Como corrida de buscadores muda nossa vida na internet e tira paz do Google
O que você faz para tirar uma dúvida na internet? "Dar um Google" e achar o melhor link foi a resposta padrão por mais de 20 anos, mas o futuro das buscas já não é tão óbvio.
Uma derrota judicial histórica nos EUA e a evolução da IA (inteligência artificial) nas ferramentas de busca ameaçam a posição do Google como oráculo da internet.
A capacidade da IA de elaborar respostas diretas às nossas dúvidas tem mudado a maneira como usamos a internet. A busca será cada vez mais parecida com uma conversa.
Além disso, a Alphabet, dona do Google, foi condenada nos EUA em agosto de 2024 por criar um monopólio com seu poder financeiro de US$ 2 trilhões.
O veredito é o mais bombástico no setor desde que os EUA agiram para quebrar o domínio da Microsoft sobre navegadores de internet, em 1999.
O juiz ainda avalia as medidas que vai impor ao Google. Elas podem abrir espaço para concorrentes antigos, como Microsoft e Meta, e novos, como OpenAI e até o TikTok.
O Google ainda tem mais de 90% do mercado de buscas do mundo — e não está parado.
A empresa já colocou a sua IA para atender parte das 2,7 bilhões de pessoas que fazem perguntas ao seu buscador todos os dias.
Ainda assim, a incerteza no mercado de buscas é a maior em 20 anos. Resta saber como as dúvidas sobre o setor — e todas as nossas perguntas na internet — serão respondidas.
E agora, quem poderá me responder?
Uma semana antes da sentença contra o Google, outro martelo foi batido nos EUA. A OpenAI decidiu lançar o protótipo do SearchGPT, app de busca baseado em inteligência artificial.
"Achamos que há espaço para fazer a busca muito melhor do que é hoje", disse Sam Altman, CEO da empresa, em seu perfil no X.
O produto mais popular da empresa é o ChatGPT, com mais de 200 milhões de usuários. O chatbot ajudou a OpenAI a triplicar de valor em um ano (US$ 100 bilhões).
Estes novos buscadores tentam entender nossas pesquisas em vez de só procurar palavras exatas. Assim, ficam mais precisos a cada interação.
Nos resultados, os links perdem espaço para respostas diretas e dicas para se aprofundar na busca, por texto ou integradas a assistentes de voz.
"O Google nadou de braçada no processo de 'ler' a internet para buscar e apresentar links. O paradigma mudou: agora é de interação com a informação, mediada por IA", diz Diogo Cortiz, professor da PUC-SP e colunista do UOL.
Entre as big techs, a Microsoft saiu na frente, ao usar o modelo de linguagem da OpenAI para criar o assistente Copilot, disponível no buscador Bing.
A Meta resolveu criar seu modelo, o LLaMA. Com isso, poderá resolver nossas dúvidas diretamente nas suas plataformas (Facebook, Instagram e WhatsApp).
"Você faz a pergunta onde estiver. Seja do Windows, onde você aperta um botão para ver o Copilot, seja das redes sociais da Meta, que podem acessar o LLaMA", explica Cortiz.
"A Meta está muito bem posicionada. Se tiver a estratégia certa de colocar inteligência artificial em aplicativos como WhatsApp, vai se dar bem, pois já está na ponta de conversa com usuários", diz.
Davi, Golias e a Geração Z
Há também buscadores "nativos da IA", que já surgiram nesse novo cenário, como o Perplexity. Lançado em 2023, ele dá destaque total a respostas diretas, com poucos links na página.
A interface do Perplexity é uma versão radical do que o Google faz aos poucos. A líder ainda parece testar o formato.
O embate remete à história bíblica de Golias, gigante ameaçado pelo pequeno e ágil Davi. A comparação é de Fabro Steibel, diretor do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade).
"Quando você é grande demais, principalmente no setor de tecnologia em transformação, fica vulnerável a um pequeno atender ao público de forma mais eficiente e barata", ele diz.
Pode haver também uma união do poder da IA a uma obsessão da geração Z: vídeos curtos.
"As pessoas querem encontrar as respostas do que elas buscam de cara, como você vê com os jovens no TikTok", diz Carlos Affonso Souza, diretor do ITS e colunista do UOL.
O Google está bem ciente desta ameaça do algoritmo do TikTok.
"Em nossos estudos, cerca de 40% dos jovens, quando buscam um lugar para almoçar, não vão ao Google Maps ou ao Google. Vão ao TikTok ou Instagram", disse o vice-presidente de buscas do Google, Prabhakar Raghavan, em uma palestra em 2022.
Quem é dono da resposta?
Todas essas empresas estão sujeitas a uma questão ainda indefinida: quem é o dono dos dados que alimentam os modelos de linguagem de IA?
Estes sistemas foram "treinados" com base em bancos com todo o conteúdo da internet — centenas de bilhões de palavras retiradas de sites de notícias, blogs, artigos acadêmicos, fóruns etc.
No modelo anterior, o dono do site não era remunerado para aparecer no buscador, mas ao menos ganhava acesso do Google à sua página — o que não ocorre com respostas diretas por IA.
"Essa é a discussão mais importante: como a Justiça vai encarar a raspagem dos conteúdos disponíveis na internet, envelopados dentro de um produto?", diz Carlos Affonso.
O jornal The New York Times processa a OpenAI pelo uso não autorizado de seu conteúdo. Há vários outros processos e projetos de lei no mundo para definir este direito.
Mesmo sem uma regra clara, empresas já fecham acordos de licenciamento .
Em maio de 2024, a OpenAI fechou um contrato para usar o conteúdo do Wall Street Journal por US$ 250 milhões em cinco anos.
O Google fechou um acordo para treinar sua IA com o conteúdo dos fóruns do Reddit por US$ 60 milhões por ano.
Outro gigante entra na sala
Outro gigante interfere na disputa das big techs: a Justiça dos EUA. Ela condenou o Google por criar um monopólio ilegal para controlar as buscas — e o lucro que elas geram.
"A decisão dos EUA vai no sentido de restabelecer um balanço saudável entre empresas, para que a inovação continue surgindo", diz Fabro.
O foco da acusação foram os acordos para o Google ser mecanismo de busca automático em aparelhos e navegadores de outras empresas.
O processo mostra que o Google pagou, só em 2021, US$ 26 bilhões a empresas como Apple, Samsung e Mozilla com esse objetivo.
O juiz descreveu o ciclo: o Google define o preço dos links patrocinados. Com esse lucro, paga para ser o único sistema de busca e sufocar a concorrência.
Entre 2014 e 2021, o faturamento do Google com anúncios, sua principal fonte de renda, subiu de R$ 47 bilhões para R$ 146 bilhões.
O Departamento de Justiça norte-americano comemorou a "decisão histórica" e disse que ela "abre caminho de inovação para as gerações futuras e protege o acesso à informação para todos os americanos".
O Google reclama que foi punido por inovar e ter o melhor produto.
"A sentença reconhece que temos o melhor mecanismo de busca, mas conclui que não podemos oferecê-lo facilmente", disse Kent Walker, diretor de assuntos globais da Alphabet.
Duas visões e uma sentença
"Nada gera mais inovação do que empresas competindo sem monopólio", resume Paulo Feldman, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP.
"Antes, os EUA dividiam a empresa monopolista em partes. Isso é mais difícil com as novas tecnologias. Se você fizer essa divisão, logo pode surgir uma companhia que vai dominar. Tem que ter uma regulamentação bem elaborada. De qualquer forma, a sentença é um bom sinal", diz Feldman.
Carlos Lobo, professor de Direito da Universidade de Lisboa, discorda de que a condenação do Google seja boa — ou até necessária. Ele estudou o caso da Microsoft dos anos 1990.
Para ele, a Justiça age de forma atrasada em problemas que o mercado já está resolvendo.
"O Google não tem a posição dominante porque as pessoas foram obrigadas a usá-lo, mas porque nós vimos que ele era melhor. E agora o tribunal discute um mercado de busca que já está em risco de colapsar. Já estamos no modelo de IA, bem diferente", descreve.
O Google também está na mira da União Europeia. A empresa já foi multada em US$ 8,8 bilhões e perdeu três ações por monopólio em sistemas operacionais, anúncios e compras.
Para Lobo, este tipo de condenação é uma forma de cobrar imposto sobre as big techs. "Para ter paz, elas aceitam as sentenças, pagam multas e tudo fica na mesma."
O futuro das nossas buscas
A derrota do Google foi bombástica, mas falta o mais importante. O juiz vai decidir o "remédio" (medida imposta para corrigir a conduta ilegal). O prazo para a decisão é longo: até agosto de 2025.
"Ela pode ser de design, como impedir o Google de ser o buscador padrão em aparelhos, ou técnica, como quebrar a empresa em unidades para diminuir seu poder", diz Diogo Cortiz.
Outro processo dos EUA contra o Google deve começar a ser julgado ainda em 2024. A empresa é acusada de abusar de sua posição dominante na publicidade online.
"Esse caso é mais importante, porque vai direto no bolso da Alphabet", diz Carlos Affonso.
Os anúncios são a principal fonte de renda da empresa — US$ 237 bilhões de um total de US$ 307 bilhões de faturamento em 2023.
Os desafios judiciais e de tecnologia voltam a se juntar, porque o novo modelo de buscas por IA tem menos espaço para links patrocinados, base do faturamento do Google.
A primeira sentença dura contra o Google fez grandes rivais comemorarem e tremerem ao mesmo tempo. Elas são alvos de outros processos por conduta monopolista.
O governo dos EUA aponta condutas monopolistas da Meta em redes sociais, da Amazon no comércio online e da Apple nos smartphones, em ações a serem julgadas.
No momento em que todas aceleram ao máximo na corrida tecnológica, as sentenças podem bagunçar o tabuleiro de uma forma que a mais avançada IA ainda não pode prever.
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