e estantes de aço.

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Do total do contrato, ao menos R$ 298 mil saíram da verba federal.

Documentos levantados pelo UOL mostram que, no papel, a firma está em nome de um estagiário.

Salário de R$ 2.600 como estagiário

A M2 foi aberta em janeiro de 2022 por Matheus Cezar de Oliveira Leite, que até hoje permanece como único sócio. O endereço: um coworking em Sorocaba (SP), a 161 km de Mauá.

Na ocasião, o dono da empresa trabalhava como estagiário de design de vitrines em Piedade, a 50 minutos de Sorocaba, com salário de R$ 2.600, segundo relatou seu advogado em um processo judicial.

A informação consta numa ação trabalhista movida por Leite contra uma fábrica de móveis e decoração para a qual afirma ter atuado como estagiário por cerca de dois anos.

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Ele foi à Justiça em busca de pagamentos de FGTS, 13º salário e férias proporcionais.

Entre julho de 2020 e abril de 2021, Leite recebeu salário de R$ 1.750 como projetista de móveis. De março a dezembro de 2015, atuou como auxiliar de escritório com rendimentos mensais de R$ 936.

Apesar de ter recebido, em sua trajetória profissional, rendimentos mensais de no máximo dois salários mínimos.

'Empresa-prateleira'

A firma atua com comércio de móveis, produtos de limpeza, equipamentos de informática, componentes eletrônicos e instrumentos e materiais para uso médico.

Esse tipo de empresa é apelidada de "prateleira" por atuar em diversas frentes.

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Logo após a abertura, a M2 fechou contratos de fornecimento de produtos e equipamentos com nove prefeituras paulistas e com a Câmara Municipal de Mauá — até julho, eles ultrapassaram R$ 4 milhões em contratos.

O pai do dono da empresa entrou em contato após o UOL tentar localizar Matheus Leite.

"Ele é meu filho, é estudante e eu que administro a empresa", disse Nelson Luiz de Almeida Leite Júnior.

Questionado sobre o motivo de a M2 não estar em seu nome, justificou: "É por causa de impostos, essas coisas, né?".

No dia seguinte, a M2 enviou uma nota ao UOL e afirmou integrar "um grupo familiar que atua no ramo de vendas de móveis escolares e de escritório há mais de 15 anos".

Disse ainda que foi um "mal-entendido" o fato de o sócio da empresa declarar à Justiça ser "juridicamente pobre".

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A M2 relatou que "sempre cumpriu" seus contratos com o poder público.

Contratar uma empresa em que o dono formal não é o proprietário de fato — também chamado de "laranja" — é um risco para a administração pública.

Há casos em que a lei permite que a responsabilidade por irregularidades seja estendida a pessoas físicas sócias da empresa.

"Quando você usa um terceiro [como proprietário da firma], não consegue chegar ao [verdadeiro] responsável pela empresa", explicou o advogado Felipe da Costa, especialista em Direito Administrativo.

Cabo Frio: repasse a jato

Em dezembro de 2023, o Ministério da Saúde enviou R$ 55,4 milhões para Cabo Frio. O repasse saiu a jato.

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O aval para a verba foi dado cinco dias após a prefeita Magdala Furtado (PV) se reunir com a ministra Nísia Trindade — dez dias depois, o dinheiro já estava na conta do município.

Como mostrou o UOL, a portaria autorizava apenas R$ 4,6 milhões — R$ 51 milhões a menos do que foi enviado.

Desde o início do mandato, Lula se reuniu individualmente com oito prefeitos, e Magdala era um deles. Um dia após o encontro, ela trocou o PL (de Bolsonaro) pelo PV e ganhou o apoio do PT para a reeleição.

A prefeitura usou o valor para comprar 300 mil aventais e pagar integralmente a folha de pessoal da saúde.

Pelas regras do ministério, o dinheiro só poderia ser usado para pagar funcionários que atuam em exames e cirurgias de média e alta complexidades (399 pessoas).

O volume de aventais impermeáveis, previsto para três meses de uso, custou R$ 1,1 milhão e foi adquirido da DPNT Comércio e Distribuição, "empresa prateleira" que registrou 19 atividades na Receita.

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A prefeita Magdala inchou a área da saúde do município de cargos comissionados (sem concurso).

Levantamento ao qual o UOL teve acesso mostra que 4.453 pessoas compunham o quadro de funcionários da saúde quando Magdala assumiu, em julho do ano passado.

Segundo a prefeitura, constam atualmente na folha de pagamento da saúde 4.814 pessoas.

Os salários estão sendo pagos com atraso.

R$ 20 milhões em curativos

A prefeitura também alocou verba do Ministério da Saúde para comprar R$ 20,4 milhões somente em curativos.

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O pregão prevê a compra de 240 mil gazes e 10.800 curativos.

Cabo Frio tem quatro hospitais de porte médio e duas UPAs e não é considerada uma cidade-polo que recebe pacientes de outros municípios.

O pregão foi aberto no dia 31 de julho, chegou a ser cancelado pela prefeitura, mas foi retomado a três meses da campanha eleitoral.

Uma das concorrentes contestou o edital da licitação e alegou que há restrição de competitividade.

Segundo a empresa, "diversos itens" do edital "estão claramente direcionados a determinadas marcas específicas".

"Tal situação é evidenciada pela reprodução fiel das descrições utilizadas por fornecedores dessas marcas, restringindo, assim, a competitividade do certame", afirmou.

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A empresa também aponta para a "possível aquisição de produtos de baixa qualidade ou procedência duvidosa".

A prefeitura justifica a compra de 240 mil curativos dizendo que existem "132 pacientes em tratamento de pele e feridas" e que há uma "demanda reprimida".

A Secretaria de Saúde de Cabo Frio contestou o argumento da empresa e declarou que "não há qualquer direcionamento de marcas, mas, sim, especificações de requisitos mínimos".

A pasta registrou ter feito "um vasto trabalho técnico para garantir a saúde do paciente".

Prestação de contas

O Ministério da Saúde informou que estados, Distrito Federal e municípios prestam contas das verbas repassadas por meio do chamado RAG (Relatório Anual de Gestão).

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O documento "apresenta os resultados alcançados e é submetido à aprovação dos Conselhos de Saúde".

"A cada quatro meses, os municípios devem apresentar relatórios detalhados ao Conselho Municipal de Saúde e à população, em audiências públicas, conforme a Lei Complementar número 141/2012", informou a pasta.

A Saúde também disse que acompanha a prestação de contas dos municípios pelo Siops (Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde).

"Em eventual detecção de impropriedades ou irregularidades na destinação de recursos públicos federais, o Ministério da Saúde pode instaurar procedimentos de ressarcimento ao erário", afirmou.

O ministério também afirmou que a fiscalização dos repasses é compartilhada pelo Poder Legislativo, Tribunais de Contas, o sistema de auditoria do SUS, o controle interno e os conselhos de saúde.

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