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Guido Mantega: 'O mercado gosta de manter o governo sob controle'

Ministro da Fazenda mais longevo da era republicana do país (2006-2014), o economista Guido Mantega virou uma espécie de observador do governo Lula no mercado financeiro.

Aliado de primeira hora do presidente, Mantega foi um dos colaboradores externos convidados para a elaboração do projeto que limita os gastos públicos, anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

A proposta, encaminhada na última segunda-feira (2) ao Congresso, foi mal recebida pelo mercado. Mantega sabe bem como é ser sistematicamente criticado por empresários e investidores.

Para o ex-ministro, o mercado financeiro demonstra má vontade com o governo.

"O mercado gosta de manter o governo sob controle para conseguir as coisas. É um jogo político", diz ele. "Mas eu acho que o balanço é positivo."

Guido Mantega
Guido Mantega Imagem: Divulgação

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

UOL - Qual é a avaliação que o mercado faz do governo Lula?

Guido Mantega - Olha, é uma situação complexa. Os empresários estão indo muito bem. O lucro das maiores empresas subiu. O consumo das famílias e a geração de emprego estão bem. O setor financeiro está ganhando muito bem, com os três maiores bancos expandindo, com lucros extraordinários.

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Na área externa, nós vamos bater recorde de exportações este ano, com mais de US$ 300 bilhões. E a taxa de investimento está aumentando, com a indústria acordando de um longo sono.

O governo está sendo extraordinário, porque ele está dando vantagem para todo mundo. Mas há um mal-estar do empresariado com o governo, o que eu acho uma contradição. É algo que fica difícil de entender.

Por quê?

É um fenômeno político novo. Antigamente, dizia-se que se a economia está indo bem, com o país em pleno emprego, então o povo deveria estar feliz. O governo não está indo mal. O mercado diz que tem um desequilíbrio fiscal, um descontrole fiscal.

Será que tem? Eu acho que não. A dívida está alta, como na maioria dos países, por causa da pandemia. Agora, de resto, a inflação está relativamente comportada e a economia cresce acima de 3% há três anos.

Há uma pressão por um lado que diz que você não está fazendo direito a gestão fiscal e, em função disso, vai gerar mais inflação, afastando o capital externo do Brasil. E o Banco Central tem criado expectativas negativas, uma pressão indevida. Um problema que nós temos é a meta de inflação, que está errada.

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O Brasil não consegue ter uma inflação de 3% em condições normais, só se estiver em estagnação ou se despencassem todos os preços das commodities.

Os índices de aprovação do governo Lula caíram nas últimas pesquisas. A que se deve isso?

Temos que separar os fatores econômicos dos ideológicos e políticos. Há uma divisão ideológica da sociedade em que os que são contra, são contra, mesmo que estejam ganhando dinheiro, estejam com emprego e recebam o Bolsa Família. Eles são contra porque acham que o governo é, sei lá, de esquerda, estatista e retira a liberdade de expressão.

Além disso, tivemos uma deterioração da situação dos trabalhadores e da renda das famílias. Ainda temos um nível de inadimplência altíssimo no país, com 73 milhões de pessoas no Serasa.

Mas de quem é a responsabilidade?

Houve um período de inflação no mundo causado pela pandemia, que fez o poder aquisitivo das famílias cair. Não é culpa de ninguém. Passado esse momento, a inflação diminuiu, mas não é que houve deflação, ela está subindo gradualmente. A que temos hoje no Brasil é totalmente razoável, 4,77% ao ano segundo o IPCA-15.

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Nos próximos dois meses a tendência é de que ela caia um pouco. Só que a inflação foi de 10,5% pouco tempo atrás, e isso "comeu" o poder aquisitivo. Quando ocorrem elevações pontuais, como no preço da carne, porque o Brasil está exportando mais, a população se ressente.

Lula e o então ministro da Fazenda Guido Mantega, em 2008
Lula e o então ministro da Fazenda Guido Mantega, em 2008 Imagem: Jamil Bittar/Reuters

Antes das eleições de 2022, o senhor disse que o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, mantinha diálogo com as diferenças. Como o classifica no governo Lula?

Ele chegou a surpreender quando começou a baixar os juros em 2019, a um ponto que nenhum heterodoxo faria, a 2% ao ano. Como temos uma inflação basal um pouco mais alta, não convém jogar os juros tão para baixo, mas, com isso, ele estimulou os investimentos. O problema foi depois ter mudado de posição e, no governo Lula, mudar a filosofia.

Acho que ele tem um vínculo político com a oposição. Não tem o perfil de um banqueiro central independente, de um técnico. Ben Bernanke, ex-presidente do Federal Reserve [o Banco Central norte-americano], é o exemplo típico de banqueiro independente, não vinha de nenhum banco, era um acadêmico, mas conhecia muito bem as questões monetárias, estudou a crise de 1929 e o comportamento dos bancos.

O atual presidente, Jerome Powell, também me parece ser uma pessoa que olha para os dados e não está preocupada com a política.

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Por que o senhor diz que Campos Neto não tem um perfil independente?

Ele começou a fazer política como presidente do Banco Central porque quer ser ministro da Fazenda em um novo governo Bolsonaro, o que certamente não vai ter, mas talvez tenha o do Tarcísio [de Freitas, governador de São Paulo], né?

O Banco Central estava numa rota correta. Baixou os juros, como fizeram todos os bancos centrais do mundo. De repente, Campos Neto começou a falar que temos um sério risco fiscal. Ora, é verdade que a dívida do país é alta, mas ela não está correndo risco, porque 90% dessa dívida é em reais, não em dólares.

A economia europeia cresce pouco. A Alemanha está numa situação ruim. Os Estados Unidos têm mais dinamismo e estão contidos pelas taxas de juros. A China está desacelerando. E o Brasil está ganhando esse dinamismo com a elevação da nota de crédito por algumas agências importantes como a Moody's. Acho que o Roberto Campos quis estragar essa festa.

Como avalia a disparada do dólar, cotado acima de R$ 6?

Não tenho dúvidas de que a responsabilidade [pela alta do dólar] é do Banco Central. Eles deixaram o dólar valorizar e podiam ter feito operações de swap cambial [quando a autarquia usa reservas internacionais como uma espécie de seguro para evitar a desvalorização do real]. Todo mundo faz. Mas não fizeram a lição de casa em relação ao câmbio.

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"O juro aleija, mas o câmbio mata o país." Nesse patamar, o câmbio vai gerar inflação, porque você vai importar produtos a um preço mais alto. E isso vai diminuir a rentabilidade das empresas com empréstimos em moeda estrangeira.

Tudo isso me leva a crer que o comportamento do Roberto não é adequado, é um comportamento político. Ele é o "cavalo de Troia" do governo Bolsonaro dentro do governo Lula. Essa situação de alta dos juros vai acabar interrompendo o processo de dinamismo da economia brasileira que era salutar e que estava em curso.

Como o senhor avalia a PEC de ajuste fiscal anunciada pelo ministro Haddad?

Posso dizer que o Lula trabalhou bastante. Saiu uma boa proposta. Agora, não é isso que vai fazer a dívida diminuir, porque, como eu disse, mesmo que o país faça superávit, com os juros subindo, não tem jeito.

Seria bom que o país conseguisse diminuir essa dívida, mas tem que encontrar a maneira certa. E a maneira certa não é paralisando a economia, porque se teve uma virtude dessa situação é que está crescendo a arrecadação: 13%, em termos nominais. Subiu algum tributo? Subiu, mas foi pouca coisa.

Haddad tem sido chamado de 'Taxad' pelo mercado de forma pejorativa.

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O que ele fez? Tentou corrigir distorções que existem, o que ele faz muito bem. Vários programas, inclusive programas sociais, precisam ser revistos e reajustados a todo tempo porque sempre tem gente tentando engabelar.

Ele está definindo uma política que limita o aumento da despesa e está correto. Agora, isso não quer dizer que a dívida vai cair. Enquanto o juro estiver nesse patamar, a única possibilidade seria que o país crescesse mais. Quanto mais cresce, mais arrecada. Esse é o segredo. Essa era a minha política: fiz superávit primário em oito dos nove anos em que fui ministro. E dava subsídio, dava estímulo, porque a economia crescia mais e o país arrecadava mais.

10.mai.2013 - O então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), se reúne com o então ministro da Fazenda, Guido Mantega (dir.)
10.mai.2013 - O então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), se reúne com o então ministro da Fazenda, Guido Mantega (dir.) Imagem: Nelson Antoine/Fotoarena/Estadão Conteúdo

O mercado esperava um corte maior das despesas do governo. Como avalia?

O mercado gosta de manter o governo sob controle para conseguir as coisas. É um jogo político. Esse jogo político existe em todos os lugares, então você precisa saber fazer esse jogo. Mas o balanço é positivo.

Haddad está sendo um bom ministro. Não é fácil a posição em que ele está, e ele conseguiu fazer a reforma tributária que ninguém conseguiu. Tentei duas vezes fazer e não consegui. O país tem uma estrutura tributária ruim, que atrapalha os negócios, e a reforma é muito importante.

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Ele está conseguindo navegar nesse mar revolto com muita competência. Ele conversa com o Congresso, convence o presidente dos ajustes, mesmo que outros ministros fiquem bravos com os cortes orçamentários. O problema é que não tem dinheiro para tudo. Administrar o Estado é administrar escassez de recursos. Mesmo nos Estados Unidos falta dinheiro.

A preocupação principal do presidente é melhorar a vida da população, mas para melhorar a vida da população precisa melhorar o desempenho das empresas, dos bancos, de todo mundo. Uma coisa está ligada à outra.

O ministro da Fazenda o tem consultado antes de tomar alguma medida importante?

Eventualmente a gente conversa, mesmo porque nós somos amigos há muito tempo. Ele foi meu secretário quando eu era ministro do Planejamento. E quando ele foi ministro da Educação, eu o ajudei muito com verbas e tudo mais. Ele é muito inteligente. Ele fez coisas muito importantes na educação, como o Fies e o Prouni.

Como deve ser a gestão de Gabriel Galípolo à frente do Banco Central a partir de 2025?

Ele tem que ser um técnico que olhe para os dados e que não faça projeções mirabolantes. Se houver pressão inflacionária, aí tem que subir o juro, não tem jeito, né? A missão dele é essa. Mas a missão dele também é não bagunçar o coreto, não criar um clima adverso, que interessa aos opositores. O pessoal que não quer que esse governo dê certo e fica fazendo terrorismo.

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Galípolo é um bom técnico. É um rapaz muito inteligente, de pouca idade, mas espertíssimo. E eu acho que o tempo como secretário executivo da Fazenda foi importante também porque o presidente do Banco Central tem que ser um bom macroeconomista.

Ele tem que entender bem como funciona a economia e não só ficar circunscrito às questões monetárias. Galípolo precisa olhar os dados, olhar os números, mas sair desta prisão da meta de inflação de 3%, que é inviável.

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