Resultado em Cuiabá faz PT local defender adesão a teses conservadoras
Durante visita a Goiânia, na manhã de domingo (17), Jair Bolsonaro (PL) disse que não tinha cabimento o partido perder a eleição em Cuiabá. Justificou: "É contra o PT".
Mas Abilio Brunini (PL) ganhou de Lúdio Cabral (PT) com uma diferença de sete pontos percentuais porque o petista em questão é muito diferente dos candidatos que concorrem pela estrela vermelha.
Durante a campanha, o deputado estadual Lúdio Cabral rompeu com posições da esquerda. Declarou ser contra o aborto, contra a legalização das drogas e prometeu que não haveria "ideologia de gênero" nas escolas.
Petista que termina frases usando a expressão "com a graça de Deus", ele encerrou seu último ato de campanha rezando um pai-nosso — oração repetida nos comícios de Bolsonaro. Por fim, Lula foi escondido pela campanha.
A derrota na capital nacional do agro sinaliza uma alternativa para o PT voltar a ser competitivo em regiões conservadoras dominadas pelo bolsonarismo. A postura permitiu uma reaproximação com eleitores conservadores, principalmente evangélicos.
A carreata final no sábado à noite (26) reuniu vários veículos com adesivos com a frase "sou cristão, voto Lúdio". Pesquisas apontaram que 12% da população que votou Jair Bolsonaro em 2022 escolheu Lúdio para prefeito.
A estratégia, diferente de tudo que o PT já fez, começou a ser definida em setembro de 2023. Naquela época, o candidato ligou para o marqueteiro Pedro Pinto de Oliveira, que fazia pós-doutorado em Coimbra (Portugal). Lúdio revelou planos de concorrer à prefeitura de Cuiabá e sondou a contratação. Pedro disse que só aceitaria se houvesse ousadia na campanha. O petista concordou.
Pesquisas qualitativas, feitas para medir comportamentos e pontos de visto dos eleitores, foram encomendadas. A partir delas, um plano foi montado.
Impedir que a direita controlasse o debate
O principal movimento foi na pauta de costumes e ocorreu logo no primeiro turno. Lúdio e o marqueteiro sabiam que a direita iria explorar o medo que as posições do PT despertam no eleitor conservador — justamente o perfil da população de Cuiabá.
O petista antecipou suas convicções para esvaziar o debate e não permitir que a campanha girasse em torno da pauta de costumes. Disputar a eleição no campo do inimigo dificultaria bastante a eleição.
Além disso, Lúdio escolheu uma candidata a vice ligada ao agro. Rafaela Fávaro é filha do ministro da Agricultura e trouxe apoio do campo e do PSD, partido do centrão.
Pedro Pinto de Oliveira ressalta que Lúdio não relativizou os assuntos metendo um "veja bem". Foi claro e direto, posicionando-se contra aborto, drogas e ideologia de gênero — ele usa a expressão de forma direta, diferentemente do restante da esquerda que fala "dita" ou "chamada" ideologia de gênero.
A estratégia deu certo e temas como saúde, transporte e moradia entraram na campanha. Considerável parte do êxito da estratégia é creditada ao histórico do candidato. Uma declaração de 2012 contra o aborto foi resgatada para provar que não eram afirmações de ocasião.
Lúdio é casado com uma fiel da Igreja Batista e frequenta os cultos com ela. O casamento com uma evangélica foi explorado como exemplo de que o respeito às religiões começa em casa.
Cristão pode votar no PT
A carreata final do petista estava repleta de veículos adesivados com a mensagem "sou cristão, voto Lúdio". O movimento de aproximação com as igrejas começou bem antes da campanha eleitoral. O candidato afirmou que fez algo que o PT parou de fazer: conversar com as bases.
Lúdio ressalta que a forma de abordar os evangélicos fez toda a diferença. Ele avalia que a esquerda se porta de maneira arrogante e olha para o crente como um ignorante. Outro erro seria falar com a cúpula das igrejas e esperar o voto de todos os fiéis por inércia.
O candidato se reuniu com pastores, fiéis, artistas e profissionais liberais evangélicos. O diálogo com as bases permitiu não se surpreender com a força do discurso do empreendedorismo, que tem apelo junto a manicures, vendedores de espetinho ou de capas de celular.
O marqueteiro pondera que Lúdio domina a linguagem dos evangélicos, o que causa boa impressão. Pedro finaliza dizendo que conversar não significa uma adesão "all inclusive". O que se buscou foram pontos de convergência e desmistificar acusações dos adversários.
Movimento semelhante a Lula em 2002
Para o marqueteiro, a dupla não inventou a roda. "Onde estava o vermelho na campanha do Lula em 2002?" Pedro lembra, que no material de campanha de 2002, Lula aparecia junto ao verde e amarelo da bandeira do Brasil e, ao fundo, havia um céu azul. No mesmo ano, houve a Carta ao Povo Brasileiro, compromisso com superávit primário e um barão do ramo têxtil foi candidato a vice-presidente (José Alencar).
Lúdio compara seu movimento ao feito por Lula naquela ocasião. Ambos foram contra posições históricas do partido. Ele admite que correu o risco de arruinar a carreira política. Vídeos em que se declarava contra o aborto podem aparecer em toda eleição futura e afastar o eleitor progressista. Mas ele avalia que o resultado eleitoral mostra acertos.
A estratégia de revelar suas posições logo no começo da campanha, na avaliação do marqueteiro, fez o candidato passar arranhando — Lúdio teve míseros 1.742 votos a mais que o terceiro colocado.
Quando o segundo turno começou, houve um crescimento expressivo, porque não foi necessário ficar justificando frases do primeiro turno. A pesquisa Quaest da véspera da eleição dava empate absoluto entre Ludio e Abilio Brunini.
Bolsonarista raiz de primeira geração e neto de pastor, Abilio Brunini está fechado com Bolsonaro desde antes de 2018.
Resistência interna
Ir contra posições sedimentadas do maior partido de esquerda da América Latina não seria fácil. O marqueteiro se equipou de um discurso de Lula para justificar suas posições. O texto continha "conselhos aos companheiros" e foi retirado de um discurso do presidente feito no fim do primeiro turno da campanha de 2022.
"Não precisamos conversar com quem já nos conhece, com quem a gente já sabe que votou na gente ou sabe que vai votar. Precisamos conversar com aqueles que parecem que não gostam da gente, que parecem que não votam na gente, que parecem que não gostam do nosso partido."
Pedro sabia que haveria reações. Ele diz que as pesquisas ajudaram. Lúdio logo cresceu e a situação abafou as críticas internas.
O marqueteiro ressalta o papel da direção estadual do partido neste momento inicial. Por mais que estivesse dando um cavalo de pau nos posicionamentos históricos, a equipe de comunicação foi blindada e teve liberdade para trabalhar.
Lula foi escondido na campanha
As pesquisas revelaram que Lúdio era considerado o candidato mais preparado de Cuiabá, mas ele não receberia os votos dos entrevistados porque é filiado ao PT. Também foi verificado um desgaste da imagem de Lula.
O presidente não foi à cidade durante a campanha. Para mostrar que havia respaldo junto ao governo federal, ministros como Renan Filho (Transportes), Nísia Trindade (Saúde) e o vice-presidente, Geraldo Alckmin, viajaram a Cuiabá.
Lula só deu as caras na propaganda no rádio e na TV. Mas o monitoramento eletrônico revelou que a aparição aumentava a rejeição a Lúdio e alimentava a polarização. O presidente foi limado dos programas.
As particularidade de Cuiabá
Questionado se o resultado pode ser servir de exemplo, Lúdio desconversa. Lembra que a fórmula funcionou no contexto de Cuiabá. Mas ele não se furta de fazer comentários e sugestões. Reforça que o desempenho ocorreu porque houve diálogo com a base despido de arrogância. Em vez de se apresentar como dono da verdade, seu time "escutou as necessidades do povo".
Também foram admitidas dificuldades com setores como agro e evangélicos e adotada uma postura de humildade. Por fim, Lúdio afirma que Cuiabá é diferente do restante do estado. Apesar de ser chamada de capital do agro, tem militância estudantil forte por causa da Universidade Federal do Mato Grosso, funcionalismo público, sindicatos e comunidades japonesas e sírio-libanesas.
A cidade não sobrevive por causa do campo. A realidade é diferente de Sinop (MT) ou Sorriso (MT), potências do agro nacional. Mas Lúdio admite que a eleição municipal de Cuiabá provou que dá para fazer diferente.
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