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Brasília sem ar: queimadas levaram caos respiratório ao centro do poder

A fumaça que o Brasil respira há meses por causa dos incêndios conquistou a atenção do governo federal quando chegou ao centro do poder.

O alerta já havia sido dado: o Brasil pega fogo e alaga enquanto os congressistas discutem outros assuntos, de armas a questões eleitorais, e avançavam com medidas que reduzem a proteção ambiental.

Em 15 de setembro de 2024, foi a vez do Parque Nacional de Brasília, a cerca de 15 quilômetros da Praça dos Três Poderes, começar a queimar.

A geografia da capital do país fez com que a fumaça fosse levada até o Congresso Nacional e à casa do presidente Lula, o Palácio da Alvorada.

Foi aí que o presidente decidiu sobrevoar o local com um helicóptero.

No caminho para o Palácio, essa mesma fumaça passou pela casa do ministro Dias Toffoli, do STF (Supremo Tribunal Federal). Ele foi internado por problemas respiratórios.

Mas, antes de o Parque Nacional pegar fogo, os moradores das cidades-satélites já sentiam dificuldade para respirar.

Em 3 de setembro de 2024, a Floresta Nacional de Brasília se tornou o epicentro de uma queimada que durou cinco dias, atingiu cerca de 40% do território, encobriu os céus e levou fuligem para as casas dos moradores das cidades-satélites de Taguatinga e Ceilândia.

"A poluição do ar é um dos maiores fatores de risco para a morte precoce. A situação é bastante dramática, e é difícil imaginar uma área que não esteja afetada por isso, particularmente o Cerrado e o Pantanal", afirmou o oncologista e diretor-geral do Inca (Instituto Nacional de Câncer), Roberto de Almeida Gil, durante Congresso que aconteceu em Brasília e abordou os impactos das queimadas que atingem o país.

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O medo das doenças respiratórias provocadas pelas queimadas tem feito Maria de Lurdes Veríssimo, 75, usar máscara para sair de casa em Taguatinga.

"Vivo tossindo por causa do clima, do jeito que está a fumaça. Juntou tudo, calor, fumaça, cinza. Se a gente não se cuidar? Nunca tinha visto nada parecido", disse ela ao UOL enquanto voltava do mercado.

Maria de Lourdes afirmou que por todo o trajeto era a única a usar a proteção no rosto. "Fiquei gripada há pouco tempo. Vem essa fumaça com resto de cinza misturado... preta, muito perto da casa."

Cerca de dez quilômetros separam as casas de Maria Lurdes e de Ricardo Martins, em Ceilândia. Ele foi visitar na UTI da UPA (Unidade de Pronto Atendimento) o tio de 90 anos internado por causa de uma pneumonia provocada pela fumaça. Para piorar, seu tio pegou covid-19 no hospital.

"Ele nunca tinha tido problema nenhum, não tomava remédio para nada. O problema respiratório começou com clima seco e piorou com a fumaça."

Também foi na UPA de Ceilândia que Lucy Alves Portela, 28, passou quatro dias internada. Ela teve falta de ar durante a noite, levantou para ir ao banheiro, desmaiou e bateu a cabeça. O impacto da queda foi ouvido pela vizinha, que a socorreu.

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"Cheguei há quatro dias, estou saindo agora. Fui para o isolamento. Me colocaram no oxigênio até hoje de manhã. Falaram que é um problema com o clima mesmo. Não deu nada nos exames, nem pneumonia ou tuberculose. Tava dando febre, dor de cabeça, enjoo, diarreia. Falaram que é mal-estar por causa do clima."

Antes de ser internada, Lucy diz que a fumaça invadiu sua casa, "pequena e abafada", e que precisou sair com seu cachorro.

Na semana seguinte, quando começou o incêndio no Parque Nacional de Brasília, alguns moradores das áreas mais próximas ao local também deixaram suas casas por causa da fumaça.

Ainda que os deslocamentos na capital tenham sido pontuais e temporários, fica cada vez mais evidente que o Brasil enfrenta uma situação nova e que se impôs na tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul em maio: o país passa a conviver com refugiados climáticos.

Incêndio no Floresta Nacional de Brasília, em Taguatinga (DF)
Incêndio no Floresta Nacional de Brasília, em Taguatinga (DF) Imagem: Alex Mirkhan/UOL

Seca histórica no Brasil e no Distrito Federal

A maior seca registrada no Brasil está fazendo milhões de pessoas respirarem a crise climática. A população em cerca de em 60% do país está sendo afetada e a situação deve piorar.

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Em 1963, o Distrito Federal registrou 163 dias sem chuva. Em 2024, a última chuva foi em 23 de abril — há mais de 155 dias, período que vale o segundo recorde.

De janeiro a setembro deste ano, os satélites do Inpe detectaram 322 fogos de incêndio no Distrito Federal, um aumento de 274% comparado ao mesmo período de 2023, quando foram detectados focos de incêndio na região.

No ápice das queimadas até agora, em setembro, a fumaça da Floresta Nacional afetou a rotina de uma escola pública infantil de Taguatinga, que fica do outro lado da rodovia, às margens do incêndio.

"Muitos professores se ausentaram para procurar atendimento médico, por gripe principalmente", diz Edvando Santos Dias, supervisor da unidade de ensino.

Ele conta que a maioria dos alunos é oriunda de um assentamento na região. As crianças sofrem com a poeira na seca, afirma, mas a situação com a fumaça agravou o quadro.

As aulas não foram suspensas. O governo entendeu que a fumaça não prejudicaria tanto os alunos.

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Se as aulas fossem suspensas, a mãe de Icaro, 6 anos, aluno desta escola pública, teria um outro problema: com quem deixar o filho para poder trabalhar.

Sandra Rocha de Oliveira diz que, como a fumaça dominou toda a região, acabaria não fazendo diferença na questão da saúde deixar ou não o garoto no colégio.

Eles sofrem com rinite, quadro agravado pela fumaça, e não têm ar condicionado em casa para filtrar as partículas suspensas no ar. Tampouco seria possível deixar a casa fechada por causa do calor.

A algumas quadras da escola, Adriana Alves, 51, conversou com a reportagem na porta de sua casa, em Taguatinga. Disse que toma antibiótico por causa da sinusite agravada com a fumaça. E que, além da recomendação para se manter hidratada, não recebeu nenhuma orientação sobre o que fazer para mitigar os efeitos da contaminação do ar.

"Não teve orientação do poder público sobre o que fazer. A única coisa que a gente ouviu é que é para as pessoas se hidratarem. Isso todo mundo já faz, não precisa ninguém avisar. Não teve aviso, um carro passando para falar. Se aconteceu em outro lugar eu desconheço."

A alta demanda em hospitais e as dúvidas de educadores e de pais de crianças sobre o que fazer na emergência climática do DF mostram como faz falta um plano de contingência.

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Os governos federal, estaduais e municipais têm responsabilidades distintas e que deveriam ser coordenadas na hora de uma calamidade.

17.09.2024 - Vegetação destruída pelo fogo na Floresta Nacional de Brasília, em Taguatinga (DF)
17.09.2024 - Vegetação destruída pelo fogo na Floresta Nacional de Brasília, em Taguatinga (DF) Imagem: Caio Clímaco/Ato Press/Folhapress

Fogo atinge também os animais

A fumaça do Parque Nacional de Brasília provocou a internação de pessoas e até mesmo de animais domésticos —que, em tese, estão mais protegidos do ar contaminado por ficarem em casa.

A cadela Jolie, da raça shih tzu, também precisou de atendimento e ficou sob cuidados veterinários, conta a empresária Mônica Aras. Na noite do dia 15, quando a fumaça começou a dominar os céus de Brasília, Jolie começou a respirar com dificuldades e a tossir, conta Mônica. Ela piorou ao longo do dia seguinte e foi levada para o veterinário.

Jolie passou por uma bateria de exames: ecocardiograma, raio-X do pulmão e ultrassom. Os veterinários constataram que ela estava com vias respiratórias obstruídas e a capacidade pulmonar sobrecarregou o coração. Precisou de oxigênio limpo e foi internada por 24 horas. Depois, passou por tratamento com antibiótico para broncopneumonia, corticoide e remédio para hipertensão.

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Imagem: Caio Clímaco/Ato Press/Folhapress

Já os animais selvagens do Parque Nacional não tiveram a mesma sorte.

Clara Costa, funcionária do Cetas-DF (Centro de Triagem de Animais Silvestres), integra a equipe que resgata animais da Floresta Nacional, que teve 40% da área queimada. O trabalho do grupo inclui fornecer alimentos em determinados pontos da floresta para suprir plantas e frutas que foram carbonizadas.

"Vimos muitas cobras em óbito. Os répteis e anfíbios são os primeiros que sofrem porque não conseguem de fato fugir", diz ela.

"A gente verifica nos pontos quais alimentos foram consumidos e onde estão os pontos que precisam de maior aporte."

A Polícia Federal abriu inquéritos para apurar as suspeitas de que ambos os incêndios no Distrito Federal tenham sido provocados por ação criminosa.

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O governo do Distrito Federal informa que, em caso de perigo iminente de incêndios florestais atingirem áreas residenciais, as orientações básicas incluem a necessidade de deixar a área imediatamente, "seguindo as instruções dos órgãos competentes"; ligar para o Corpo de Bombeiros; usar panos úmidos para cobrir o nariz e a boca; alertar os vizinhos; levar apenas objetos imprescindíveis; aguardar orientação de retorno e acompanhar os canais oficiais da Defesa Civil, entre outros.

O GDF não forneceu informações sobre a existência de alertas sonoros para a população em caso de incêndio noturno em área residencial nem sobre um plano para as pessoas não respirarem fumaça ou para evitar a sobrecarga do sistema público de saúde.

O governo federal ainda está estudando a criação de uma autoridade climática. O presidente Lula admitiu que o Brasil não estava preparado para enfrentar as queimadas que atingem diferentes regiões do país.

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