PMs da reserva viram consultores e lucram com modelo militar de ensino
Militarizar escolas de educação básica virou negócio nas redes pública e privada.
Há no país um mercado de consultorias comandadas por policiais aposentados que oferecem serviços terceirizados para políticos e empresários interessados em atribuir um "perfil militar" às suas escolas.
A estratégia acompanha o aumento do número de colégios cívico-militares pelo país, que triplicou desde 2018 e hoje chega a 792 unidades somente nas redes estadual e federal.
Impulsionado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, o modelo se espalhou pela rede pública e chegou ao sistema privado de ensino.
Após serem contratadas, as empresas elaboram um plano de adequação de escolas existentes ou ajudam na formatação de colégios novos, criados sob a ótica do ensino militarizado.
Essas consultorias cobram em média de R$ 34,5 mil a R$ 70 mil por mês, apurou o UOL.
A Prefeitura de Ilhabela, no litoral paulista, foi uma das que aderiram ao projeto no estado.
Comandada pelo prefeito Toninho Colucci (PL), a cidade firmou parceria em 2022 com a Atena Assessoria Educacional para implantar e gerir duas escolas cívico-militares.
Essas unidades atendem cerca de mil alunos em tempo integral a partir de 1 ano.
Formada por coronéis da reserva da Polícia Militar de São Paulo, a empresa recebe R$ 828.192,50 por ano pelo trabalho nas duas unidades. O valor tende a aumentar, já que Colucci promete abrir a terceira unidade até o final deste ano.
"Esse é um pedido da população. Essas escolas são um sucesso, têm fila de espera. O componente militar assegura disciplina, respeito e também melhora a aprendizagem", diz o prefeito, que tenta reeleição.
Em cena, o diretor cívico
Segundo o coronel aposentado Ricardo Peixoto, um dos sócios da Atena, os militares não interferem na área pedagógica, que segue sob o comando dos professores municipais.
"Nós entramos com a questão disciplina e com a organização geral da escola", afirma.
A organização citada se dá no controle da entrada e da saída dos alunos, assim como na supervisão das aulas de educação física, por exemplo.
Mas a Atena fornece um "diretor cívico" às escolas, além de monitores militares que fazem até reuniões com os pais para tratar da formação dos estudantes com base em "valores e princípios".
Nesse contexto, os alunos devem obedecer a um manual que veta, por exemplo, adereços como piercings e maquiagem.
Também é obrigatório o uso de fardas como uniformes, assim como a participação em atividades cívicas, como o hasteamento da bandeira nacional.
PMs atuam nas redes pública e privada
O formato de negócio da Atena se assemelha ao utilizado pela Defenda PM, entidade de classe de oficiais da polícia paulista criada em 2016 e que agora também atua na área educacional.
O coronel da reserva Ernesto Puglia Neto, que é secretário executivo da Defenda PM, afirma ao UOL que a associação não visa ao lucro.
"[A ideia] é a disseminação de valores e princípios éticos na sociedade, em um modelo de ensino que promove a inclusão, o respeito, o civismo, a cidadania e, fundamentalmente, a dignidade da pessoa humana."
Desde a sua criação, o modelo da Defenda PM foi implementado em uma escola municipal de Santa Fé do Sul (SP) e em um colégio particular de São José do Rio Preto (SP).
No primeiro caso, diferentemente do informado, o acordo envolveu o pagamento de R$ 706,3 mil por ano de consultoria para adaptar a escola Thereza Siqueira Mendes ao formato cívico-militar.
A militarização, no entanto, foi contestada pela Justiça, e o contrato, desfeito.
Procurada, a Prefeitura de Santa Fé do Sul não respondeu ao contato da reportagem.
Para o professor de políticas educacionais Salomão Ximenes, da UFABC, a contratação de associações privadas de militares da reserva para gerir escolas e, em muitos casos, ministrar conteúdos pedagógicos, representa um duplo desvio.
"O primeiro diz respeito às atribuições que são legalmente definidas para os profissionais da educação pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e não para representantes das forças de segurança", afirma.
"O segundo está relacionado ao destino de recursos públicos, que em vez de assegurar a valorização do magistério e os padrões de qualidade nas escolas públicas são sugados por esse tipo de associação formada por pessoas sem qualificação na área", completa.
Lobby em Brasília
A mais bem-sucedida associação do segmento por enquanto é a Abemil (Associação Brasileira de Educação Cívico-Militar), criada em 2019 pelo capitão Davi Lima Sousa, que é suplente de deputado federal pelo PL.
Com articulação política em Brasília, Sousa virou lobista das escolas cívico-militares, vendendo a modalidade de ensino a prefeituras a partir de parcerias.
Diferentemente das demais consultorias, a Abemil atua diretamente no convencimento de prefeitos e vereadores, chegando a participar da elaboração de projetos de lei necessários para a militarização das escolas.
São sete etapas de implementação, segundo a entidade. Elas preveem, por exemplo, reunião com gestores, realização de audiências públicas, aprovação de lei específica e, por fim, a formalização do termo de convênio.
Ao menos dez municípios já aderiram ao modelo de negócios da Abemil, como Lins (SP), Redenção (PA), Tianguá (CE) e Porto dos Gaúchos (MT).
Mas é em Minas que a associação tem mais adesão. Em Uberlândia, segunda cidade mais populosa do estado, a prefeitura paga R$ 841 mil por ano para manter como cívico-militar a escola Hilda Leão Carneiro.
Os valores cobrados variam conforme o município. Em São Francisco (MG), de apenas 54 mil habitantes, a consultoria para a escola José D'Ávila Pinto custa R$ 659 mil anuais.
O sucesso do modelo reflete a aprovação da chamada "pedagogia do quartel" no Brasil.
Segundo a edição 2024 da pesquisa A Cara da Democracia, realizada pelo Instituto da Democracia, 60% da população apoiam a militarização das escolas e só 30% são contra.
Em 2021, esse número era de 57% e 35%, respectivamente.
Pesquisador do tema, o professor Eduardo Santos, do Instituto Federal de Goiás, explica que esse apoio se dá pela escolha de gestores defensores do modelo de priorizá-lo com recursos e estrutura.
"Isso passa uma sensação para os pais de que apenas essas escolas militarizadas funcionam", diz Santos, que ressalta ainda o fato de muitas delas selecionarem alunos como forma de melhorar os índices de aprendizagem.
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